11/10/07

Maria Filomena Mónica, "Cavaco Silva e a Educação"

Se bem se lembram, foi ele [Cavaco Silva] o homem que mais duradouramente ocupou o poder desde o 25 de Abril. Nunca alguém mandou tanto e durante tanto tempo. Se ideias tinha sobre a reforma da escola, teve dez anos para as executar. Ora, o que assistimos ao longo da década de 1985 a 1995 foi à permanência dos dislates pedagógicos veiculados pela esquerda e, mais tarde, interiorizados por uma direita analfabeta. Durante os X, XI e XII governos constitucionais, a que Cavaco Silva presidiu, ocuparam a pasta da Educação João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, Manuela Ferreira Leite, Diamantino Durão e Couto dos Santos. Até por ter sido o que mais tempo se manteve no posto, vale a pena relembrar o papel de Roberto Carneiro. Curiosamente, sob o seu consultado, a estratégia seguida pelo Bloco Central não se alterou. Foram adoptados os mesmos valores, agravados até por o ocupante da pasta se querer distanciar da direita. Os gabinetes de estudo mantiveram-se e os programas tornaram-se ainda mais palavrosos. Sinceramente, não sei o que deu a este país para que os engenheiros tenham uma especial apetência pelo Ministério da Educação. Licenciado em Engenharia Química, Carneiro cedo trocou os laboratórios pelos gabinetes educativos, o que acabaria por lhe conferir o título honorário de Doutor em Ciências da Educação. (...).

Ao dar rédea solta ao seu ministro da Educação, Cavaco Silva assumiu responsabilidades na forma como o sistema educativo evoluiu. O pensamento de Roberto Carneiro é difícil de ser contestado, até porque, em geral, aparece envolto numa retórica de onde é difícil extrair qualquer conteúdo. Mas vale a pena tentar. Dou uma amostra, retirada de uma recente conferência proferida na Universidade Católica: "Falar de pessoas, de pessoas concretas e não abstractas, e não apenas de currículos teóricos ou de políticas globais, impõe uma pergunta capital: onde estão as pessoas na educação? Onde estão os seus dramas? E as suas tragédias? (...) E, ao falar de pessoas, únicas e irrepetíveis, vem-nos à mente aquelas que não são apenas portadoras de inteligência cognitiva, mas aquelas - todas - que são dotadas de múltiplas inteligências e múltiplos talentos, os quais têm sido sistematicamente coarctados, reprimidos e minimizados no nosso sistema educativo". Continua: "A inteligência comunicacional, as inteligências do coração - a inteligência afectiva e a inteligência emocional -, a inteligência estética, a inteligência moral ou a capacidade de discernimento reclamam novos equilíbrios na educação e diferentes gestões do que é verdadeiramente importante numa escola". Depois, surge a vénia ao relativismo cultural: "A Educação tem obrigatoriamente de aceitar o diverso, como uma riqueza essencial do seu múnus, ou então está a fazer tudo menos libertar, emancipar de servidões, cortar com preconceitos". Uma das consequências desta tese consiste "na aceitação pura e simples de que o conhecimento - melhor, o saber -, ao invés das convicções acumuladas durante mais de duzentos anos de positivismo racionalista, não reveste carácter predominantemente objectivo". Por fim, argumentava: "Neste entendimento, a posição de cada um - a base étnica, o génder, o escalão etário, a origem rural ou urbana, a história de vida - é essencial para o processo de construção do seu próprio conhecimento, para a cognição, a percepção e a transmissão do conhecimento assim cerzido", de onde derivaria que o conhecimento não cabe num livro nem pode ser transmitido por um docente, cuja função não consistiria em "administrar conhecimento objectivo", devendo tão-só limitar-se a contribuir para que os "saberes", escondidos nas almas das criancinhas, tivessem condições para desabrochar.Foi esta retórica romântica que, ao minimizar o valor do conhecimento, o legado da civilização ocidental e o papel do professor, conduziu ao caos pedagógico em que vivemos. Não se trata de atirar todas as culpas de uma trajectória infeliz para cima das costas do Presidente da República, mas de relembrar que, nos tempos modernos, houve duas, e só duas, reformas educativas: a de Veiga Simão, sobre a qual, noutro momento e local, me pronunciei, e a de Cavaco Silva-Deus Pinheiro-Roberto Carneiro. [Maria Filomena Mónica, Cavaco Silva e a Educação, Público de 11 de Outubro de 2007]

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Só uma nota final. É todo este lixo ideológico trazido por Roberto Carneiro que está a ser imposto nas escolas por Maria de Lurdes Rodrigues e Valter Lemos. Entre os dois ministros há uma perfeita continuidade e aquilo que Roberto Carneiro tentou impor de forma doce e suave está, agora, a ser imposto pela força. Como toda a gente que se interessa pelo ensino perceberá, o desastre ainda vai ser maior. Vão às escolas e falem com professores e observem não a propaganda governamental, mas a realidade escolar.

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