Na nefasta e nefanda linguagem que tomou conta da vida escolar merece destaque a expressão “articulação curricular”. Esfalfam-se os professores, dentro dos seus promíscuos departamentos, para se articularem curricularmente. A maior parte, julgo eu, não percebe o que se pretende e como tal redobra de esforço para conseguir realizar não sabe bem o quê. Faz sentido falar em articulação vertical do currículo. É conveniente, por exemplo, que o programa de Matemática do 5.º ano seja o prosseguimento daquele que foi dado no 4.º. Mas isso é um problema do Ministério da Educação e não dos professores (só é destes porque são eles que têm de suportar as “criatividades” curriculares emanadas do ministério). Também é conveniente que não se ensine numa dada disciplina matérias que precisam do contributo de outras disciplinas e que estas só leccionam um ou dois anos depois. Mas também aqui é um problema do Ministério da Educação. Risível é o que cabe aos professores. Habitualmente, verifica-se, na lotaria dos programas disciplinares, se há matérias comuns. Quando isso acontece, por norma, provoca uma grande excitação, do género da provocada pela saída do totoloto. Já há matéria para preencher umas grelhas e arquivar, depois de uma actividade conjunta de professores de áreas diferentes que, num esforço emérito, conseguiram desfocar a perspectiva científica particular da sua disciplina, para realizar um número acrobático de achatamento das matérias a que se costuma chamar interdisciplinaridade e, nos casos mais graves, multidisciplinaridade ou mesmo, quando já não há qualquer esperança, transdisciplinaridade.
Mas até aqui estamos ao nível de uma praxis pouco esclarecida. A grande aposta, ou a proposta ilustrada pelo iluminismo educativo, é a articulação curricular para desenvolver competências, esse grande achado que se tornou outro dos lugares comuns que mais vezes saem da incauta boca aberta de um professor. Quando alguém descobriu as competências transversais deve ter gritado como o pobre do Arquimedes. Esta vai ser, ou já está a ser, a nova fase da busca do graal, por parte dos professores portugueses. Tracejar em mapas, documentos, grelhas e quadros as competências que as disciplinas que ainda existem nas escolas hão-de, irmanadas num sentimento de igualdade e fraternidade gerais, propor à aprendizagem das pobres crianças e adolescentes que o destino lhes pôs à frente. Ninguém se pergunta, no entanto, se está provado que a articulação curricular – seja a de conteúdos programáticos, seja a de competências – prepara melhor os alunos e os torna mais competentes, já que falamos em competências.
Defendo uma tese contrária: é melhor para o aluno ser submetido a diferentes experiências intelectuais e descobrir, por exemplo, que escrever (parece que a escrita é uma competência transversal) um texto em Português, não é a mesma coisa que fazê-lo em História. Que a escrita em Filosofia não se confunde com a que é feita em Economia, ou Psicologia. O que se passa com a escrita, passa-se com outras transversalidades. Refira-se ainda que quantos mais pontos de vista diferenciados o aluno adquirir, maior será, no futuro, a sua capacidade para lidar com a diferença. A ideologia da articulação curricular nasceu da constatação de que muitos alunos não fazem conexões e associações de ideias. O processo normal, se a educação fosse uma coisa normal e não um repositório de frustrações sociais, para não falar de outras, seria verificar se o desenvolvimento e maturidade cognitivos dos alunos lhes permitiriam fazer essas conexões. Porque será que, na celebrada Finlândia, as crianças só entram para a escola aos 7 anos? Por outro lado, ninguém se interroga se o “achatamento” imposto pela articulação curricular vai melhorar o desempenho cognitivo do aluno. Faz-se, porque sim. Também já toda a gente se esqueceu que muitas experiências escolares porque passou e que não faziam sentido na altura e apareciam desligadas, se tornaram com o crescimento significantes, conectadas e operantes, mesmo sem se ter consciência disso. Mas isso implica dar atenção à forma como se estrutura e desenvolve o aparelho cognitivo humano, e aquilo que o pessoal da educação gosta mesmo é de ideologia.
A ideologia da articulação curricular inscreve-se no processo niilista que tomou conta do ensino ocidental, nomeadamente do nosso. É niilista porque, tendencialmente, a sua intencionalidade é abolir as diferenças disciplinares, transformar os campos científicos em coisas despiciendas que apenas incomodam o grande desiderato de reduzir todo o ensino básico e secundário às práticas do jardim infantil.