13/07/09

Marguerite Duras - India Song 2

Não, o filme de Marguerite Duras, India Song, não envelheceu. Os trinta e quatro anos que passaram não lhe trouxeram rugas nem cabelos brancos. É tão verosímil, ou inverosímil, hoje como o deve ter sido em 1975. A questão que se pode colocar é se aquele objecto é, de facto, um objecto pertencente à categoria “cinema”.

Marguerite Duras diz: “Como eu tenho uma espécie de desgosto em relação ao cinema que tem sido feito, enfim, da maior parte do cinema que tem sido feito, eu queria retomar o cinema do zero, numa gramática bem primitiva… bem simples, bem primária: recomeçar tudo”.

Em India Song as vozes estão deslocadas dos corpos. Os corpos pairam em cenários difusos, são transformados em fantasmas. Os fantasmas aparecem mas não falam. A palavra, seja diálogo ou narrativa, é exterior, uma espécie de comentário à dança corporal que as imagens exibem. Aqui há a conexão com o cinema primitivo, o cinema mudo onde as imagens são acompanhadas ou comentadas por uma música exterior. No filme de Duras, é a própria palavra que é exterior. Na tradição grega, a grandeza do herói reside tanto nas grandes acções como nas grandes palavras, prática e teoria conjugavam-se para tornar memorável, e por isso imortal, um homem.

O cinema, porém, é um produto moderno e a modernidade vive da separação, do cisma entre teoria e prática [em Descartes é tão luminoso o cisma que o filósofo se vê obrigado a adoptar uma moral (princípios práticos) provisória]. A verdadeira essência do cinema é essa separação entre o agir e o falar, por isso o cinema verdadeiro é o cinema mudo, onde apenas existe a mobilização dos agentes para e na acção. Percebemos assim uma estranha conexão entre o agir moderno e o agente fantasmático, como se toda a natureza do homem moderno fosse a de um fantasma, cuja imagem aparece, é literalmente aparição, mas não tem voz.

Mas não é a modernidade o “lugar” onde todos têm voz, onde todos acedem ao espaço público? Onde todos têm voz, já ninguém tem voz. A voz é um princípio aristocrático e não democrático. Mas na modernidade, essa modernidade cuja essência se revela numa arte mecânica como o cinema (que “estranhas” relações se podem estabelecer entre a mecânica e a cinemática), não se disseram e não se dizem coisas interessantes? Sim, mas Duras mostra no filme, de uma forma cruel, o alcance do dizer moderno: puro comentário. A voz na modernidade é comentário, sobreposição nascida da separação, voz que vem do além. Na modernidade não há heróis, pois às grandes acções não correspondem grandes palavras.

India Song é uma história de amor. Não. É um comentário narrativo a uma história de amor. Melhor, é um exercício cinematográfico que tenta conjugar o que não tem conjugação: a história e o amor. Não há histórias de amor. Onde penetrou a história morreu o amor. O filme de Duras fala-nos de tudo isso: da separação entre palavra e corpo agente, entre história e amor, entre modernidade e pré-modernidade (a Índia, o Ganges, os leprosos, tudo isso que já não vemos, apenas suspeitamos), fala-nos essencialmente da mortalidade a que estão confinados, por terem perdido a voz, os que cometem grandes acções.

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