26/03/07

Os limites das imagens

Fim-de-semana cinematográfico: dois filmes. O Caimão, de Nanni Moretti, e O Grande Silêncio, de Philip Gröning. Comecemos então pelo primeiro.

O que filma Moretti? Berlusconni, sem dúvida. Mas para além de toda a rábula política que pretende mostrar o significado do acontecimento Berlusconni, há uma clara interrogação sobre os limites do próprio cinema e da arte em geral, quando tomam por objecto o mundo político e o conflito ideológico. O filme é um filme sobre o cinema e os seus limites, sobre a possibilidade de conjugar arte e intervenção, ficção poética e juízo moral. Através das desventuras de um inconsciente produtor cinematográfico de filmes de 4.ª ordem, e uma jovem aspirante a realizadora, Moretti mostra-nos essa impossibilidade da arte ser apenas uma espécie de denúncia dos males do mundo. Esse filme sobre a vida e figura de Berlusconni, que lançaria a jovem e redimiria o atarantado produtor, mostra-se impossível de realizar. As circunstâncias e a venalidade humana trucidam o projecto.

Resta porém uma possibilidade: filmar o julgamento de Berlusconni. É nesta solução que se joga todo o filme: não, não é possível fazer arte a partir da ideologia, pois aquilo que fica é sempre um juízo, isto é, uma sentença jurídica, um conjunto de argumentos e a arte é ficção, artifício, composição; está para além da moral e do político. O que resta então? O único filme que se pode fazer sobre Berlusconni e aquilo que ele representa é o documentário do seu julgamento.


Em O Grande Silêncio, Philip Gröning faz uma espécie de descrição fenomenológica da vida de um mosteiro da Cartuxa, em Grenoble. Aqui estamos claramente perante um não filme: não há enredo, nem ficção, a não ser aquela que resulta da aplicação da câmara aos objectos filmados. As narrativas, e o cinema é uma narrativa, vivem da acção dos homens no tempo. Ora a vida dos monges cartuxos, com o seu silêncio e a sua oração, não pertence à categoria da acção. Ali não há peripécias, apenas o cumprimento circular e ritual da regra da ordem, numa sucessão de momentos sempre idênticos, que são uma espécie de reflexo da eternidade no tempo. A contemplação não é filmável e aquilo que as imagens nos mostram é sempre aquilo que não é.

Não é por acaso que o realizador se vê obrigado a recorrer a belíssimas imagens da montanha onde o mosteiro está construído. Mas essas imagens são antes de mais uma confissão: a da impotência perante o invisível. De certa forma, como o filme de Moretti, o filme de Gröning é também uma reflexão sobre os limites do cinema e das imagens. Curiosamente, num mundo onde se vive até à exaustão do poder das imagens, algo nos mostra, através dessas mesmas imagens, o limite destas. Aqui abre-se um espaço para, no domínio da arte, outro tipo relação com o mundo: o som. Talvez o essencial só se revele pelo som, pelo som da palavra e pelo som da música. A imagem acaba sempre por ser desviante, mesmo alienante. Repare-se, por exemplo, nos milhões de imagens que no cinema tentam encenar o amor, repare-se como elas o deixam sempre do outro lado. Também Gröning é incapaz de mostrar o que leva aqueles homens a uma vida tão austera e, para o mundo moderno, tão destituída de sentido. É esta impotência da imagem que permite que a música e a literatura não morram, é também ela que salvou a pintura abrindo-a para lá da figuração.

1 comentário:

João disse...

Professor,

para além de o cumprimentar pela inteligência da análise...

espero que não leve a mal utilizar a sua caixa de comentários para dizer que ambos os filmes fazem parte da programação de cinema do cineclube de torres novas para o teatro virgínia no próximo trimestre.