13/10/07

Crónicas Normandas IV - A razão no cemitério

O que me surpreendeu, sem que isso devesse acontecer, ao entrar nos cemitérios militares alemão e americano, na Normandia, foi o excesso de racionalidade da sua concepção. Não sabia o que deveria esperar, tinha algumas imagens do cemitério americano construídas com base no ouvir dizer, mas nada me preparara para o espectáculo de racionalidade que, em ambos, se espraiou perante o olhar. É possível que todos os cemitérios, pelos menos os modernos, obedeçam a princípios de ocupação racional do solo. Mas não é essa racionalidade arquitectónica a que me refiro. Falo de uma estranha racionalidade geométrica, um zelo decorativo, ao mesmo tempo simples e aberto e tranquilo e grandioso, do espaço onde repousam os militares mortos em combate.

Naqueles cemitérios, a morte é mais asséptica do que nos civis, pensei mal entrei no cemitério alemão, confirmei a sensação no americano. Há uma clara encenação de qualquer coisa. Todos aqueles espaços, belos espaços, constituem o cenário de uma mistificação. Há ali uma razão que oculta a realidade, que a esconde dos olhos ímpios dos visitantes, que oferece uma imagem suave e leve da carnificina real que levou para ali os despojos humanos que lá repousam.

No reverso do cenário, debaixo de cruzes e lápides, velados pela relva verde tão bem cuidada, estão corpos fragmentados, ossos de onde os músculos voaram pela força das bombas, restos de gente a quem a morte chegou na precipitação do combate. Quem está ali não morreu de morte natural, nem a doença, prolongada ou súbita, assinalou para o trânsito final. A ceifeira chegou atarefada, cansada de tanta colheita, e apanhou os corpos como pôde. Na guerra, não há tempo para preparar a morte, para escolher os eleitos, para lhes dar um último sinal. É obscura a razão que opera nos campos de batalha, uma razão fincada no acaso, em jogos aleatórios, na sem razão do que acontece. Rios de sangue, vísceras a céu aberto, crânios estilhaçados, corpos dilacerados, gritos sem fim, o roncar dos carros de combate, as metralhadoras que crepitam, a explosão de bombas e granadas. Ali antegoza-se o inferno.

Quando olhamos estes campos relvados, as campas perfiladas sob um céu de cinza, já não vemos nada do que levou aqueles homens a escolherem-nos para morada eterna. Repousam tranquilos, como se amanhã pudessem sair das suas campas e correr por ali fora, conversar com outros mortos, aspirar o ar marítimo tão próximo. A razão geométrica que comanda estes espaços é uma mentira piedosa, uma mentira que visa apaziguar não a revolta dos que morreram, mas a consciência dos que vivem. Que tranquilos são estes espaços, dizemos, e pegamos nos nossos corpos, ainda inteiros, e seguimos viagem. Ali nada aconteceu. A razão não passa de uma grande actriz.

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