19/09/08

A necessidade da História

Estava eu a preparar uma aula de 12.º ano para introduzir Platão – espero não ter nenhum processo disciplinar por preparar as aulas ao nível científico – quando deparo, mais uma vez, com a problemática do anthropological turn do século V a. C. Esta viragem na filosofia corresponde a uma mudança de interesse na especulação. A filosofia começa com preocupações cosmológicas, físicas e ontológicas. Mas quando, no século V a. C., chega a Atenas, é o homem que se torna centro do interesse especulativo. São múltiplas as razões, mas o peso do ensino dos sofistas não é coisa sem importância no processo. O interessante, como já aqui falámos, é que o conflito entre escola centrada no aluno (aquela que faz as delícias de Vital Moreira e defendida por Protágoras, naqueles tempos) e a centrada no saber (advogada por muita gente estúpida, onde me incluo, que acha que a escola serve para ensinar saberes efectivos, como defendia outrora Hípias) já vem da própria sofística. Tem cerca de 2 500 anos. A força da escola ocidental, daquela que fez do Ocidente a mais inventiva cultura humana, filia-se na tradição disciplinar de Hípias, refundida pela filosofia grega e pela concepção académica medieval, do quadrivium e do trivium. É esta tradição que, com a modernidade, recebe o enxerto do conhecimento científico e se dissemina em liceus e universidades mundo fora. Assiste-se, agora, a um terrível assalto dos filhos tardios de Protágoras e a uma meticulosa destruição da velha tradição que fez a nossa força. O curioso é que ninguém parece perceber a íntima conexão que existe entre a gradual, mas determinada, perda de influência do Ocidente (aquilo que se chama decadência) e o assalto dos amigos de Vital Moreira à escola pública. É pena que à História já não seja dada a atenção que mercere. Não apenas a uma História narrativa dos factos ocorridos, mas a uma História reflexiva que medite as razões que tornaram certas soluções exequíveis e vitoriosas. Mas a abolição da espessura do passado e a focalização da atenção nesse puro nada que é o momento presente, tão de agrado dos nossos reformistas educacionais, não é outro dos sintomas do niilismo que está a tomar conta de tudo?

5 comentários:

maria correia disse...

Chega a ser triste que textos tão bons e que revelam uma reflexão profunda sobre as coisas não tenham um único comentário. Visito, ao longo do dia, vários blogues, normalmente ligados a livros e à edição, em visitas rápidas de cinco minutos, em pausa do meu trabalho, sempre aqui ao computador... mas habituei-me a demorar-me um pouco mais no «a ver o mundo», que terá, sem dúvida, os seus visitantes, mas, onde, estranhamente são raros ou nulos os comentários. E uma boa parte dos textos aqui publicados merecem que se lhes acrescente algo ou que ...se comente. Passo a citar o autor do blogue:
«O curioso é que ninguém parece perceber a íntima conexão que existe entre a gradual, mas determinada, perda de influência do Ocidente (aquilo que se chama decadência) e o assalto dos amigos de Vital Moreira à escola pública. É pena que à História já não seja dada a atenção que mercere. Não apenas a uma História narrativa dos factos ocorridos, mas a uma História reflexiva que medite as razões que tornaram certas soluções exequíveis e vitoriosas.» Eis, em suma, o se passa, e a observação de que urgiria uma história reflexiva. O problema é esse: a sociedade optou por um modelo de «história narrativa» ou talvez seja possível dizer «uma história de enumeração de acontecimentos»: catástrofes, mortes, casamentos de estrelas, julgamentos, ~incêndios, o novo vencedor do euromilhões, o ronaldo ganhou a bota não sei quê, o Quique FLores isto, o MOurinho aquilo,o furacão Katrina isto, o Ivan aquilo, a bolsa em queda, o assalto à caixa multibanco, a LIli caneças aconteceu, o DR Soares disse não sei o quê. Uma história do «tempo curto» deixando, descansado e abandonado, o «tempo longo». Metralhados diariamente com tanto acontecimento, narrado apenas como acontecimento, esquecemo-nos já das razões e das causas que lhes deram origem...Uma da sfrases que mais ouvi, quando tirava o curso de História era a de que a História era importante porque, com ela, aprenderíamos a não cometer os mesmos erros que no passado...creio que, com a ideologia capitalista neoliberal que se instalou, a frase deixou de fazer sentido. A mensagem que passa é a de que «o homem é assim e smepre foi assim e não há nada a fazer a não ser lucrar o mais possível contra tudo e contra todos.» Não quer dizer que não existam publicações, obras, livros, cinema, artigos de fundo, reportagens que façam uma história «reflexiva». Existem sim e bastantes, graças aos deuses e aos homens. O que acontece com estas reflexões é exactamente o mesmo que se passa no blogue «a ver o mundo»: há pouca gente a dar-lhes atenção e, mesmo que lhes dê atenção, não há «reacção» ou seja, não se comenta, não se discute, não se debate. è pena. Bom, lá vou fazendo o que posso...

José Ricardo Costa disse...

Cara Maria Correia

Tem toda a razão.

Acontece que o tempo da escrita não é igual ao tempo da leitura.

Se os habituais leitores do blogue, comentassem frequentemente os seus textos assim como os textos de outros blogues de qualidade, o dia-a-dia seria dominado por essa rotina.

Ao autor bastará, certamente, o regozijo pela frequência de visitas diárias.

A dedicação de leitores fiéis, justifica, só por si, a existência do blogue.

JR

Jorge Carreira Maia disse...

Agradeço os comentários e a benevolência do julgamento sobre textos de reflexão e poemas. O blogue tem a sua audiência, um pouco menos de 150 visitas diárias, neste momento, mas mais contemplativas e menos interventivas. Não é grave. Blogues que possuem muitos comentários têm audiências incomensuravelmente maiores e assuntos que interessam mais a quem os lê. Só isso. Nestas coisas eu respeito profundamente o mercado.

Muito obrigado,

JCM

maria correia disse...

Caro José Ricardo Costa,
Obrigada pela sua amável réplica. tem razão, também em relação ao tempo de leitura e ao tempo de escrita; mas, por vezes,basta um minuto para se escrever um pensamento...se visitar dez blogues, são dez minutos...bom, talvez seja deformação profissional minha, é do hábito...
M.C.

maria correia disse...

bom, menos de 150 visitas diárias já não é mau...Parabéns, JCM!