30/09/08

Tão ínfima a esperança, o mar a esconde

Charles Amable Lenoir – A dance by the sea

Tão ínfima a esperança, o mar a esconde,
e tamanha a luz que meus olhos vêem.

Não fora o vento, e um véu de palavras
cobriria o teu corpo e seriam folhas
e penas e restos de jornal:
da avidez do olhar te roubariam.

Mas o deus veio e com as suas flautas
acordou a brisa que corre,
e como se fosse um rio levou-te,
na melancolia da tarde,
de minhas mãos surpresas
para o silêncio que desagua
numa dança de gaivota
ao cair no mar.

Do nosso parentesco

De todo o ente existente, o ser vivo é provavelmente para nós o mais difícil de pensar, pois ele é, de uma certa maneira, o nosso parente mais próximo e ao mesmo tempo está separado por um abismo da nossa essência ek-sistente. Em troca, poderá parecer que a essência do divino nos seja mais próxima que esta realidade impenetrável dos seres vivos; compreendo por isso: mais próxima segundo uma distância essencial, que é como distância, todavia, mais familiar à nossa essência ek-sistente que o parentesco corporal com o animal, de natureza insondável, dificilmente imaginável [Heidegger, Lettre sur l'humanisme].

Madredeus "O Pastor" (Live)

Tranquilidade

Percebo, um primeiro-ministro não pode fazer outra coisa, mas que garantias pode José Sócrates dar daquilo que diz? Será que os portugueses com poupanças podem estar tranquilos? E os muitos portugueses que não têm rendimentos nem para ter poupanças, também podem estar tranquilos? Diz, o primeiro-ministro, que a culpa é dos americanos. Claro, mas os europeus, coitados, nunca alinharam em nada daquilo, nem fizeram proselitismo dos novos tempos da economia mundial. Mas para que serve culpar agora os americanos? O importante é compreender até onde vai a interdependência das economias. Tranquilidade? Mas não é quando o mar está mais tranquilo que ele é mais perigoso?

29/09/08

Tão longe te levam os sonhos

Friedrich von Amerling - In Traumen Versunken

Tão longe te levam os sonhos
e tão serena pousa a mão
sobre o véu que ao pensar cobre.

Não é Deus que está em teus olhos
nem a fímbria da tarde
ou um bando de aves a esvoaçar
sobre os plátanos de Abril.

Se orasses, a que deus pedirias auxílio
para o leve estremecimento
que em teus lábios espreita?

Houvera um deus das tempestades
e tudo em ti clamaria
para que, por ardil ou maldição,
do vento bonançoso fizesse
ventania e vendaval e furacão.

Chick Corea & Gary Burton Duet - Monks Dream

Da essência da leitura [à maneira de Borges e para a m/amiga Gláucia Campregher]

Em novo lera muitos livros, mas chegado aos trinta anos descobrira que tanta informação pouco ou nada o fizera aprender. Decidiu, então, ler um só livro o resto da vida, mas lê-lo continuamente até descobrir o segredo que lá se ocultaria. Hesitou. Talvez a Bíblia devesse ser o livro escolhido, ou o D. Quixote, porventura a República. Por fim, elegeu a Ilíada. Ao fim de dez anos, sentiu que ainda assim havia excesso de palavras e o progresso na aprendizagem era pouco. Decidiu que apenas leria, mas leria total e completamente, o chamado catálogo das naus. E assim fez durante outros dez anos. No dia do quinquagésimo aniversário a razão segredou-lhe que o melhor seria apenas ler um e só um verso. Aí não teve dúvidas. Escolheu o primeiro da Ilíada, pois nele está já contido todo o poema. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, lia ininterruptamente: «Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida». Quando fez oitenta anos, já há vinte, de manhã à noite, que apenas lia uma palavra: «cólera». A morte surpreendeu-o pela tarde luminosa de um dia de Junho. A face mantinha o sorriso de quem aprendera a suavizar o coração. A boca, porém, diz quem o viu, continuava a dizer pausadamente có-le-ra, có-le-ra, có-le-ra…

Pobre escola portuguesa

A FENPROF pede reunião urgente com a ministra da educação (Público). Alega o clima de mal-estar que se vive nas escolas, a pouca disponibilidade que os professores têm para o ensino. Independentemente das culpas da FENPROF em muitas das idiotices que caíram, ao longo dos anos, na escola portuguesa, a central tem, neste caso, quase toda a razão. A que lhe falta reside na pressuposição de que a ministra e o seu ministério estejam preocupados com o clima das escolas ou com as efectivas aprendizagens dos alunos. Não o estão, como todos nós o sabemos. Apenas esperam que chegue ao fim a legislatura, para se livrar do fardo que criaram. Nem sequer são eles que vão a votos, mas o engenheiro.

Uma questão de segurança

As pedras maiores são normalmente colocadas sobre as sepulturas dos mais ricos, pois é de temer que invejem a herança aos descendentes e tentem recuperar o que perderam. Os pesados blocos colocados sobre eles por segurança são, naturalmente, com uma astúcia ilusória, disfarçados de monumentos de uma profunda veneração. É significativo que seja desnecessário fazer tal despesa quando desaparece um dos nossos irmãos mais humildes que à hora da morte, provavelmente, não tem mais nada a que possa chamar seu além do fato que o amortalhou, pelo menos foi o que pensei enquanto, das filas de sepulturas mais altas, contemplava o cemitério de Piana e as coroas prateadas das oliveiras para lá do muro, até ao Golfo de Porto que reluzia ao longe [Sebald, Campo Santo].

Presunções

Nunca conheci homem mais presunçoso do que eu próprio, e o ser eu a dizê-lo mostra que é verdade o que eu digo.

Nunca pensei que alguma coisa tivesse que ser alcançada, sempre pensei que já a tinha. Se me tivessem posto uma coroa na cabeça, eu teria pensado que não havia coisa mais natural... [Goethe, Auto-Retrato]

28/09/08

Trazem nos olhos um voo de gaivotas e

Sophie Gengembre Anderson – Birdsong

Trazem nos olhos um voo de gaivotas e
por isso repousam em suave quietação,
levemente tocadas pelo vento,
enquanto um ar de assombro desenha
mapas de urze sob a capa do sentimento.

Ainda não choram,
pois trazem toda a inocência
na nudez daqueles pés tão leves,
à terra mal a tocam.

Mas quando o corvo vier
e o canto dos pássaros vespertinos
se tornar em vermelho grasnar,
não haverá gaivotas que em voo
aos olhos possam serenar.

Atahualpa Yupanqui - Alazán

Da muita música, de incidência política, que se ouvia nos anos quentes da década de setenta, a de Atahualpa Yupanki, pelo menos para mim, nunca perdeu o encanto. Muita da outra não era música, mas a de Yupanki, sim. Depois, há esse cruzamento estranho entre a nostalgia poética e a própria voz do artista. Ainda hoje, por vezes, oiço os discos de Yupanki e sinto um certo reconforto espiritual.

Atahualpa Yupanki y Borges- El Legado (Extracto 5)

As histórias cruzadas de Borges e de una paisanita iletrada, vizinha de Yupanki, são uma belíssima lição sobre a relação do homem com o mundo. A voz profunda e grave do músico argentino, a voz de um grande narrador, ajudam a tornar verosímil a lição moral que as habita.

Ah, este vazio!


Ah, este vazio! este vazio que sinto no peito! Muitas vezes penso, se pudesses uma vez, pelo menos uma vez, tê-la nos braços, bem junto ao coração, como este vazio ficaria ocupado... [Goethe, A Paixão do Jovem Werther]

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Hoje o jovem Werther apenas poderia dizer assim:

Ah, este vazio! este vazio que sinto no peito! Quantas vezes a tive nos braços, bem junto ao coração e como este vazio me consome o coração e o ocupa...

Em pouco tempo, considerando o devir da História, passámos da ilusão romântica à desilusão. O vazio, porém, ficou.

Planeamento em Portugal

Portugal é um país com elevada capacidade de planeamento. Vejamos o caso dos médicos. Neste momento, trabalham já em Portugal 4287 médicos estrangeiros e o governo prepara-se para permitir mais contratações de médicos sul-americanos (Público). Outro caso notável de planeamento é o do excesso infinito de professores que foram produzidos país fora. Perante tão notáveis casos, as perguntas que devemos fazer são as seguintes: que forças se movimentaram pela noite para que as universidades portuguesas não produzissem atempadamente os médicos de que, segundo parece, necessitamos? Que forças se movimentaram para que escolas superiores de educação e universidades produzissem tanto licenciado na área da educação? Responder a estas questões pode ajudar a perceber aquilo que somos. É um exercício tão interessante como a compreensão da história das casas camarárias no município de Lisboa.

O caso austríaco

Se se confirmarem as previsões feitas à boca das urnas, dois partidos de extrema-direita austríaca atingirão, nas eleições de hoje, um resultado à volta dos 30% de votos. Há dois caminhos para ler o acontecimento. Por um lado, poder-se-á achar que os austríacos são especialmente perversos e que estão a fortalecer aquele campo político só para aborrecer as boas consciências europeias. Por outro, haverá a possibilidade de olhar para a Áustria e tentar compreender o que está a correr mal no projecto europeu e na orientação política que o mundo ocidental decidiu escolher na sequência do fim da “Cortina de Ferro”.

O exemplo sul-americano

O referendo equatoriano de hoje sobre uma nova constituição de teor socializante é mais uma peça do interessante jogo político que se está a desenrolar na América Latina. De uma forma democrática, como já tinha acontecido, em 1973, no Chile de Allende, a imensa mole de pobres está a permitir uma inclinação à esquerda (não confundir com a esquerda europeia) das governações de muitos países da zona. Ora o que se está a passar ali não é imediatamente transferível para a Europa. No entanto, se as políticas de pauperização e proletarização das classes médias continuarem, a tentação do exemplo sul-americano renascerá. De todos os países europeus, Portugal será aquele que está mais exposto. As sondagens, com as intenções de voto no PCP e no BE, são já um sintoma disso.

27/09/08

Cerrada sobre si, colhe narcisos

John William Waterhouse – Narcissus

Cerrada sobre si, colhe narcisos
para com eles compor os ramos
que à casa trarão a luz da tarde
ou uma lua de cal pela madrugada.

De pés nus, caminha assim tão concentrada
e se flecte a perna sob o véu do meu olhar
é para que da terra não venha uma nuvem
ou da ardósia nasça um grifo a transpirar.

De tão perdida,
deixa o seio naquele leve baloiçar…

Os olhos não os tira do chão
e se a mim me cega o ombro nu
a ela só a branca flor,
em silêncio a colhe
como se fora um espelho a cintilar.

Benfica 2 - Sporting 0

Não é que seja inabitual, mas sabe sempre bem ganhar ao Sporting. O grande problema, porém, é que eu não consigo identificar quais os jogadores do Benfica e quais os do Sporting. Vejo na Internet que os golos foram marcados por Reyes e Sidnei, mas não sei se foram golos de benfiquistas ou autogolos de jogadores do Sporting. Seja como for, a coisa ficou menos carregada.

As razões do silêncio

Tem toda a razão Medeiros Ferreira. O PSD nada tem a oferecer de diferente daquilo que o PS decidiu dar ao país. O silêncio de Ferreira Leite não é astúcia estratégica, apenas a confissão de que José Sócrates é o efectivo chefe do PSD. As contas que se fazem em S. Bento, não o esqueçamos, ou na S. Caetano, à Lapa, prognosticam uma maioria relativa do PS, seguida de turbulência política e, por decisão presidencial, dissolução da Assembleia da República com novas eleições. Aí, presumem os estrategas, o povo entregará a governação de mão beijada ao pessoal da laranja. Mas será isto assim tão líquido?

João Donato - Minha saudade, de João Gilberto

Ó Magalhães, Magalhães...

O Magalhães é uma arma poderosa da propaganda do governo não porque seja quase dado ou porque confira à governação uma faceta tecnológica que falta ao país, mas porque está de acordo com o Zeitgeist. Numa sociedade cuja finalidade parece ser o retorno ao útero materno, os processos de infantilização social são sempre recebidos com manifesto agrado. Não há nada que mais se tema, hoje em dia, do que a seriedade de se ser adulto e, portanto, a leveza da infância é um desiderato, um passo crucial no caminho para dissolução intra-uterina. O Magalhães é o brinquedo perfeito acessível às grandes massas de pobres e semi-pobres que os governos ajudaram a fazer ou não evitaram que acontecessem. Sem Igreja nem o futebol credível ao domingo, ao poder político resta apenas a invenção constante de pequenos artifícios para manter a turba na infância a que aspira. Ó Magalhães, Magalhães, para que estava guardado o teu pobre nome…

Sobre este Magalhães ver aqui, aqui e aqui.

Experiências de invisibilidade

Quando escrevia o post anterior, lembrei-me de uma outra ocorrência passada, há meses, num daqueles restaurantes de referência, garfo de ouro do Expresso, que se encontram relativamente perto de Torres Novas. Chegámos e entrámos para uma sala onde havia apenas outro casal. Fomos sentados numa mesa suficientemente longe desses comensais. Passado pouco tempo, ficámos sozinhos. Até que chega um novo casal, gente cinquentona como nós, acompanhado pela mãe dele. Falavam alto e nasalavam as palavras, marido e mulher por pouco não se tratavam por tio e tia. Evidenciavam uma boa instalação na vida e a frequência dos sítios certos. A mãe dele olhava para a nora com a habitual condescendência que se tem quando se acredita que os filhos não souberam escolher a mulher. O empregado teve a infeliz ideia de dizer “podem escolher, estejam à vontade” (é aqui que eu começo a desconfiar dos garfos de ouro). Ora um português nunca deve ser deixado à vontade. Entre as múltiplas mesas existentes na sala vazia, a única que interessou a estes extraordinários portugueses deixados à vontade foi a contígua à nossa, ali mesmo a uns escassos 50 a 70 cm do meu prato. A esta primeira amabilidade que me fez acreditar possuir o poder da invisibilidade, acrescentaram, perante o silêncio constrangido em que tomámos a refeição, ainda as suas ruidosas opiniões sobre isto e aquilo e até sobre uma pessoa que, por acaso, conhecíamos muito bem de outras paragens. Por vezes, penso que sofremos de um défice de qualquer coisa, ou de um superavit de estupidez.

Escola centrada no aluno

Estava a almoçar num restaurante. Chega um grupo de adultos acompanhado por três crianças com idades abaixo dos quatro anos. O silêncio e a discrição que reinavam foram substituídos por um mar infinito de guinchos e gritos. As crianças, perante a complacência feliz dos adultos, exprimiam todo o seu ser, dando-nos, a nós felizes comedores, a oportunidade de partilhar a berraria da sua felicidade. De um momento para o outro, naquela sala, já só existiam as crianças. As conversas sussurradas suspenderam-se por impossibilidade prática de prosseguirem o seu rumo tranquilo. Admirável mundo novo este que prepara a criançada, desde tão tenra idade, para a escola centrada no aluno.

26/09/08

Não havia frestas naquele coração

Albert Edelfelt - Naisen Pää [Portrait of a Young Lady] - 1885

Não havia frestas naquele coração,
nem a areia da melancolia parava
o gume acerado da rocha
que rasga o duro casco do navio.

Se o mundo ainda não cabe todo no olhar,
não tardará a hora onde um reino de flores
se erguerá como um inverno de raízes
a prender as chamas em erupção.

Quando caminha leva a sombra consigo
e se a luz adormece ao entardecer,
não haverá outra para a noite
senão a daqueles olhos ao arder.

Luiz Bonfa Plays his Bossa Nova tune "Sambolero "

Luís Bonfá, um dos grandes músicos do Brasil.

Blaise Pascal - Da dificuldade do mal

O mal é fácil. Há uma infinidade dele. O bem, quase único. Mas um certo género de mal é tão difícil de encontrar como aquilo a que chamamos bem; e com frequência se faz passar com marca do bem este mal particular. É preciso mesmo uma extraordinária grandeza de alma para a ele chegar, da mesma maneira que se chega ao bem (Pens., 408).

O que não sabemos

O que não sabemos sobre o falhanço do plano Bush, o dos 700 mil milhões de dólares, para a crise financeira americana é provavelmente o mais interessante: que interesses se jogam, nos bastidores, de tão súbito e tão grande amor pela intervenção estatal? E que interesses incendeiam os corações republicanos que, mesmo com a bênção presidencial, a recusam?

Jornal Torrejano, 26 de Setembro de 2002

Ufff, que dia de calor. Não há cérebro que funcione. Mas, com calor ou sem ele, hoje é dia de nova edição do Jornal Torrejano e ainda por cima a edição que assinala o fim de 14 anos de existência, e o começo do décimo quinto, desta nova série. Parabéns, para aqueles que o fazem. Destaque de primeira página para a visita da eurodeputada Ilda Figueiredo à Fiação e Tecidos de Torres Novas. Os motivos, ordenados em atraso, não são os melhores. Referência também para a passagem da chama da solidariedade pelo concelho.

Na opinião, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Depois, passe-se para a muita escrita desta semana. Carlos Henriques escreve Liga volta depois da UEFA, Francisco Almeida, Terceira Jornada, Inês Vidal, Sem medo, João Carlos Lopes, Um desastre fatal chamado terceira divisão, o dono deste blogue, Dos benefícios da História, José Ricardo Costa, Oxford, Miguel Sentieiro, O Estreito de Magalhães, Santana-Maia Leonardo, As reprovações e a Educação Física.

Já está, para a semana inaugurar-se-á o 15.º ano de edição. Então, bom fim-de-semana.

25/09/08

Não é o velho filme de Bertolucci

Marcus Stone - The End of the Story (1900)

Não é o velho filme de Bertolucci
onde Olmo e Alfredo recebem na carne
a flor que cinde casas e ruas, homens e mulheres,
a espada de cinza que faz e desfaz
as ternas violetas do amanhecer.

Apenas um gato ronrona
sob a sábia tranquilidade do tempo que não passa.
Ali, naquele ano de mil e novecentos,
não há luta de classes nem a trepidação do progresso,
apenas aquele vestido branco,
sobre as folhas caídas pelo chão,
reflecte a inocência que se esconde
em cada traição que leva o herói
a capitular e a esquecer o império
que haveria de possuir ao saltar
dos olhos que são teus
para o coração que é de ninguém.

Salvação do marxismo

Esta fotografia foi roubada ao Zé Ricardo (aqui). Sorry. Mas se o marxismo tem alguma salvação, ela está toda aqui: Jenny von Westphalen. The beloved wife of Karl Marx.

Pedro Picoito - Só uma escola exigente é democrática

Por estes dias, milhão e meio de alunos portugueses voltam às aulas. Vão encontrar um sistema de ensino burocratizado, centralista e ineficiente. Irão para a escola que o Estado impõe aos seus pais, de acordo com a área de residência ou de trabalho. Talvez não tenham ainda todos os professores nos primeiros dias, porque a colocação de contratados é um processo nacional de tentativa e erro. Alguns acabarão o ano sem dar todo o programa de Português ou de Matemática por causa da indisciplina dos colegas ou da desmotivação dos professores. Vão encontrar, sobretudo, um sistema que, ao fim de um século de ensino obrigatório, ainda não ultrapassou o maior desafio da escola pública: conciliar a igualdade de oportunidades e a procura da excelência. É o mesmo dilema entre a paixão da igualdade e a paixão da liberdade que Tocqueville via no coração da democracia moderna. Na França jacobina, a igualdade do Terror venceu a liberdade da Revolução. Com as devidas distâncias de uma analogia histórica, algo de semelhante se passa hoje no ensino português.Vejamos um exemplo: os exames nacionais. O Governo socialista anunciou há dias, com retumbante publicidade, que a taxa de retenções (ou "chumbos") no ensino básico e secundário do ano passado foi a mais baixa da década. No entanto, segundo a Sociedade Portuguesa de Matemática e a Associação de Professores de Português, isso aconteceu porque os exames foram deliberadamente facilitados. Nivelaram-se as notas para embelezar as estatísticas. O Ministério da Educação esquece que este admirável mundo novo da igualdade acaba também com o incentivo à excelência. Para quê estudar, se Maria de Lurdes Rodrigues dará a todos os alunos, no fim do ano, outro milagre das rosas?

Mas será isso verdadeiramente democrático? Condenar todos os alunos à mediocridade, mesmo aqueles que pelo seu esforço chegariam mais longe, é o melhor que a democracia portuguesa tem para lhes oferecer?

Acredito que não. Só uma escola exigente é democrática. O ensino formal que os mais pobres não receberem na escola dificilmente virão a receber em contextos informais como a família ou a comunidade local. E, sem um ensino de qualidade, entrarão na vida activa em desvantagem - se conseguirem entrar na vida activa.

Só um sistema que permite a real liberdade de escolha dos pais é socialmente justo. Se as famílias estão descontentes com uma escola, devem ter o direito de optar por outra dentro do sistema público. Não há real liberdade de escolha, se o Estado limita a opção à ditadura do número da porta. Ou à largueza da bolsa doméstica.

Essa exigência e essa liberdade só serão possíveis com a avaliação das escolas. Não basta avaliar os professores para melhorar o ensino. Um professor não trabalha isolado - e, se o faz, algo vai mal. Há que avaliar os resultados de cada escola, responsabilizando as direcções e dando-lhes a maior autonomia pedagógica e administrativa para criar um projecto educativo próprio.


É urgente reforçar o peso científico dos programas. Os alunos não têm que passar mais tempo nas aulas: basta diminuir a carga, de resto muito ideológica, das áreas curriculares não-disciplinares. A disciplina de Português não tem que ensinar tolerância e multiculturalismo, mas gramática e ortografia. A disciplina de Matemática não tem que ensinar a respeitar a opinião dos outros, mas que 1+1=2 (independentemente das opiniões). Só uma escola onde se ensina que 1+1=2 pode ensinar o respeito pelos outros. Porque respeita o conhecimento, respeita os alunos, respeita as famílias e respeita os contribuintes que a pagam.O país pode fazer mais e melhor para vencer o desafio da educação. [Público de 25 de Setembro]

Leviandades europeias

Agora, a Comissão Europeia vai proibir as importações da China de produtos para crianças. Isto deve estar já a apoquentar os nossos liberais. Mas, falando seriamente, isto não é a confissão da leviandade com que se escancarou as portas? Não se deveria ter tomado, logo de início, cuidado, tanto na qualidade dos produtos como nas condições da sua produção. Quantos milhares de empregos se perderam com esta leviandade?

24/09/08

Já tão perto da eternidade

Paul Gustave Fischer - Sunbathing in the Dunes (1916)

Já tão perto da eternidade
abria-se, entre grãos de areia
e o vento suave vindo do mar,
a precisa imagem que aos deuses
oferece o precário paraíso.

Do mar, não havia sussurro,
nem a sombra maculava a branca pele
que aos olhos rasgava.

Deusas de luz assim tão luminosa
descansavam da penosa imortalidade
e tudo na calma da tarde se incendiou:
a água tinta de azul, o céu tisnado de branco,
a erva que o vento inclinava
ou os corações: ao tempo abandonavam
a exausta melancolia.

Tão perto da eternidade
eram os dias que Agosto trazia.

Visão burguesa do mundo

Longas horas passadas à porta da maternidade. De vez em quando, alguém sai e fala ao telemóvel: já nasceu. Eram três horas. Ah, pesava três quilos e duzentos e media 49 cm. Como se as coordenadas numéricas fossem o essencial. Só faltava o custo por grama parido.

McCain, o imaginativo

Não falta imaginação aos “spin” de John McCain. Quando a campanha começava a correr mal devido ao fracasso da política económica republicana e à crise financeira consequente, o candidato republicano tira um coelho da cartola: suspende a campanha e pede adiamento do debate de sexta-feira com Obama. Motivo invocado: quer ajudar a combater a crise financeira, que ele próprio ajudou a criar ao legitimar as políticas de Bush. Poder-se-á admirar a esperteza, a capacidade para retomar a iniciativa e o que nos apetecer. Mas em tudo isto não há o mínimo de grandeza ou de fair-play. De facto, aquele país não é para aristocratas.

Escola de sucesso

Hoje, aula de Filosofia de 12.º ano. Carteiras organizadas em «u», eu estou sentado na abertura do «u». A aula versava, para introduzir Platão, sobre algum pensamento pré-socrático. Começámos pelo fragmento de Anaximandro e continuámos por Heraclito e Parménides. Os alunos super-concentrados, desejosos de saber, exigentes com a prestação do professor. Nestes momentos, perante alunos assim, sinto um enorme orgulho na minha profissão. Esta é a verdadeira escola de sucesso e não aquela que nasce do milagre estatístico e da imaginação delirante dos governantes. Tudo nela é simples: o professor ensina, o aluno estuda, o professor tem de estudar mais para que o aluno aprenda mais. É isto que este governo, como os anteriores, destruiu. O que me está a acontecer não é a normalidade, é a excepção.

23/09/08

Stabat Mater Dolorosa [para a Vera]

… E assim me tornei, ontem pelas 23h 25m, avô por afinidade. Quando tirei esta fotografia à mãe da Vera, cerca de 6 horas antes desta vir ao mundo, não reparei de imediato no que tinha retido na câmara. Mas ao rever as fotografias feitas, quando cheguei a esta não mais as palavras com que começa a mais conhecida obra de Pergolesi deixaram de me martelar: Stabat Mater Dolorosa. E no entanto apenas a dor ligava as duas mães. A dor que trespassa o coração da que perdera o filho na cruz há 2000 anos e a dor física da que se preparava para o trazer ao mundo. Continuei, na longa espera que mediou a foto e o nascimento, a pensar na «mater dolorosa» e na ocultação dessa sua dimensão originária, a da mãe tomada pela dor que prepara o advento do novo ser. Entre o pensamento e a visão da fotografia percebi, pela primeira vez, o mistério da imaculada concepção. Não é excepcional que a Virgem Maria tenha concebido sem mácula, mas essa é a natureza de todas as concepções e a simbólica cristã é, ao mesmo tempo, o seu resumo e o seu modelo. Dobrada sobre a dor, a mater dolorosa pré-anuncia, ao dar a essa dor um cunho espiritual pela serena calma que a envolve, a glória imaculada da vida que triunfa. Recomecemos então, stabat mater dolorosa ou, ainda melhor, estava a mãe iluminada pela luz que de dentro lhe vinha…

American Dream na Finlândia

Um novo incidente com armas, numa escola finlandesa, fez mais de dez mortes. Este é, em pouco tempo, o segundo massacre escolar na Finlândia. O conteúdo semântico da expressão «american dream» é mais amplo do que a possibilidade de ascensão social para além dos determinismos de classe, raça ou outros. Faz parte dele a possibilidade de escolhas individuais e uma cultura de revolta contra o dado e o estabelecido. Os massacres nas escolas americanas são, de certa forma o negativo, desse sonho americano. A revolta contra o estabelecido, a liberdade e a iniciativa de quem se sente fechado num universo aparentemente aberto.

Não deixa de ser curioso que uma sociedade apontada como o contrário da americana esteja a produzir o mesmo tipo de fenómeno. O American Dream é, de alguma maneira, o resumo da evolução democrática da modernidade ocidental. Mas estes acontecimentos não serão sintomas de uma efectiva oclusão dentro dessas sociedades? Não serão elas muito menos abertas do que pretendem e não terão elas muitos pontos de contacto com as sociedades fechadas e totalitárias, que apenas entrevemos, por breves instantes, nestas ocasiões.

21/09/08

Era neste tom que o passado em mim vivia

William Rickarby Miller - New York from Hoboken (1851)

Era neste tom que o passado em mim vivia
e de lá chamava-me em sussurros,
para falar sobre rios e flores,
pequenas cercas de madeira,
ou torres voltadas para o céu,
a florir na terra como bandeiras.

Perdido no presente, ou exausto
de meditar universos futuros,
eu não o ouvia, mesmo se gritava,
ou se gemia e acordava os céus
ou no mar aos peixes enlouquecia.

Agora que durmo, sei que o passado
é aquela pequena cidade,
Nova Yorque lhe chamaram,
filtrada pela neblina dos dias,
se vista de Hoboken pelos olhos sépia
que a fitam quando ela
por eles chegava
para comigo conversar.

The Dave Brubeck Quartet - Take Five (1961)

O delírio da senhora ministra

Vale a pena ler aqui as palavras de reacção de Maria de Lurdes Rodrigues sobre o crescimento do mercado das explicações. Estes dados doeram fundo na alma da senhora ministra, ao desmontarem as suas elucubrações sobre aprendizagens feitas na escola que inventou. Como a realidade não se adequa com as suas grandes e generosas ideias, trata de exorcizar essa mesma realidade classificando-a: a dependência de explicações seria uma situação de «Terceiro Mundo». Foi para fazer face ao recurso às explicações que ela se lembrou do conceito de escola a tempo inteiro, onde as crianças são massacradas com inutilidades. Mas a senhora nem sabe o que é uma escola, nem, apesar de socióloga ou por causa de o ser, faz a mínima ideia de como funciona a sociedade. Fico espantado – isto é retórica – que uma pessoa doutorada acredite que as classes médias achem que a «escola a tempo inteiro» prepare os filhos para as universidades. Como noutros países do primeiro mundo onde foram tomadas medidas idênticas àquelas que a senhora por cá tomou, as classes médias estão a tirar os filhos da escola pública e o mercado de explicações a crescer exponencialmente. Um conselho à senhora ministra da Educação: faça uma lei para proibir os estudos sobre educação que não sejam pensados no ISCTE, e faça outra para proibir a realidade.

Maldito princípio de realidade - II

Os campeões da desregulação, os entoadores de hinos à «mão invisível» do mercado, o exemplo da pátria liberal, decidiram em desespero de causa e para evitar a falência da banca norte-americana, intervir no mercado e disponibilizar 700 mil milhões de dólares para evitar a catástrofe que as suas ideias produziram. Se tivessem regulado um pouco a montante, talvez evitassem esta regulação a jusante. Mas os EUA, como muitos liberais, têm, também eles, um problema aguado com o maldito princípio de realidade.

Maldito princípio de realidade

Ufanava-se este governo que os resultados escolares tinham a ver com o acréscimo de trabalho dentro das escolas. As explicações passaram para dentro da escola, chegou-se a dizer. Mas a realidade parece ter feito um pacto contra os nossos governantes educativos. Segundo o Público, o mercado de explicações continua em crescimento. A grande transformação, e talvez seja isto que entusiasma o governo, é que os explicadores domésticos, a maioria professores que ganham um complemento do ordenado com trabalho extra, estão a ser trocados pelas multinacionais das explicações (existem mesmo).

20/09/08

Dois céus e uma sombra de rosas

Michael Peter Ancher - On The Beach At Skagen (1914)

Dois céus e uma sombra de rosas,
um jardim de algas ao sol
e uma sereia abandonada…

Eram assim os sonhos que sonhava,
se a noite não me adormecia
e os olhos ficavam à espera que viesses
para deixar o cetim da pele
marcar a fogo os dedos de minha mão.

Fora eu um barqueiro,
e teria vindo mar fora
para do teu rosto colher
a última flor, e dela fazer
a bandeira de uma pátria de cetim
a que daria o teu nome
ou a recordação que dele
resta em mim.

Wim Mertens - Humility

Humility? Ainda fará sentido esta palavra?

Rumo traçado

O engenheiro Sócrates afirmou que o PS vai prosseguir no rumo traçado em 2005. Assim, ao contrário de então, ninguém se poderá queixar de enganos. Já todos conhecemos o rumo traçado na Justiça, na Educação, na Saúde, na Segurança Social, na Segurança Interna, na Economia. Portanto, os portugueses das classes populares e das classes médias, se estiveram interessados em continuar a ser os bodes expiatórios e o bombo da festa desta gente que tomou conta do governo, sigam o rumo traçado e façam o favor de votar no engenheiro-chefe dos socialistas.

Colisões


No Público: «Um trabalho artístico mostra uma colisão planetária na constelação de Aries. Massas de poeira que flutuam em torno de um distante sistema solar binário sugerem que dois planetas semelhantes à Terra se desintegraram mutuamente numa violenta colisão, revelaram ontem investigadores dos Estados Unidos. Imagem: Lynette R. Cook/Reuters/ cedência da UCLA.»
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Acabar assim é mais interessante do que através da gripe das aves, do aquecimento global ou mesmo de uma promissora guerra termonuclear. Isto sim, é finar-se em grande estilo. O Universo lá vai tendo desta perfeições.

19/09/08

Se eu soubesse inverter relógios e calendários

William Bouguereau - Jeune Bergère (1885)

Se eu soubesse inverter relógios e calendários,
tomaria um avião para essa terra de seda,
onde delicadas pastoras regem, pelos descampados,
rebanhos de violetas e bandos de aves sem penas.
Descalço, correria para o fundo de teus olhos
e se a tua mão a minha ao de leve tocasse,
da terra colheria as mais ínfimas flores,
e o teu cabelo seria um jardim, e no lugar da melancolia
haveria o sol assombrado e rendido ao pueril amor.

Um novo cowboy?

Depois de Bush, os republicanos escolheram como candidato o senhor McCain. Neste vídeo, fica-se a perceber a profundidade do conhecimento que o candidato republicano possui da Europa. Foi assim, com este desprezo pela realidade, que Bush se deixou arrastar para o Iraque e arrastou uma parte dos seus aliados para a aventura. Se os americanos se deixarem comover pela senhora Palin e por este novo cowboy, que aventuras nos esperam ainda?

A necessidade da História

Estava eu a preparar uma aula de 12.º ano para introduzir Platão – espero não ter nenhum processo disciplinar por preparar as aulas ao nível científico – quando deparo, mais uma vez, com a problemática do anthropological turn do século V a. C. Esta viragem na filosofia corresponde a uma mudança de interesse na especulação. A filosofia começa com preocupações cosmológicas, físicas e ontológicas. Mas quando, no século V a. C., chega a Atenas, é o homem que se torna centro do interesse especulativo. São múltiplas as razões, mas o peso do ensino dos sofistas não é coisa sem importância no processo. O interessante, como já aqui falámos, é que o conflito entre escola centrada no aluno (aquela que faz as delícias de Vital Moreira e defendida por Protágoras, naqueles tempos) e a centrada no saber (advogada por muita gente estúpida, onde me incluo, que acha que a escola serve para ensinar saberes efectivos, como defendia outrora Hípias) já vem da própria sofística. Tem cerca de 2 500 anos. A força da escola ocidental, daquela que fez do Ocidente a mais inventiva cultura humana, filia-se na tradição disciplinar de Hípias, refundida pela filosofia grega e pela concepção académica medieval, do quadrivium e do trivium. É esta tradição que, com a modernidade, recebe o enxerto do conhecimento científico e se dissemina em liceus e universidades mundo fora. Assiste-se, agora, a um terrível assalto dos filhos tardios de Protágoras e a uma meticulosa destruição da velha tradição que fez a nossa força. O curioso é que ninguém parece perceber a íntima conexão que existe entre a gradual, mas determinada, perda de influência do Ocidente (aquilo que se chama decadência) e o assalto dos amigos de Vital Moreira à escola pública. É pena que à História já não seja dada a atenção que mercere. Não apenas a uma História narrativa dos factos ocorridos, mas a uma História reflexiva que medite as razões que tornaram certas soluções exequíveis e vitoriosas. Mas a abolição da espessura do passado e a focalização da atenção nesse puro nada que é o momento presente, tão de agrado dos nossos reformistas educacionais, não é outro dos sintomas do niilismo que está a tomar conta de tudo?

Jornal Torrejano, 19 de Setembro de 2002

O mundo continua a caminhar com regularidade. Chegou sexta-feira e com ela a nova edição online do Jornal Torrejano. Na primeira página, a reportagem sobre a vinda do ministro Vieira da Silva para para participar, nas escolas locais, no dia do cheque, perdão, no dia do diploma, e distribuir cheques de 500 € aos melhores alunos. Destaque também para a entrevista com o velho "rocker" local, Xarepa, pelos 40 anos de carreira musical. Referência ainda para a decisão da Câmara Municipal baixar o IMI.

Na opinião, para não quebrar as rotinas, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Na opinião escrita comece-se com o desporto. Carlos Henriques escreve Selecções sem jeito. Passe-se a seguir para outras opiniões menos desportivas. Carlos Nuno escreve A idade média, Francisco Almeida, Tu é que sabias, Galileu Galilei, João Carlos Lopes, Quinhentinhos, este blogger, Reinvente-se o paraíso, José Ricardo Costa, Are you lost?, Santa-Maia Leonardo, Não fujas ao fisco, não!

Assim termina a notícia das notícias. Para semana, se os deuses para aí estiverem voltados, haverá mais Jornal Torrejano e notícia dele neste blogue. Bom fim-de-semana.

18/09/08

Teci-te de pétalas um colar e de água doce o mar

Herbert James Draper - The Water Nymph

Teci-te de pétalas um colar e de água doce o mar
e uma pedra para te sentares nas tardes de Verão.
Depois, escondi-me no paraíso obscuro da solidão.
Por lá espero a vinda das estações e seus decretos:
O Outono e a folha que cai, o Inverno e a neve fria,
a Primavera e a terna fantasia de tudo o que volta.

Quando nasce o Verão, deixo a sombra e
construo uma cabana de canas e ervas secas.
À porta, aguardo as tardes luminosas em que vens,
despida, sentar-te no sol que arde em cada pétala,
e lanço sobre ti a táctil rede do meu olhar.

Se um pássaro voa, eu canto no silêncio da sua voz.

A perspicácia da senhora Rice


Eu até simpatizo com esta senhora. Eu sei, eu sei da história dos ciclos da testosterona e da mudança de perspectiva conforme o nível da hormona, mas todos temos o direito aos nossos ciclos baixos. Apesar da simpatia, também reconheço que a senhora tem direito aos ciclos negativos no uso da inteligência. Dizer que a Rússia, depois dos acontecimentos da Geórgia e dos projectos de apontar armas nucleares a países pacíficos, está a caminho do isolamento e da irrelevância não me parece particularmente perspicaz. Não só os Europeus rastejaram em torno do senhor Putin, como, por esse mundo fora, ninguém se mostrou particularmente aborrecido com o excesso de testosterona dos russos. Talvez já estivessem cansados dos excessos hormonais dos americanos e precisassem, para passar o tempo, de novidade.

O que todos sabemos sobre o enigma Jerónimo de Sousa

Constança Cunha e Sá, no Público de hoje, medita sobre o fenómeno da popularidade de Jerónimo de Sousa (ver aqui). Fala das reformas, do esvaziamento dos direitos adquiridos e, fundamentalmente, da hipocrisia do sistema para com os desfavorecidos, escorada no autismo dos governantes e nos êxtases dos sectores liberais. Tudo isto é verdade, mas a popularidade da chamada afectividade de Jerónimo de Sousa deve-se, também, a uma outra coisa que não se diz: ninguém leva a sério o dirigente comunista. Se se olhar para os partidos portugueses podemos conceber que todos os seus chefes poderiam ser primeiros-ministros. Sócrates porque o é, faz jogging pelas capitais do mundo inteiro e veste-se bastante bem. Ferreira Leite porque é economista, uma avó dedicada, uma pessoa séria e pouco palavrosa. Paulo Portas porque leu algumas biografias do Churchill, veste fatos às riscas e parece gostar de Jaguares. Até Francisco Louçã é um primeiro-ministro credível, pois é professor de Economia e, apesar da traquinice de não usar gravata, todos descortinamos ali a seriedade de um domicano medieval. Mas alguém vê em Jerónimo de Sousa um futuro primeiro-ministro? Claro que não, nem mesmo os seus camaradas que o elegeram para secretário-geral. Nele apenas se vê aquilo que ele é, um operário metalúrgico que gosta de dançar e do Benfica, segundo parece. Nas actuais circunstâncias, as suas ideias – para além do círculo dos fiéis – não fazem estremecer ninguém, nem de amor nem de ódio. É este facto que permite a popularidade de Jerónimo de Sousa. Já ouvi gente de direita dizer que vai votar nele. A ideia é assustar um bocadinho o sistema e a maltosa que tomou conta dos grandes partidos governamentais. Fosse Jerónimo de Sousa uma personagem idêntica a Álvaro Cunhal, com a solidez teórica e a cosmovisão deste, e a simpatia por ele seria bastante menor e ninguém se lembraria de assustar quem quer que fosse com votos vermelhos. É que, nesse caso, ele poderia mesmo ser primeiro-ministro.

Edu Lobo et Chico Buarque " a moça do sonho"

Terá acabado o mundo?

Talvez o mundo já tenha acabado e eu ainda não tenha dado por isso. Parece que este blogue ficou congelado ontem, dia 17 de Setembro, pelas 17:47. Não só decidiu atribuir essa fatídica hora a todos os posts feitos ontem, como, para além de trocar a ordem do poema e do texto do Sebald, ainda decidiu registar o post de hoje sobre as "articulações curriculares" como sendo de ontem, às tais 17:47. É com expectativa, e inconfessável medo, que me apresto para publicar este pequeno protesto contra os deuses virtuais que comandam este malfadado universo. Que dia e hora será a dele?

Adenda: não acredite no que os seus olhos vêem. As datas e horas dos dois últimos posts foram alteradas manualmente, para não ficarem no dia 17 às 17:47. Antevejo já um novo suplício: cada vez que fizer um post, lá terei de o datar e dar-lhe hora manualmente... Se alguém souber como se doma estes deuses virtuais e se conserta a coisa, agradeço a ajuda.

Competências transversais

Na nefasta e nefanda linguagem que tomou conta da vida escolar merece destaque a expressão “articulação curricular”. Esfalfam-se os professores, dentro dos seus promíscuos departamentos, para se articularem curricularmente. A maior parte, julgo eu, não percebe o que se pretende e como tal redobra de esforço para conseguir realizar não sabe bem o quê. Faz sentido falar em articulação vertical do currículo. É conveniente, por exemplo, que o programa de Matemática do 5.º ano seja o prosseguimento daquele que foi dado no 4.º. Mas isso é um problema do Ministério da Educação e não dos professores (só é destes porque são eles que têm de suportar as “criatividades” curriculares emanadas do ministério). Também é conveniente que não se ensine numa dada disciplina matérias que precisam do contributo de outras disciplinas e que estas só leccionam um ou dois anos depois. Mas também aqui é um problema do Ministério da Educação. Risível é o que cabe aos professores. Habitualmente, verifica-se, na lotaria dos programas disciplinares, se há matérias comuns. Quando isso acontece, por norma, provoca uma grande excitação, do género da provocada pela saída do totoloto. Já há matéria para preencher umas grelhas e arquivar, depois de uma actividade conjunta de professores de áreas diferentes que, num esforço emérito, conseguiram desfocar a perspectiva científica particular da sua disciplina, para realizar um número acrobático de achatamento das matérias a que se costuma chamar interdisciplinaridade e, nos casos mais graves, multidisciplinaridade ou mesmo, quando já não há qualquer esperança, transdisciplinaridade.

Mas até aqui estamos ao nível de uma praxis pouco esclarecida. A grande aposta, ou a proposta ilustrada pelo iluminismo educativo, é a articulação curricular para desenvolver competências, esse grande achado que se tornou outro dos lugares comuns que mais vezes saem da incauta boca aberta de um professor. Quando alguém descobriu as competências transversais deve ter gritado como o pobre do Arquimedes. Esta vai ser, ou já está a ser, a nova fase da busca do graal, por parte dos professores portugueses. Tracejar em mapas, documentos, grelhas e quadros as competências que as disciplinas que ainda existem nas escolas hão-de, irmanadas num sentimento de igualdade e fraternidade gerais, propor à aprendizagem das pobres crianças e adolescentes que o destino lhes pôs à frente. Ninguém se pergunta, no entanto, se está provado que a articulação curricular – seja a de conteúdos programáticos, seja a de competências – prepara melhor os alunos e os torna mais competentes, já que falamos em competências.

Defendo uma tese contrária: é melhor para o aluno ser submetido a diferentes experiências intelectuais e descobrir, por exemplo, que escrever (parece que a escrita é uma competência transversal) um texto em Português, não é a mesma coisa que fazê-lo em História. Que a escrita em Filosofia não se confunde com a que é feita em Economia, ou Psicologia. O que se passa com a escrita, passa-se com outras transversalidades. Refira-se ainda que quantos mais pontos de vista diferenciados o aluno adquirir, maior será, no futuro, a sua capacidade para lidar com a diferença. A ideologia da articulação curricular nasceu da constatação de que muitos alunos não fazem conexões e associações de ideias. O processo normal, se a educação fosse uma coisa normal e não um repositório de frustrações sociais, para não falar de outras, seria verificar se o desenvolvimento e maturidade cognitivos dos alunos lhes permitiriam fazer essas conexões. Porque será que, na celebrada Finlândia, as crianças só entram para a escola aos 7 anos? Por outro lado, ninguém se interroga se o “achatamento” imposto pela articulação curricular vai melhorar o desempenho cognitivo do aluno. Faz-se, porque sim. Também já toda a gente se esqueceu que muitas experiências escolares porque passou e que não faziam sentido na altura e apareciam desligadas, se tornaram com o crescimento significantes, conectadas e operantes, mesmo sem se ter consciência disso. Mas isso implica dar atenção à forma como se estrutura e desenvolve o aparelho cognitivo humano, e aquilo que o pessoal da educação gosta mesmo é de ideologia.

A ideologia da articulação curricular inscreve-se no processo niilista que tomou conta do ensino ocidental, nomeadamente do nosso. É niilista porque, tendencialmente, a sua intencionalidade é abolir as diferenças disciplinares, transformar os campos científicos em coisas despiciendas que apenas incomodam o grande desiderato de reduzir todo o ensino básico e secundário às práticas do jardim infantil.

17/09/08

Cansado, retirou-se o Verão para outro hemisfério

John Everett Millais - Autumn Leaves (1855-1856)

Cansado, retirou-se o Verão para outro hemisfério
e o Outono veio com caruma e folhas de vidro
e árvores despidas ao vento frio da morte.
O céu e a terra fundiram-se e a linha do horizonte
anuncia a fronteira que separa dias, horas,
a loucura a crescer extasiada e voraz na boca
sequiosa; aí nasce uma rosa de luz, desmesurada e nua.
Em cada rosto preso nessa rosa há um enigma,
a pequena sombra, o risco de lava, a memória azul
onde se perderam todos os nomes suspensos,
pela tarde crua, sobre a pira de folhas secas,
o tempo as trouxe ao imolar-se no silêncio da jornada.

Do daltonismo na história

Mas que sabemos nós do rumo da história, que segundo uma lei que a lógica não compreende, que se move e muda de direcção no seu movimento, muitas vezes num momento decisivo, por causa de minudências imponderáveis, por uma mera corrente de ar quase imperceptível, uma folha que cai no chão, uma troca de olhares no meio de um grande ajuntamento! Mesmo em retrospectiva, não podemos saber como era realmente antes e como surgiu este ou aquele acontecimento mundial. O mais rigoroso estudo do passado não chega mais perto dessa verdade que a imaginação não atinge do que, por exemplo, a disparatada afirmação que uma vez ouvi a um tal Alfonse Huyghens, diletante que vivia na capital da Bélgica e há décadas se dedicava a investigar Napoleão, segundo o qual todas as convulsões causadas nos países e reinos da Europa pelo imperador dos Franceses se deviam somente ao seu daltonismo que o impedia de distinguir o vermelho do verde. Quanto mais sangue corresse no campo de batalha, disse-me o investigador belga, mais verdes lhe pareciam os campos. [Sebald, Campo Santo, pp. 19]
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Não falta por cá Huyghens. De daltónicos também temos o stock bem provido.

Economia da testosterona

Uma equipa de investigação da Universidade de Aberdeen, no Reino Unido, chegou à conclusão que o tipo de pessoa que achamos sexualmente atraente varia em conformidade com os níveis de testosterona (aqui), de cada momento. Depois de muito meditar, achei que o estudo tinha elevado potencial económico. Talvez possa mesmo vir a ser um ponto de viragem na malfadada crise económica. Poder-se-á prever o surgimento, a breve prazo, de um kit com um aferidor salivar de testosterona e as respectivas pílulas hormonais, para casos de baixa produtividade. Vale mais uma pessoa acautelar-se, não vá sentir-se atraída por alguém que, noutro pico de produção glandular, se arrependa. Não faltarão clientes.