22/10/07

O BCP e os valores de Antígona

Consta que Jardim Gonçalves terá pago, na integralidade, a dívida do filho ao BCP. Consta também que se terá demitido de todos os cargos no Banco. A história do BCP, nos últimos tempos, é exemplar daquilo que é a cultura dominante em Portugal. Deixe-se de lado pormenores como os da luta para controlo da administração do Banco, deixe-se de lado inclusive o timing da descoberta de créditos aparentemente em desacordo com a lei. O que é importante nesta história não é a questão legal, nem a questão do poder dentro do banco, o que é importante é a cultura subjacente ao que se está a passar.

Para além da cultura de neutralidade, objectividade e racionalidade dos actos de gestão imposta pela lei e propagandeada pelo credo liberal, existe um conjunto de valores que se inscreve no tecido social e que poderíamos denominar como os valores de Antígona. Antígona, na tragédia de Sófocles, estava perante um dilema: obedecer à força da lei política, que a impedia de dar sepultura ao irmão caído no ataque à própria cidade, ou obedecer à lei do coração e do sangue e cumprir os rituais fúnebres e dar descanso à alma daquele que era sangue do seu sangue. Triunfou, em Antígona, a lei do sangue. Ora esta história é uma história do mediterrâneo, é um elemento fundamental das nossas culturas do sul: a proximidade do sangue ou do interesse daqueles que são nossos amigos acaba por se sobrepor à abstracção da lei.

O que se passa no BCP é mais uma manifestação de um velho conflito entre o sentimento quente e familiar e a razão fria e abstracta. Quando o discurso liberal, quando os políticos de serviço, vêm verberar, na Europa do Sul e no mundo mediterrânico em geral, o peso do Estado e os malefícios e inoperâncias desse mesmo Estado e, ao mesmo tempo, incensam a iniciativa privada, estão a falar de cor e mostram a sua profunda ignorância da realidade: a cultura determinante dos comportamentos é anterior, para espanto dessa gente atarantada, à clara diferenciação moderna entre o público e o privado, entre o estatismo e o liberalismo. Se queremos ser honestos, deveremos dizer claramente que o que se passa no Estado, central e local, não é substancialmente diferente do que se passa nas empresas privadas. Tanto num lado como no outro, triunfam os valores de Antígona. É este o drama português: não há racionalidade nem nas empresas nem no Estado. Para onde quer que nos voltemos, lá se encontra Antígona ajoelhada perante o traidor, que era seu irmão.

O pobre Sócrates não teria feito muito do que tem feito, se tivesse um mínimo de leituras e de reflexão pessoal, se tudo aquilo que tem na cabeça não derivasse da moda do dia e do ouvir dizer. Em sociedades dominadas, como a nossa, pelos valores de Antígona, o Estado tem, por vezes, a estranha capacidade de, aqui e ali, promover alguns comportamentos racionais e abstractos de igualdade entre cidadãos. Curiosamente, são esses mecanismos que Sócrates tem vindo a destruir e a devolver a capacidade de decisão àqueles que se regem pelos valores de Antígona: os valores em que quem está em primeiro lugar não são os melhores em abstracto, mas os melhores são aqueles que estão próximos de quem toma as decisões. A destruição do Estado proposta pelos dois grandes partidos portugueses só tem uma consequência: fazer com que os valores de Antígona sejam completamente vitoriosos em qualquer lugar da sociedade. Numa sociedade pateticamente meritocrática como se pretende a nossa, quem são os melhores? Os melhores são os nossos familiares e os nossos amigos, políticos ou outros. E há muitas formas de estabelecer amizades... Como já aqui disse este é um caso digno da Antropologia Cultural.

1 comentário:

jlf disse...

Boa peça.
Óptima análise. Estruturalmente impecável.

Mas uma dúvida teima em me atentar... "Em sociedades dominadas, como a nossa, pelos valores de Antígona"...

Acha?
A avaliação dos valores de Antígona exige uma certa postura reflexiva...