03/07/09

Grandes Armazens do Chiado

O fascínio do passado reside na sua imperfectibilidade. Eu sei que as nossas representações desse passado são perfectíveis, mas o passado em si é absolutamente perfeito e como tal imposível de aperfeiçoar. Quando nos deparamos com algo vindo do passado, a primeira coisa que damos conta é da sua absoluta superioridade relativamente ao presente. Nisto não há nostalgia, mas apenas a constatação de um facto. O presente não passa de um híbrido entre o que está concluído e o que está em aberto. O passado, pelo contrário, é um animal de raça pura, de pedigree assegurado, nele não há possibilidades em aberto, tudo está fechado, concluído, feito, perfeito. Por exemplo, estas imagens que recolhi no Beautiful Century (um blogue a visitar regularmente) são a prova do que está dito. Comecemos então a digressão pelos Grandes Armazéns do Chiado, no ano da graça de 1910. Esta primeira imagem diz respeito à back cover do winter catalog, como escreve a autora do blogue. Em 1910, os Grandes Armazéns do Chiado eram um império distribuído pelo país fora. Aveiro, Braga, Faro, Coimbra, Evora (sem acento), Portalegre, Covilhã, Lisboa, Porto, Setubal (sem acento), Vizeu (assim mesmo), Funchal, Caldas, Beja, S. Miguel. Tenho a ideia de ver antigas fotografias de Torres Novas com uma agência dos Grandes Armazéns do Chiado, na praça 5 de Outubro. Como se vê, a proliferação dos hipermercados não é uma invenção do eng.º Belmiro de Azevedo. Já no tempo da Monarquia isso acontecia. Uma viagem atenta pelos desenhos não deixa de ser particularmente interessante. Toda uma lição de sociologia pátria está ali inscrita. Atente-se apenas nas figuras humanas das imagens referentes a Lisboa e à Covilhã. O que me fascina, porém, é a ortografia. Falo menos na acentuação, muito diferente da nossa, mas da grafia de certas palavras. Por exemplo, paiz em vez de país, ou succursaes em vez de sucursais. Que distância e que distinção.

Já imaginou a inexistência do pronto-a-vestir? Talvez. Concebeu um mundo de alfaiates, modistas e costureirinhas a receber nos seus ateliês particulares os clientes. Sim, isso é verdade, ainda me lembro bem desse mundo ser praticamente dominante, mas em 1910 a vida material era já muito mais complexa. Veja-se esta página, a 33 do catálogo dos Grandes Armazéns do Chiado. Ensina a tirar medidas, para depois se efectuarem encomendas de roupa. A elegância era assinalável. O que se podia encomendar? As senhoras, capas e confecções, vestidos, calçado, chapéus e luvas; os homens, camisas, casacos, collarinhos e colletes (o duplo "l" como sintoma de civilização), calça (no singular) e essa inesquecível peça de lingerie masculina que dá pelo nome de ceroulas, cujas medidas são as das calças. Também há fatos para os meninos e vestidos para as meninas. Mas o supremo encanto da página é os plissés (mais tarde falava-se em plissados). Dois tipos de plissés, os Soleil e os accordeon (os primeiros com letra maiúscula e os segundos com minúscula), ou deitado. São executados nos ateliês da casa. Também há recortagem (mas aqui falta-me a cultura para perceber se diz respeito aos plissés ou não) à machina, o que é bem diferente de recortagem à máquina, coisa mais ligado à metalurgia e à metalomecânica.


A página 32 do catálogo de inverno de 1910, um catálogo imaginado em plena Monarquia, e que entrou em vigor no início da República, traz-nos os edredons. Quase todos de setim liberty e com enchimento duvet francez. Quantos enigmas aqui? Hoje escrevemos cetim. A palavra chegou até nós vinda de França, onde se diz satin, e tem a sua origem no árabe zaituni referente à cidade chinesa Zaitun, onde o tecido era fabricado. E no simples setim temos uma prática ancestral de globalização que nos faz sonhar com desertos e rotas da seda, camelos e oásis, estreitas sendas e longos poentes. Nada mais evidente, porém, do que a adjectivação do setim, liberty. Que propriedade que não a liberdade poderá vir ao espírito quando se pensa em setim ou mesmo em cetim? Um setim liberty com enchimento francez duvet. Duvet? Claro, duvet a palavra francesa para penugem, para o conjunto de penas que enchem o edredon. Uma coisa é ter um edredon de penas e outra, totalmente diferente, é possuir um edredon duvet, ainda por cima com setim liberty. Repare-se como a vida material é tão pouco material, como ela depende do espírito. Talvez não exista coisa mais espiritual do que a vida material. Mas não deixemos passar em claro um pormenor significativo: o enchimento duvet, que já não é um enchimento qualquer, é feito segundo os preceitos da hygiene. Não é apenas a nobreza do "y" que nos cativa e que indica o caminho de degradação popular que vai da era da hygiene aos nossos rudes tempos da higiene. Há ali toda uma dedução de carácter kantiano, que pressupõe o imperativo categórico do respeito pela pessoa enquanto fim em si mesmo, para chegar aos preceitos que defendem essa pessoa através da hygiene do enchimento francez duvet. Que tempos!

Como já foi dito, nada há mais espiritual do que a vida material, e esta não é nada se não tiver em conta aquilo que nos alimenta. Por exemplo, lentilhas, ervilhas, favas e grão não levantam o problema da diferença ontológica. São o que são e não têm qualificativo. Diríamos que são transversais. Já o feijão é diferente. Há o feijão suisso (assim mesmo), o frageolet, o soisson e o cabreiro, e por mais caro que seja o cabreiro, alguém de boas famílias o pedirá? Pelo contrário, um feijão frageolet ou soisson é digno de ser encomendado pelas melhores famílias da pátria. Novidade ou quase deveria ser o vinho engarrafado. O Carcavellos, branco (150 réis) ou tinto (120 réis), era vendido em garrafões ou barris de 5 litros. Uma elegante garrafa enrolhada e capsulada automaticamente do Carcavellos brancos custava 100 réis. A manteiga era vendida em lata, manteiga do Dão ou manteiga da Praia d'Ancora. O café Princeza era vendido em lindas latas axaroadas (não sabe o que é? nós também não). A página 31 do catálogo de inverno dos Grandes Armazéns do Chiado é uma introdução, delicada mas informativa, à dieta das classes médias no início da República ou no fim da Monarquia, conforme preferir.


Como vê, caro leitor, o passado é absoltamente imperfectível, pois ele é belo e perfeito. E é de tal maneira perfeito que basta umas quantas páginas de um catálogo comercial para deixar manifesta a sua inexcedível beleza. O que nos dá a esperança de, quando formos definitivamente passado, a beleza nos tocar.

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