29/09/08

Da essência da leitura [à maneira de Borges e para a m/amiga Gláucia Campregher]

Em novo lera muitos livros, mas chegado aos trinta anos descobrira que tanta informação pouco ou nada o fizera aprender. Decidiu, então, ler um só livro o resto da vida, mas lê-lo continuamente até descobrir o segredo que lá se ocultaria. Hesitou. Talvez a Bíblia devesse ser o livro escolhido, ou o D. Quixote, porventura a República. Por fim, elegeu a Ilíada. Ao fim de dez anos, sentiu que ainda assim havia excesso de palavras e o progresso na aprendizagem era pouco. Decidiu que apenas leria, mas leria total e completamente, o chamado catálogo das naus. E assim fez durante outros dez anos. No dia do quinquagésimo aniversário a razão segredou-lhe que o melhor seria apenas ler um e só um verso. Aí não teve dúvidas. Escolheu o primeiro da Ilíada, pois nele está já contido todo o poema. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, lia ininterruptamente: «Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida». Quando fez oitenta anos, já há vinte, de manhã à noite, que apenas lia uma palavra: «cólera». A morte surpreendeu-o pela tarde luminosa de um dia de Junho. A face mantinha o sorriso de quem aprendera a suavizar o coração. A boca, porém, diz quem o viu, continuava a dizer pausadamente có-le-ra, có-le-ra, có-le-ra…

1 comentário:

maria correia disse...

Oxalá a morte o tenha surpreendido com o som longínquo das palavras de Rimbaud: «l'eternité, je la vois...c'est la mer melée avec le soleil».