14/09/08

Ainda sobre filosofia e literatura

Ainda sobre Filosofia e Literatura. É muito curioso que Kant comece o Capítulo III da Analítica dos Princípios - denominado "Do princípio da distinção de todos os objectos em geral em fenómenos e númenos", capítulo que tem um lugar central no pensamento do autor - com uma homenagem não a um filósofo, mas ao pai da literatura ocidental, a Homero. Todo o texto do post anterior ecoa as aventures de Ulisses para retornar à pátria. Que o resumo que um autor como Kant faz do seu próprio pensamento seja feito por referência à arte poética e não à filosofia ou à ciência mostra bem a natureza do núcleo central da filosofia. Por baixo da carapaça lógico-argumentativa encontra-se a dimensão da metáfora e da poesia. Nem Kant conseguiu fugir.

7 comentários:

José Ricardo Costa disse...

Mas é óbvio que a Filosofia está cheia de metáforas. Penso, no entanto, que a metáfora na Filosofia não pode ser confundida com a metáfora na literatura, sobretudo, na poesia.
Enquanto na literatura a metáfora se esgota em si própria ( explicar racionalmente uma metáfora é como explicar a flor através do estrume), na Filosofia, pelo contrário, tem um carácter essencialmente pedagógico. Platão, na República, não recorreu à alegoria animado do mesmo esírito que terá levado Homero à Odisseia. Platão recorreu à alegoria para melhor se fazer entender.
Esta passagem de Kant não o transforma num escritor. Será antes aquele tipo de escrita que permite a alguns escritores como Broch, Musil ou Kundera aproximarem-se da Filosofia.
Em suma, há literatura que se aproxima da Filosofia sem deixar de ser Literatura como há Filosofia que se aproxima da Literatura sem deixar de ser Filosofia.
Não me consegues convencer que Shakespeare seja um filósofo ou Kant um escritor. Nem Nietzsche o era.

JR

Jorge Carreira Maia disse...

O Nietzsche, na Origem da Tragédia, acusa Sócrates de ter corrompido Platão, de ter feito morrer o poeta trágico que havia nele e o ter transformado na autor dos diálogos. Mas esses diálogos, a que falta o espírito trágico, são, segundo o mesmo Nietzsche, os precursores do romance moderno. Quanto mais leio Platão, mais estou de acordo com Nietzsche. Estamos perante narrativas, por vezes dramáticas, sobre a aventura de pensar. Recapitulemos a origem da coisa: os primeiros filósofos expressaram-se poeticamente, Sócrates não escreve, Platão fá-lo através de construções dramático-narrativas. Aristóteles traz o ensaio, onde tudo se torna mais raso e insípido. Mas mesmo o ensaio filosófico não deixa de ser literatura.

A filosofia é a narrativa da odisseia de pensar. Mas pensar também é uma acção. As acções na esfera pública narram-se literariamente de forma romanesca. As acções na esfera privada do pensar narram-se literariamente de diversas formas, embora o ensaio se tornasse dominante.

Não te quero convencer de que filosofia é literatura, limito-me a dizer aquilo que penso sobre o assunto. Nem sempre pensei assim, mas cada vez mais isso me parece claro e distinto. Talvez o Hegel tenha falado na odisseia do conceito, seria uma expressão digna dele.

Do que escreves, há duas coisas de que discordo veemente:

1. «na literatura a metáfora se esgota em si própria». Seria demorado explicar que a metáfora só tem sentido na frase metafórica, onde ela aproxima géneros que a experiência habitual tinha afastado. A metáfora reenvia para um conjunto de recombinações dos espaços lógicos.

2. «na Filosofia tem (a metáfora) um carácter pedagógico». Eu diria que esse uso da metáfora é o menos importante. Os conceitos filosóficos são metáforas. Não é por acaso que causam estranheza ao senso-comum. Este protesta com a filosofia não por ela ser «lógica», mas por ser «ilógica». Há toda uma vida interna do conceito que mostra a sua proximidade e dependência da metáfora, por muito que os filósofos protestem o contrário (Ideia, Ser, Acto, Potência, Matéria, Forma, etc. Sao tudo metáforas, ainda por cima vivas, pois continuam a espantar-nos e a dar que pensar).

Mas isto são as minhas reflexões amantes da contaminação. A modernidade é lugar da separação e da autonomia dos discursos. O problema é que estou cada vez menos moderno.

José Ricardo Costa disse...

Continuo a discordar de quase tudo. Restringo-me, no entanto, apenas ao que para mim é mais óbvio: a tese segundo a qual os conceitos filosóficos são metáforas.

O facto de não terem o carácter positivo e operatório dos conceitos científicos, não os reduz necessariamente à condição de metáfora.

Acto e potência,ser, contingência e necessidade, identidade, assim como justiça, liberdade ou bem, não são metáforas.

Se eu digo que a cor do carro, por exemplo, vermelho, ou o estar sentado no café são acidente, não vejo onde está aqui a metáfora.

Não têm nada a ver com a caverna de Platão, o oceano do Kant ou o criado de quarto e a noite em que todos os gatos são pardos (neste caso, vacas) do Hegel.

Quanto ao género literário do Platão penso que ainda teríamos muito para discutir, não sem antes definirmos os conceitos para não cairmos no erro de não sabermos sobre o que estamos a falar ou até de podermos estar a dizer as mesmas coisas sem disso termos consciência. De qualquer modo, independentemente disso, não acho que certas coisas sejam necessariamente verdadeiras apenas porque o Nietzsche as disse.

Mas relativamente à redução dos conceitos filosóficos ao estatuto de metáfora, confesso as minhas francas dificuldades.

Abraço,

JR

Jorge Carreira Maia disse...

A objecção óbvia ao teu argumento é o da necessidade contínua da hermenêutica dos textos e dos conceitos filosóficos. Por acaso, o conceito de symbebekos não é dos menos controversos.

Por que razão estabeleço ligação entre os conceitos filosóficos e as metáforas? Porque partilham do carácter polissémico. São, ambos, uma espécie de obra aberta. Quando os conceitos filosóficos perdem esse carácter polissémico estão mortos, tal e qual como as metáforas.

Os conceitos são cristalizações de metáforas, mesmo os conceitos científicos. Mas aí a positivização faz esquecer, facilmente, esse ligação arqueológica à metáfora. Se isso é assim na ciência, na filosofia então é muito mais chocante.

No fundo da razão opera a imaginação, o fluxo imaginário.

Abraço,
JM

José Ricardo Costa disse...

Quere-me parecer que tu, no fundo, estás a fazer uma aproximação ao positivismo lógico, que, aliás, detestas.

Se leres o Carnap, nomeadamente a leitura que ele faz do Heidegger e do Nietzsche, verás que ele diz o que estás a dizer: que a filosofia, enquanto metafísica, não passa na verdade de uma literatura conceptual que, em termos epistemológicos vale o que vale. Ou seja, não vale nada.

A grande diferença é que enquanto ele encara isso de uma forma negativa e com ares de desprezo pela filosofia, tu fazes disso a própria essência da filosofia. Ou seja, não é desprezível, é a sua própria identidade e também vale o que vale. Ou seja, o mesmo que a Literatura, sendo a própria ciência, o Newton, o Galileu, o Planck, o Heisenberg, o António Damásio, ramos ligados às mesmas raízes da literatura e da filosofia, como se, por exemplo, o conceito de força, de massa ou de emoção tivessem a mesma origem das metáforas do Shakespeare. Eu sei que o Nietzsche, figura que admiro, o defendia. Mas julgo continuar a haver aqui uma enorme promiscuidade.
Mas, insisto, provavelmente estamos aqui a ter um diálogo de surdos. Precisaríamos de, previamente, explicar o que queremos exactamente dizer com certos conceitos (sem recorrer a metáforas!). Um dia destes temos que beber um cognac.

Abraço,

JR
JR

Anónimo disse...

Claro que partilho a leitura do positivismo lógico, menos o «não vale nada». Como dizes, o valor da filosofia estará aí mesmo.

Há uma história dos discursos, e o discurso científico, apesar da ruptura com o senso comum, não deixa de se inscrever nessa história filogenética do discurso, digamos assim. A promiscuidade é grave para o cientista, devido ao problema do obstáculo epistemológico. Mas apesar dessa luta que a ciência trava contra a história dos conceitos e a sua imersão na imaginação, não consegue deixar de remeter para lá, nomeadamente quando que recorre aos modelos (por exemplo, nuvem electrónica)para dar a compreender o que não se dá à intuição.

Na questão do cognac ou de uma bela aguardente de vinho estamos, porém, radicalmente de acordo.

Abraço,
JM

maria correia disse...

Discussão com bastante interesse. Lembrei-me várias vezes da frase de Pessoa «o mito é o nada que é tudo», no poema Ulisses, sendo o herói o mito construtor de toda uma constelação que se espraia pela nossa história e não só. Sendo os mitos construções poéticas,serão, também fazedores de cortes epistemológicos, na medida em que criam uma nova visão do mundo ou Weltannshauung como creio se deverá dizer. Nesse caso, talvez a raiz de tudo seja sempre literária, poética. Perdoem-me a observação, não possuo o vosso conhecimento em filosofia, sois mestres...e eu mera observadora...do mundo.