30/06/08

Exodus - VII

Abriu-se uma ferida de sangue no sangue das águas
como se dura pedra, a solidez a suporta, as
tivesse tocado e em seu caminho continuasse, incólume,
esquiva, suspensa na tecelagem com que alguém,
nos dias mais negros, a fabricara. Os ventos vieram
e ao tocarem a superfície das águas arvoraram impérios
circulares, pátrias de oclusas fronteiras, a navegação
incerta. Quando neles se entra, passada a raia sempre movente,
respira-se um gás tépido, emanação do furúnculo que,
no centro do centro, corrói cada momento, suspende-o,
torna-o, em precária situação, visível, antes
de o devorar com uma boca de algas e dentes
de sílex, afiados pelas areias das praias, vorazes areias têm.

Se de uma vara erguida na luz do ombro ainda fizeres
um remo, talvez um barco venha solícito em busca
do barqueiro. Não terá proa nem ré, nem sobre as águas
se moverá. Ficará suspenso e, enquanto o remador
olha o horizonte deixando os músculos no ir e vir
de quem no mar se afadiga, ondulará,
atado nas cordas, ao céu o prendem, ligado
por cabos de salitre às escuras nuvens,
o vento as impele, enquanto o remador corre
de casa em casa, procura os filhos há muito abandonados
na paisagem que à crosta da terra de cinza cobre.

Tecedeiras urdem com suas mãos os afilados dedos,
na água logo entram, pois o barqueiro, ferido de sangue,
aí os devora.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

OTIS REDDING - My Girl Live Recording

Sociologias e outras tropelias II

Paulo Guinote, do A educação do meu umbigo, continua a publicar excertos do “estudo” do sociólogo João Freire que esteve na base da alteração do Estatuto da Carreira Docente, talvez o estatuto social de professor mais degradante da toda a União Europeia (ver aqui e aqui). Vale a pena ver como o próprio ministério sabia serem mentira muitas das coisas que se diziam sobre os professores, mas nunca abriu a boca para as desmentir. Foram essas coisas que muitos comentadores afirmaram que legitimaram a política do ministério. A história da proletarização dos professores portugueses é digna de um study case do maquiavelismo político. Quem se interessa por questões políticas e educativas vale a pena estar atento ao blogue de Paulo Guinote.

O exemplo alemão

Não sei se essa coisa que andam por aí a congeminar às escondidas e que tem por finalidade acabar, através da irrelevância das funções, com os Estados-nação é uma boa ideia. Quando uma selecção de futebol derrotada é recebida por uma multidão como aquela que esperava os alemães em Berlim, há uma mensagem política clara que os feiticeiros de Bruxelas e os anões que os acolitam deveriam ler. Isto para não falar do entusiasmo que tomou conta de Madrid. Se pensassem um pouco, talvez percebessem por que razão os povos tendem a dizer não aos seus devaneios políticos ou aos interesses a quem servem.

Sociologias e outras tropelias

Vale a pena ler aqui e com muita atenção as conclusões do “estudo” que fundamentou a alteração do Estatuto da Carreira Docente, da autoria do sociólogo João Freire. É um monumento à consagração da sociologia enquanto ideologia e preconceito sustentadores das opções políticas. É verdade que cada vez que oiço falar da sociologia como ciência me dá uma vontade incontrolável de rir. Se precisasse de prova, este “estudo” bastaria.

29/06/08

Exodus - VI

Se ouvirem os gemidos dos filhos do mundo
e nesse sopro uma canção então se erguer,
cativem nas vossas mãos, em sorte vos couberam,
nuvens de quartzo e se na hora a mais cálida
a voz de um barítono se levantar por todo o acampamento,
peguem nas máquinas e enterrem bem fundo o nome
que vos deram, dele já não sabereis a cor das sílabas
nem o sabor de cada uma das letras que a vós vos disseram.

Sangrarão pelo esforço as falanges e delas se desprenderá
pela noite a luz, iluminará de ervas ralas
as bocas, a mão da cerzideira tão bem as trabalhou.
Uma saraivada de remos pelas águas e a aurora virá
e tudo se revestirá de veludo negro; nem as abelhas
o pólen delibarão, presas na ânsia, o cansaço
a tece, deixar-se-ão acorrentar nas suadas células da colmeia,
se um Sol de neve declinar no horizonte.

Não é tempo de sacrifícios; há muito os animais
partiram, esquecidos do trabalho, a cabeça dos
homens lhes tinha como destino dado. Apenas nos
semáforos azuis haverá filas de insectos noctívagos;
esperam a ordem, um anjo de cabelo ralo
e trombeta de zinco, com frágil sopro, a ordenará.
A canção tomará por penhor as águas do poço,
e na escura noite, pela fúria da roldana, a lua nascerá.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

Y viva la España

Acabou-se. Uma vez na vida que haja justicia na bola.

Espanha 1 - Alemanha 0

Hoje estou com nuestros hermanos. Não me tornei iberista, mas estou cansado daquele futebol alemão. Apesar de tudo esta Alemanha de hoje está francamente melhor do que contra Portugal ou a Turquia. Viva España, arriba Torres.

Benfica, campeão

Campeões, campeões! Benfica campeão. Não de futebol, mas de futsal. Não saiu a sorte grande, mas a terminação. Derrotou não o Porto, mas o Belenenses. Também são azuis. De novo, a terminação. Comemoremos. Cada um comemora o que pode...

A corrupção está a acabar

Segundo o Jornal de Notícias, as «empresas municipais vão poder contratar obras sem concurso até um milhão de euros». Está a começar a surtir efeito a estratégia socialista no combate à corrupção e tráfico de influências. Até 200 mil contos acabou-se o problema. É como nos exames nacionais. Se não se perguntar aquilo que os alunos podem não saber não há insucesso. Começa a ser um dever patriótico correr com esta gente do governo. Mais quatro anos e é possível que o país feche as portas. O Santana Lopes ao pé destes era um pequeno aprendiz de feiticeiro.

Da democracia e da paz

O mundo sempre foi um lugar perigoso. Por uma questão de coerência e de constância continua a sê-lo. Mas o perigo não é destituído de ironia. Por exemplo, Mugabe está certo da vitória naquelas eleições que se supeitava que tinha perdido e que afinal vai ganhar. Até já está disponível para prestar juramento (Público). Esta ironia está fundada nas amplas liberdades que a oposição teve para desaparecer de cena. Mugabe tem contado com a condescendência de Eduardo dos Santos e de Mbeki. Quem, neste mundo, parece não ter tempo para condescendências é Israel. Quem o diz é um antigo chefe da Mossad: o estado israelita tem um ano para destruir o projecto nuclear iraniano (Público). A partir daí pode esperar o pior. Como se vê a leitura dos jornais é sempre muito edificante.

28/06/08

Exodus - V

Não celebrarás no deserto a festa,
um dia, à sombra dos canaviais,
a ordenaram. Tomado pela areia movediça,
o corpo cede instante a instante e,
no lento mover-se em direcção ao fundo,
contamina-se de insectos. Multidões de varejeiras
desenham uma prisão de asas,
tão leve como as flores do nenúfar
e, nessa inquietação, sobeja ainda um sopro
que de entre os lábios sai. A mão, assim
lhe chamaram, acaricia as grades,
e no vento por elas soprado há um frémito
fatal que escurece a negra luz:
sobre o mundo, ao arder, incendeia
furacões, tempestades tropicais,
as areias em convulsão, onde corpos,
exaustos de tanto gritar, se tornam cediços,
maleáveis, matéria friável a abrir-se
à inconstância pegajosa dos sonhos.

Por aí caminha um povo de sonâmbulos,
as nuvens tapam de folhas os que enfrentam
as agruras sufocadas das areias, poeira solícita
que ao alcatrão cobre e dos homens o escondem,
como se ele, na síntese viscosa que o faz ser,
cometesse um crime e em seu ser criminoso
apenas velados espaços quisesse por morada.

Era um povo sem pátria nem castelos nem rios
nem memória. Habitava a nudez e quando
os homens se inclinavam para os seios das mulheres,
estas olhavam a paisagem ao longe e deixavam
a água escorrer dos cântaros de barro vermelho,
cobriam de luto a cabeça e os olhos, olhos eram,
fechavam-se à intensa cor do dia, agora
um risco vazio num calendário
de folhas ressequidas, herbário onde
rosas, violetas e lírios se decompunham
durante os meses de Verão, violentos meses eram.

Seguiam depois em frente, homens e mulheres, mas nem o
deserto os acolherá nem lugar terão para a festa,
um dia, na ordenação das coisas, ordenada lhes fora.
Seguem calados o movimento dos astros,
enquanto com os dedos desenham esfinges
de água sólida sobre o silente fragor da terra.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

Também o Partido Comunista

Para que não existam dúvidas, também o Partido Comunista é co-responsável pela decadência da escola pública em Portugal. Já nem me refiro às muitas trapalhadas nas quais os sindicatos foram cúmplices com o poder político, nomeadamente na equiparação do que não era equiparável. Refiro-me ao endeusamento dessa verdadeira trapaça em que se pode tornar a avaliação contínua. Mas o mais criminoso na política comunista para a educação é a sua luta contra os exames nacionais. Ainda ontem, no Parlamento, os comunistas se pronunciaram «contra a existência de exames nacionais, enquanto instrumento “elitista” e “selectivo”» (Público). Não são diferentes de Valter Lemos e de Lurdes Rodrigues.

Aguaviva - Poetas andaluces (1975)

Pois, por vezes o passado revisita-me e a idade começa a amolecer-me o coração...

Maria Luísa Guerra - O assassinato da Filosofia

Vai realizar-se no próximo mês de Julho, em Seul, na Coreia, o Congresso Mundial de Filosofia, organizado pelo FISF, organismo que concentra as sociedades dos professores de Filosofia do ensino secundário e do ensino universitário de todo o mundo. Tem a marca da globalização. É um encontro de tradições pedagógicas, de reflexão sobre a natureza e o papel da Filosofia na sociedade. Mostra o interesse dos vários países pelo problema. Mostra o que é evidente: o carácter vivo e actuante da Filosofia. O seu lugar insofismável na formação da mentalidade. Assim acontece no mundo.

E em Portugal? Em Portugal assiste-se ao inédito. Pela primeira vez em mais de um século (desde a reforma de Jaime Moniz, em 1895) destruiu-se decisivamente a Filosofia no ensino secundário. Podemos recuar mais atrás, a 1844, e mesmo aos Estudos Menores, criados pelo marquês de Pombal em 1799. Estudos onde figurava a disciplina de Filosofia Racional. Servia de acesso aos Estudos Maiores. Neste quadro de interesse global já referido, lembra-se também que a UNESCO instituiu o dia 15 de Novembro como Dia Mundial da Filosofia, congregando 36 nações. E em Portugal? Em Portugal desvaloriza-se o exercício do pensamento, o rigor da análise, a descoberta de paradigmas e de valores, a discussão de problemas, a formação do espírito crítico, a reflexão sobre a aventura humana, parâmetros específicos da Filosofia e do seu ensino.

Sabe-se que a finalidade do estudo em qualquer disciplina não é o exame. Mas também se sabe que, na prática, se não houver exame, os alunos não se interessam. Não estudam convenientemente. Residual e em vias de extinção a Filosofia no 12.° ano. Obrigatória no 10.° e 11.° anos mas não sujeita a exame nacional. "Para que serve?" pensam os alunos.

É uma disciplina decorativa. Sem importância. Morta à nascença. Ainda se rege Filosofia na universidade nalguns cursos, cada vez mais despovoados. Com este vazio no ensino secundário, acabará de vez.

O sucesso escolar não é gratuito. Depende de currículos apropriados, mas depende sobretudo de cabeças bem-feitas, treinadas numa apurada e progressiva ginástica mental, no exercício da abstracção, da comparação, do dissecar analítico. Esse exercício cabe especificamente à Filosofia.

No limite, pela depuração que exige e supõe, aproxima-se da Matemática. Não é por acaso que grandes filósofos de referência (de Pitágoras a Descartes, de Leibniz a Russell) foram matemáticos. Tirar aos jovens esta ginástica mental é criar o caos. Multiplica-se no mundo a presença e o interesse pela Filosofia. Em iniciativas globais. De Paris a... Seul. Em Portugal, desvaloriza-se até a morte. Original.
[Público de 28/06/2008, sem link aberto ao público]

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É tão claro que nem vale a pena comentar. Mas há que adicionar isto ao processo de acusação política contra Lurdes Rodrigues, José Sócrates, Valter Lemos e Jorge Pedreira. Não esquecer o PS que, perante todo o desastre, se calou, colaborou, apoiou e incentivou uma das políticas educativas mais reaccionárias de que há memória.

27/06/08

Exodus - IV

Ao longe as sirenes ecoam na água da tarde
e um ruído de carvão atiça-se na estrada
onde o viandante poisa, instantes tão breves,
um pé, logo de seguida o levanta, enquanto o outro,
se outro ainda tem, desce em direcção
ao centro da terra. Assim caminham
aqueles que caminham, talvez um santuário
no fim da estrada haja, dessa caminhada será,
quando a voz se afunda no peito,
ponto final. Denso e cerrado e agreste.

Os que caminham são ladrões de palavras.
Roubam, na inércia do caminhar, os túmulos onde
as adormeceram, tão mortas, esquecidas
de tanto hábito, gastas pelo vilipêndio
dos dias, como se nelas já não houvesse,
no som que as animava, um segredo de flores
pelo chão ou vacilantes cascatas
ao cair da tarde, onde as aves bebam
a água derradeira antes de entoarem,
pela tarde de sisal, o mais belo dos cantos, dizem.

Talvez a vindimadora ainda não venha,
a frágil foice em riste, cerzir
com pétalas animais e terra metálica
a fissura que da vida a morte desliga.
Os ladrões, ao afastarem-se para ela vão,
caminham na noite por estradas de palavras,
sílabas desfeitas na oclusão do palato,
na cercadura sempre fechada dos lábios.
Avançam pregados à sombra
e reviram os olhos se os ilumina
o clarão de algum pássaro,
ou da lonjura da estrada um carro,
na pressa motorizada que ronca, os entontece
de luz, encandeia e logo desaparece,
sem que um destino para aquela chama
o que caminha descubra,
quando na noite ouve as sirenes
e se afasta, cheio de palavras roubadas
dos túmulos, os deuses para elas os construíram
nas manhãs intérminas, enlouquecidos,
pois a vindimadora jamais a foice lhes estende.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

The Beatles - Yesterday

Pronto, desculpem-me lá, mas está mesmo muito calor...

Marte, água, espargos e o nosso quintal

Imagem da NASA

Foram feitas as primeiras análises químicas do solo marciano. Segundo o Público, os cientistas da NASA estão exultantes: “É o tipo de solo que poderíamos encontrar no nosso quintal”, declarou, em conferência de imprensa, Samuel Kouvanes, responsável pelo instrumento da sonda que acaba de realizar a primeira análise química ao solo de Marte. “Os espargos até se davam provavelmente muito bem com um solo desses.” Também parece confirmada a presença de água em Marte, pelo menos em certa fase da vida do planeta. As experiências que estão a ser feitas indicam-no. Portanto, não percamos a esperança de ir a Marte comer uma bela açorda de espargos. Caso não possa, o Alentejo não é assim tão longe. Aguardemos mais surpresas...

Para que serve a sociologia?

Graças ao blogue A Educação do Meu Umbigo, tive acesso a excertos da intervenção da ministra da Educação, a socióloga Maria de Lurdes Rodrigues, na sessão abertura do VI Congresso Português de Sociologia. O texto vale a pena ser lido com atenção, pois está nele tudo o que sempre me levou a desconfiar da sociologia. É muito curiosa a relação entre a sociologia e a praxis política e a forma como a socióloga divide a sociologia em boa e má, como se estas categorias pertencessem ao campo científico e não ao jogo linguístico da moralidade.

Bom é quando há “estreita articulação entre o campo da sociologia e o campo das políticas públicas, de que ambos têm retirado benefícios”. Também parece pertencer ao campo das coisas boas o contributo decisivo da Sociologia “para um melhor conhecimento da realidade educativa nacional e, portanto, para uma melhor fundamentação de próximas medidas de política educativa.”

Depois há os maus usos da inocente sociologia, nomeadamente das teses da reprodução social (cf. Bourdieu & Passeron). E em que consiste esta maldade? Consiste “transformar as origens e contextos sociais em obstáculos inultrapassáveis pela escola, condenada por isso a funcionar como mero mecanismo de confirmação de destinos sociais predeterminados. Tais usos têm confortado a inércia e a ineficácia do sistema educativo, desresponsabilizando os agentes educativos pelos resultados da sua acção, legitimando o conformismo e recusando à escola qualquer papel fundamental na mudança social.”

Perdoe-se a longa situação. Mas o lugar comum, a banalidade de pensamento, a repetição de um chavão sem fundamento, mostram bem a artilharia ideológica e a soma de preconceitos que habitam o cérebro da ministra da Educação.

Para mim é um mistério que os sociólogos não percebam que aquilo a que chamam ciência não passa da mais pura ideologia. Pior, de uma ideologia de carácter totalitário, pois fala a partir de uma putativa “verdade científica”. Nunca consegui perceber, no âmbito da acção humana, como é que da descrição, já enquadrada em teorias de reputação científica duvidosa, de determinadas realidades sociais se podem extrair prescrições e imperativos para a acção política (aquilo que a senhora ministra chama fundamentar). Descrever o que uma coisa é ou como tem sido, não dá qualquer legitimidade a qualquer enunciação sobre como ela deverá ser. O que a ministra faz, aliás no seguimento até de contributos “científicos” de outras áreas, como as “ciências” da educação, é disfarçar a sua ideologia e embrulhá-la numa autoridade que ela reputa de científica. Não há nenhuma verdade científica sobre como deverá ser a escola. Existem em conflito várias teorias, todas de carácter ideológico, que se confrontam na arena política. Só isso. A sociologia serve assim como arsenal ideológico para imposição de políticas absolutamente discutíveis. Mas, e isso é muito claro na acção política da ministra, a sociologia serve como fornecedora de um credo que apenas admite um caminho para a educação, onde o debate ideológico é sonegado e tudo aparece como a emanação na praxis de uma verdade prévia, a que os gentios se deverão converter em vez de questionar. Eis a natureza totalitária da ideologia sociológica.

Curioso, porém, é que esta “cientificidade” pode ter bons e maus usos, o que é uma concepção extraordinária. A ciência pretende ser descritiva e portanto amoral. Ao trazer o bom e o mau uso, a ministra da educação, em acto falhado, confessa o uso ideológico das teorias sociológicas. O problema, porém, é que o bem e o mal também são objecto de disputa e conflito.

O discurso da senhora ministra mostra para que serve, em muitos casos, a sociologia: uma ideologia justificativa das opções políticas, fundada em lugares-comuns, clichés e banalidades, aos quais não falta sequer um certo moralismo. É a este tipo de ideologia que se entrega o destino da educação de um país. Mas isto é também a prova provada de que o niilismo está cada vez mais activo e o seu lugar preferido de acção é o poder. A partir do poder a capacidade de dissolução das instituições é muito maior. Fazendo um curto-circuito, descobrimos que a sociologia é uma estratégia niilista que legitima o poder pós-moderno na destruição das instituições e dos valores remanescentes das tradições presentes no tecido social. E é por isso mesmo que, apesar de contra-indicado, a socióloga Maria de Lurdes Rodrigues não consegue fugir à temática moral: bom é o que dissolve, mau é o que conserva. A frase “tais usos (da sociologia da reprodução) têm confortado a inércia e a ineficácia do sistema educativo, desresponsabilizando os agentes educativos pelos resultados da sua acção, legitimando o conformismo e recusando à escola qualquer papel fundamental na mudança social” é, toda ela, um monumento ao preconceito ideológico, fundado numa visão falsa da realidade, e a enunciação clara do programa niilista, onde a vontade é mobilizada para processos de destruição, nomeados agora como mudança social. É curioso que a proposição, subentendida, “a escola tem um papel fundamental na mudança social” seja apresentado de forma axiomática, enquanto, na verdade, não passa de uma expressão puramente ideológica e bastante discutível.

A conexão da sociologia com o poder revela então o papel que lhe parece reservado: legitimar de forma totalitária, a partir da sua posição de “ciência” e da sua conexão à “verdade”, o avanço do niilismo nas sociedades ocidentais. Quem conhece o sistema educativo percebe como em três anos quase tudo foi destruído, tornado menos funcional, como os parcos valores de exigência ainda existentes foram transformados em nada. Há de facto uma coerência assinalável entre uma teoria ideológica de carácter niilista e uma praxis política também niilista. Não restará pedra sobre pedra.

Jornal Torrejano, 27 de Junho de 2008

On-line está já a nova edição do Jornal Torrejano. Para primeira página foi eleito o tema das dívidas do município com o título Qualquer dia não há dinheiro (aqui entre nós, isso já acontece em muito e bom lado). Referência ainda para a apresentação do renovado plantel dos amarelos. Por fim, um dirigente local do Bloco de Esquerda descobriu que havia um projecto socialista para o concelho, mas que não resulta. Se ele o diz…

Na opinião, siga-se então a ordenação alfabética após a referência ao cartoon de Hélder Dias. Carlos Henriques escreve Fasquia muito alta!, este blogger, Entre a creche e a assistência social, Jorge Salgado Simões, Cultura global, José Ricardo Costa, Crítica da razão impura, Marco Liberato, As folgas dos democratas e Miguel Sentieiro, A metamorfose.

Depois, é só ir passando por , para ir vendo como param as modas aqui na terra. Notícias frescas on-line, que o Jornal Torrejano não precisa de choque tecnológico para estar na vanguarda (passe a metáfora militar) da informação regional. Bom fim-de-semana e cuidado com os ultravioletas. Se acha que estou a ser muito sectário, proteja-se também dos infravermelhos, dos sobreverdes, dos supramarelos, dos superazuis e, acima de tudo, dos subrosas e dos infralaranjas. Não são de confiar.

Sobre a agressão económica como arma política

Num post de ontem, e na sequência de um artigo de Adriano Moreira, referia-se a agressão económica como um instrumento estratégico da maior importância. É natural que as pessoas pensem de imediato no petróleo, ou na invasão da Europa por produtos asiáticos que praticam o dumping social. Mas a dependência europeia do gás russo não é menos problemática e os russos não têm hesitado em usar o gás como arma geoestratégica. No Público de hoje há matéria sobre assunto que inclui informação (aqui) e reflexão (aqui e aqui).

26/06/08

JOHN SURMAN QUARTET live - Across The Bridge

A infância existencial

Conta Platão, no Timeu 22 b, que Sólon, tendo-se deslocado ao Egipto, foi recebido com grandes honrarias na cidade de Saïs. O motivo da consideração é que Saïs e a cidade de Sólon, Atenas, foram fundadas pela mesma deusa, Neith, na língua egípcia, e Atena, na língua helénica. Havia então uma partilha de origem, o que talvez significasse, dado que o sacerdote egípcio que falava com Sólon situava a fundação de Atenas mil anos antes de Saïs, um elo colonial esquecido pelos gregos.

Sólon, para fazer os sacerdotes a falar sobre a antiguidade, pôs-se a evocar aquilo que de mais antigo era conhecido pelos gregos. É neste momento que um dos padres, já muito idoso, diz: «Sólon, Sólon, vós, os gregos, sois eternas crianças; velho, um grego não o pode ser.» E perante a perplexidade do heleno, continuou: «Jovens, vós o sois todos de alma, pois não tendes nela qualquer opinião transmitida oralmente desde a antiguidade, nem nenhum saber encanecido pelo tempo».

Quando hoje falamos no aniquilamento das tradições, na ausência de conhecimento do passado, na pouca espessura da memória do homem ocidental, julgamos estar perante um fenómeno recente. Ora aquilo que Platão nos diz através das palavras do sacerdote egípcio surge assim como o símbolo de um destino do Ocidente. Não são os gregos antigos apenas que são desmemoriados. A perda da memória do passado é o destino de toda uma civilização que, já naquele tempo, se precipitava em direcção do futuro.

O que distingue aquele instante do actual é que Sólon e as crianças que eram os gregos ainda eram habitados por uma nostalgia que os lembrava dessa ignorância. E o ser criança da acusação do velho padre é sentido fatalmente como uma reprimenda e uma intimação ao crescimento. Os nossos dias, porém, não apenas desconhecem qualquer nostalgia do passado, como a desprezariam se ela se manifestasse. O ser criança dos ocidentais tornou-se a única realidade que lhes é acessível. Cada nova geração ocidental é educada para continuar criança, numa infantilização sem fim à vista. Mesmo se acontecimentos dramáticos, como as guerras mundiais, retiram uma ou duas gerações do infantário existencial, o destino logo se abate sobre nós e a cultura da eterna infância progride ainda mais rapidamente. Foi esse o destino que o velho sacerdote nos destinou naquelas estranhas palavras evocadas ou inventadas por Platão.

Sobre o novo génio da política nacional

(clique para aumentar)
Parece que alguém já percebeu a natureza do novo génio político nacional, esse jovem inefável e muito liberal que dá pelo nome abençoado de Pedro Passos Coelho. Volto a perguntar-me: por que razão não têm os políticos medo do ridículo?

Para compreender o amor que Pedro Passos Coelho gera em certos sectores liberais da blogosfera clicar aqui.

Como se autodestrói o Ocidente?

Para compreender a pulsão de morte que habita o Ocidente, há que meditar nesta edificante notícia da Lusa/Fim:

A justiça francesa condenou a uma multa de 800 euros um profesor que deu uma bofetada a um aluno de 11 anos durante uma aula, após este o ter insultado.

José Laboureur, de 49 anos, é profesor de Tecnologia na escola Cilles-de-Chin na localidade de Berlaimont, no Norte de França.

Compareceu em tribunal acusado de violência agravada e enfrentava uma pena de máxima de cinco anos de prisão e 75 mil euros de multa.

O profesor esbofeteou, à frente de toda a turma, o aluno após uma discusão, durante a qual este chamou ao professor "parvalhão".

Para o tribunal, "não se trata apenas de uma bofetada mas de uma cena de violência, onde está implícita a vontade de humilhar por parte do profesor".

O aluno foi suspenso das aulas por três dias, logo após o incidente com o professor, tendo, entretanto, sido transferido para uma outra escola (MAC).

25/06/08

Exodus - III

Tudo arde na brancura da tarde e uma chama acampa
pelas terras áridas. As palavras crescem roídas de saliva,
os dias a fazem aumentar, e a teus pés os rebanhos metálicos
deitam-se vorazes, estradas cospem-nos terra fora.
Os deuses procuram os sombrios bosques onde as tardes
cantam pela manhã e o fogo é agora um astro de sidra
no solo da memória, esfarelado, coberto de erva rala,
pequenas poças de água tépida, restos de ramos,
pássaros de olhos vesgos, cães coçados na sarna
a zumbir entre canaviais e as desventuradas ruas da cidade.

Na ardência, das coisas se apossava, corriam funâmbulos,
e na precipitação – a tudo abandonavam – à sua imagem
de vidro as mãos erguiam. Na sombra ansiosa, espreitavam
entre relógios, horas e dias, um caminho ainda haveria, diziam,
ruas de algas roxas pelos bordos, uma estrada de ruídos,
insectos de cinza, plantas melíferas pelos matagais de fogo,
e uma ardência, a tudo, no inquieto coração, se apegava.

Eu não tenho uma mão forte, nem do ramo da oliveira construo
bordão a que, no clamor da tarde, me encoste. Sigo preso
no horizonte e onde me levam aqueles que me levam eu vou,
sem o caminho saber, eu vou, na ardência da tarde, eu vou,
apenas porque alguém me leva, como se fugisse das lâmpadas
da noite e dos vagos faróis com que em estradas de colmo
automóveis tracejam, ímpios, a santidade da noite.

Levantam-se ali os amantes, os corpos despidos de carne,
e gritam pelo fogo, um dia, tão ao de leve, teria ardido
como restolho na ardência da campina infectada.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

Jan Garbarek with Keith Jarrett - Spiral Dance

Às vezes o futebol exaspera-me

Raros são os desportos de equipa em que os que jogam pior têm hipótese de ganhar. O futebol é um deles. Depois de ter feito um jogo quase miserável contra Portugal, a Alemanha levou um banho de bola na 1.ª parte contra Turquia. Mas três remates deram três golos e o apuramento para a final. É nisto que o futebol é imperfeito. Alemanha e Itália são o protótipo daquilo que muitas vezes torna o futebol uma xaropada insuportável. O melhor seria mesmo repensarem as regras do jogo.

A maldade de ler os clássico

Graças ao Zé Ricardo Costa, eis a razão pela qual alguns professores estão fatal e inapelavelmente fodidos:

"É muito difícil ler os clássicos; logo, a culpa é dos clássicos. Hoje o estudante faz valer a sua incapacidade como um privilégio. Eu não consigo aprender isto, portanto alguma coisa está errada nisto. E há especialmente alguma coisa errada no mau professor que quer ensinar tal matéria. Deixou de haver critérios, Mr Zuckerman, para só haver opiniões." [Philip Roth, A Mancha Humana]

Meditação sobre a Europa

Voltemos ao artigo de Adriano Moreira publicado ontem no DN e do qual se reproduziram aqui os excertos mais significativos. O artigo vale a pena ser lido, porque nele está presente uma análise que se funda num olhar arguto e sábio do fenómeno político. Assim, destaquemos os seguintes pontos:

1. Na nova situação mundial, a agressão económica tornou-se um instrumento estratégico da maior importância e perigosidade.

2. A Europa, nesta nova situação, está particularmente vulnerável. Esta vulnerabilidade é dada por um conjunto de carências: matérias-primas, energia, mão-de-obra e de confiança.

3. A globalização está a implicar uma alteração do peso dos protagonistas: as antigas colónias têm agora a iniciativa, enquanto as antigas metrópoles europeias sofrem as consequências da sua intervenção.

4. A crise foi gerada por um sistema económico global. Este foi instalado com “oferecida abonação científica” e “pouca governança” (sic).

5. Essa mesma crise está a gerar grandes protestos, pois “a pobreza crescente, o desemprego, e a fome, incitam ao exercício de direitos naturais pouco condescendentes”.


É preciso meditar até ao fim as palavras de Adriano Moreira. Em primeiro lugar, ele mostra que o problema da economia global não é um problema de mercado, mas um problema político. Certas potências estão a utilizar a “agressão económica” como instrumento estratégico. O Ocidente, com pouca clarividência ou através de um claro acto de traição dos governos aos seus povos, descurou não apenas o interesse dos seus, como abriu o flanco para que os inimigos utilizassem a economia como arma numa política que visa a destruição desse mesmo Ocidente. É preciso perceber que o par conceptual fundamental do pensamento político é o par amigo/inimigo. Quando o Ocidente abriu as portas, os seus inimigos fizeram o que lhes competia: assestaram os golpes mais rudes que conseguiram. E, se olharmos lucidamente para a realidade, continuarão a fazê-lo se o medo não lhes tolher a audácia.

A fragilização do Ocidente, nomeadamente da Europa, prende-se com factores estruturais (matérias-primas, energia, mão-de-obra). Estes factores já eram fundamentais no século XIX, como o lembra Adriano Moreira, e foram eles que desencadearam os processos de colonização. Agora, porém, a Europa está tolhida. Qualquer movimento expansionista seria uma catástrofe, para além da ausência, no actual contexto, de qualquer legitimidade para tal exercício. A Europa pode ser ainda a maior potência comercial do mundo, mas que futuro terá quem não possui matérias-primas, energia e mão-de-obra? Mais, que futuro terá um espaço político nessa situação, que ainda por cima pode estar rodeado de inimigos?

Mas aos problemas externos, adicionam-se os internos. Adriano Moreira refere os protestos que há por toda a Europa e diz mais: centram-se em direitos naturais pouco condescendentes. Há, no texto de Moreira, uma ambiguidade sibilina. Parecendo tratar da necessidade da confiança e do reforço da preocupação política por parte dos governos, o que ele pré-anuncia é o direito dos povos à revolta. E essa revolta é uma revolta legítima pois prende-se ao exercício de “direitos naturais” fundamentais. Há, no texto, uma subtileza muito interessante. Enquanto, os teóricos e os próprios agentes políticos tendem a dividir os direitos, sublinhando o antagonismo entre os direitos civis (vida, liberdade, propriedade e integridade da pessoa), oriundos do direito natural de Locke, dos direitos sociais (os provenientes do Estado-Providência), Adriano Moreira faz um curto-circuito e mostra como os direitos sociais, embora ele não os refira a não ser indirectamente, se inscrevem nos direitos civis fundamentais. Quem conhece a teoria lockeana sabe perfeitamente da legitimidade da revolta perante o poder que não respeita os direitos civis (cf. Carta sobre a Tolerância).

A partir do texto citado, podemos compreender a situação da Europa decorrente do processo de globalização iniciado e incentivado por Margareth Tatcher e Ronald Reagan. A Europa tornou-se politicamente muito frágil, abrindo o flanco aos seus inimigos externos e criando condições para grandes rupturas sociais internas. Restam-me duas dúvidas:

1. Será que para enfrentar estes trabalhos de Hércules bastam lideranças fortes? Não será já demasiado tarde?

2. Será possível que as elites políticas europeias percebam a situação enquanto não abandonarem o conceito de «economia-política»? Mas será possível que elas abandonem o conceito fundamental que estruturou o pensamento liberal e o pensamento marxista, dominantes no Ocidente?

Manuel António Pina - Salve-se quem puder

Como já acontecera no 6.º e 9.º anos, também os exames de Matemática do 12.º geraram, segundo jornais e TV, insolúvel controvérsia entre os estudantes, incapazes de se entender sobre se a prova foi "muito fácil", "muito acessível", "muito básica", "muito elementar" ou apenas "superfácil".

O "óscar" vai para um atormentado aluno de Portimão que, ouvido pelo CM, declarou que a coisa chegou a ser "difícil por ser tão fácil". Outros, que terão imprudentemente passado o ano a estudar, estavam desolados: afinal, mais valia terem gozado umas boas noitadas em discotecas e no "Rock in Rio", pois - queixaram-se ao "Público" - foi "demasiado fácil".

Idênticas dúvidas afligiam os especialistas: para a Sociedade Portuguesa de Matemática, "grande número de questões (era) de resposta imediata e elementar", ao passo que para a APM, pelo contrário, eram "bastante acessíveis".

A ministra tinha prometido resultados e eles aí estão. Antes de abandonar o barco, e na iminência de naufrágio do "Titanic" das políticas educativas, o capitão manda lançar os botes à água gritando: "As estatísticas primeiro!".
[Manuel António Pina, Jornal de Notícias de 25/06/2008]

Retratos da Pátria – IV. A crise da Universidade

O défice cognitivo tem uma justificação simples: a miséria. A Universidade de Aveiro, uma das mais pujantes no país, está sem dinheiro para pagar as despesas de funcionamento. Segundo o Público, a Universidade está a utilizar dinheiro destinado à investigação para pagar os subsídios de férias de funcionários e professores. Eis o resultado do choque tecnológico que nos haveria de fazer entrar, a grande velocidade, na sociedade do conhecimento. Há uma coisa que ainda me consegue espantar: por que razão os políticos não têm medo de ser ridículos. Mentirosos, eu compreendo que sejam, mas ridículos?

Retratos da Pátria – III. Falta de compreensão da denúncia da corrupção

Afinal é um problema cognitivo. Segundo a magistrada Maria José Morgado, "há dificuldade da sociedade portuguesa em compreender a denúncia" da corrupção e que os tribunais "deixam os denunciantes entregues a si próprios" (Público). Sempre me pareceu que Portugal vivia um défice cognitivo. A sociedade não compreende a denúncia da corrupção e os tribunais parece que também não. No domínio da incompreensão, vivemos numa sociedade igualitária: ninguém compreende que se denuncie a corrupção. Valha-nos ao menos isto.

Retratos da Pátria – II. A saga do urbanismo

Paulo Morais, antigo vereador da Câmara Municipal do Porto, veio denunciar que os “terrenos valem em função do seu proprietário”. E eu a pensar que o mercado é que decidia do valor das coisas (Público). Sim, eu sei que Paulo Morais se refere às compras efectuadas por órgãos de poder, como as autarquias. Mas não é o poder autárquico o melhor que a Revolução de Abril produziu? Diz o senhor que os tribunais administrativos “têm estado um pouco adormecidos” nas questões de corrupção urbanística. Um pouco? Meu Deus, não andará também Paulo Morais com sono? Por fim, considerou que a Inspecção-Geral da Administração Local “é uma entidade inexistente” e ainda se mostrou “desiludido” com a Justiça, pois as investigações às suas denúncias têm avançado muito mais lentamente do que seria desejável. Mas a pergunta que importa fazer é: seria desejável para quem?

Retratos da Pátria – I. O mundo do trabalho

Sempre que um governo precisa, para tranquilizar a má consciência de alguns, de um acordo dos representantes dos trabalhadores, lá está a sempre disponível UGT (Público). Por seu turno, a CGTP contínua fiel a si e abandona a mesa das negociações. Enfim, uma fotografia da falsidade em que assenta o mundo do trabalho em Portugal. Antes das negociações, já todos sabiam o resultado, até parece o futebol pátrio.

24/06/08

Exodus - II

Em terra alheia sou peregrino e caminho ébrio
pelo asfalto, as torrentes de ar incendeiam-me o rosto,
as faces lívidas com que entro nesta cidade,
e deixam aberto em mim o martelar furioso
das pedras ígneas do silêncio. Não sei o preço
da viagem, nem tenho nos bolsos moedas,
ouro, prata. Algumas pedras da estrada,
se as penso, tomo na mão e
o peso verga-me o olhar para o alcatrão.

Às vezes, tão poucas, oiço vozes ao longe
e sonho com prados de água seca e fogos frios
de Outono, se transpira de cansaço.
Tão gélido o fogo, o que me trazem para escutar,
cor de cobre, metálico nas labaredas,
na terra entram e se ocultam: fogos de Outono,
a crisálida os habita e longe dos olhares
buscam moradia. Pela calada da noite
o seco véu… do Inverno ele virá.

Do turbilhão dos músculos soltam-se passos infalíveis,
o bater dos pés pelo chão, levam-me terra fora.
Que dizer? Ao vê-los, riem crianças.
A voz cala-se. Se o corpo caminha, ela, rouca, suspende-se,
e só os olhos se agitam no repouso da paisagem,
nova sempre vem, e entra por eles e filtra-se
no cérebro do que caminha, passos errantes,
a gerar riso de moscardo, cinzento,
sem pétalas, gretado como as águas amargas dos que
tiveram memória e dela foram despojados.

Desconheço as faces, o horizonte mas devolve, e não posso
comprar pão e vinho. Há muito deixei de ter mesa
onde os pousar e se regressar agora à casa branca,
um dia disseram-me esta é a tua casa,
as paredes não me reconhecerão e naquela mesa, se mesa
ainda tiver, não haverá para a sombra lugar,
nem guardanapo, nem prato de barro esperará
a ânsia da fome, haveria de a ter.

Resta-me caminhar, passar, as portas fechadas,
cadeados quebrados, janelas corridas.
Às vezes, tomam-me as sombras da tarde e a elas
entrego o nada que me resta, deuses mo deram.
Perdida a ausência que me movia,
ergue-se uma canção pura:
Delata-me à negra noite, aos terrores da infância.
O coração descompassado esvai-se num grito,
e logo o silêncio o arrebata e à planície da mudez o devolve.

Ergo-me sobre as pernas e, preso a meus passos,
retomo a viagem, olhos no horizonte,
um saco de ervas e dois relâmpagos por bagagem.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

Luigi Nono - Prometeo, Tragedia dell'ascolto - Hölderlin

A versão de Luigi Nono da tragédia de Prometeu. Pouco recomendável para quem odeia a vanguarda. Com Lux Aeterna de Gyorgy Ligeti, esta é uma das peças da vanguarda europeia de que mais gosto, ou não fora a existência de um mito grego como pano de fundo. Aliás, seria interessante fazer um périplo de leitura entre João Evagelista (Evangelho, Apocalipse) e o Prometeu Agrilhoado de Ésquilo, com as obras de Ligeti e de Nono como pano de fundo.

Das influências intelectuais

As revistas Foreign Policy (EUA) e Prospect (Reino Unido) elaboraram uma lista dos 100 intelectuais mais influentes no mundo. Para tal organizaram uma votação, na qual participaram meio milhão de pessoas (Público). O método vale o que vale e presta-se às mais diversas constatações e contestações. Mas os resultados não deixam de ser interessantes. Nos primeiros 10 lugares, encontram-se apenas intelectuais de orientação muçulmana. Estes dados permitem várias leituras concomitantes. Em primeiro lugar, o mundo islâmico começa a interessar-se decisivamente por este tipo de coisas; em segundo, a comunidade muçulmana mundial, apesar das suas diferenças, é, hoje em dia, um claro actor histórico consciente da sua identidade e do seu papel no mundo; em terceiro, parece que o Ocidente que foi grande devido aos seus intelectuais se desinteressou deles (o primeiro ocidental é Noam Chomsky).

É como se estivéssemos a assistir a um render da guarda: o Ocidente desistiu de pensar ao desinteressar-se pelo trabalho e as ideias dos seus intelectuais, enquanto o Islão começa a olhar para eles com esperança de uma afirmação que o retire da medievalidade. Os nomes que o Público refere não pertencem a radicais e fundamentalistas, mas a gente que contribui para um Islão civilizado e respeitador dos direitos do homem. Nem sempre as notícias são más.

O véu de Maya

Os portugueses são os mais pessimistas da União Europeia, segundo o Eurobarómetro (Público). Parece que o mirífico país do plano tecnológico não resistiu ao choque. Como não sou vidente, não sei qual o futuro reservado pelos deuses a Sócrates e companhia. Mas, nestes anos de democracia, nunca houve um governo tão arrogante. Sócrates pensou que governava o país a partir de uma central de propaganda e que a propaganda chegava para disfarçar os problemas reais para os quais ele não estava preparado. Agora descobre que o véu de Maya que pretendeu estender sobre o país se rompe por tudo o que é sítio e deixa ver o tenebroso da realidade primordial. Os portugueses, como bons bacantes, cultuam o pessimismo, isto é, apercebem-se da realidade que é a sua. Depois de um Apolo tecnológico, refugiam-se em Diónisos.

Mugabe o ruído e o silêncio

O caso Mugabe é um dos mais tristes na muito triste história política africana. O ruído da desistência de Morgan Tsvangirai é ensurdecedor. Por cá, o silêncio de certas vozes amigas dos povos não deixa de fazer o seu pequeno barulho. Devem achar que o estatuto de anticolonislista de Mugabe permite tudo.

Adriano Moreira - A fragilidade europeia

De facto o globalismo económico destacou a agressão económica como um instrumento estratégico da maior importância e perigosidade. Neste caso, a Europa está numa situação de vulnerabilidade aguda, como subitamente se tornou evidente com a crise dos combustíveis.

A expansão colonial do século XIX foi justificada pelas democracias europeias da frente atlântica, nos respectivos parlamentos, pela necessidade de dominar as fontes de matérias-primas e garantir mercados de produtos acabados. Destruído esse império, a realidade, demonstrada pelas manifestações que desfilam pelas capitais europeias, é que a Europa é um espaço com debilidades, carente de matérias-primas, carente de energia, carente de mão-de-obra, e começa a dar sinais de carência de confiança.

A globalização implica sistemas abertos que sofrem as intervenções cuja origem a lei da reflexividade situa nas antigas dependências coloniais, e os sinais de que a capacidade europeia de reformular e reanimar o sistema está em dificuldades são eloquentes. A falta actual de lideranças poderosas e confiáveis também não ajuda a inverter a tendência

(…)
A crise que traz multidões para a rua em protesto pelas dificuldades de vida causadas pela disfunção do sistema económico globalista, que foi instalado com oferecida abonação científica e pouca governança, não é amenizada pelo recurso a semânticas paliativas porque a pobreza crescente, o desemprego, e a fome, incitam ao exercício de direitos naturais pouco condescendentes. Esses direitos naturais exigem uma sociedade de confiança para que a contenção recíproca, necessária para assegurar a coexistência efectiva de todos, seja um regulador natural. A pouco amiga circunstância externa, exige uma sólida mobilização cívica a que a UNESCO de longe apela, para que a política retome o comando confiável e oriente o rumo para horizontes menos inquietantes. [Adriano Moreira, Diário de Notícias de 24/06/08]

Mário Soares - O regresso da política

Falta à União cidadania europeia. Os europeus, de todos os países membros, têm poucos meios para influenciar as decisões dos dirigentes e mesmo para as compreender. Estão a leste do que se congemina em Bruxelas. Ora é isso que leva ao desconhecimento do que está em jogo - de cada vez que são consultados - e à indiferença.

Alheiam-se dos problemas. O que não quer dizer que estejam dispostos a consentir que os seus Estados abandonem a construção europeia ou saiam da Comunidade. Porque a União é um grande e original projecto político que trouxe à Europa cinquenta anos de paz, de bem-estar às sociedades europeias - mesmo às mais desiguais - e de prestígio no mundo inteiro.

É verdade que desde há alguns anos a burocracia de Bruxelas e a influência hegemónica americana parecem ter subvertido os grandes ideais europeus. A Europa tornou-se muito conservadora. As duas maiores famílias políticas europeias - que praticamente fizeram a Europa - foram: a socialista ou social-democrata e a democracia cristã. Ambas perderam força. Hoje, em 27 Estados europeus, haverá apenas 3 ou 4 governos que ousam afirmar-se socialistas ou trabalhistas; e as democracias cristãs, tirando a alemã, evoluíram no sentido dos partidos populares, populistas e ultraconservadores, o que faz toda a diferença.

As crises múltiplas - e as terríveis dificuldades que trazem consigo -, para encontrarem qualquer solução e não desaguarem no caos ou em revoltas sangrentas, vão obrigar ao regresso em força da política e dos grandes ideais humanistas. Requer-se imaginação estratégica, persistência e coragem, muita coragem. Para transformar o que hoje nos parece impossível numa promissora realidade, amanhã.
[Mário Soares, Diário de Notícias de 24/07/08]

23/06/08

Exodus - I

Não há quem saia pela manhã a olhar
as dispersas sementeiras, os campos invadiram.
A mão crispou-se, agora novelo de linho
esquecido sob a luz da clarabóia.
Não há seta que indique o lugar onde o desejo
se quer e irrompe no crepúsculo matinal,
entre corações desfeitos, a gotejar ervas,
e mãos presas à viagem, assim começada,
para um deserto de páginas em branco,
sem luz que ilumine, cor que incendeie,
sílabas, por filhos palavras dêem.

Não é cântico de júbilo o que na garganta
se forma, nem palavra tingida pela acidez
dos dias. O arco-íris esbateu-se, as nuvens
ficaram mais opacas, quase sólidas,
numa atmosfera de cactos, ruas vazias,
faces atónitas levemente estropiadas. Se
cicatrizes ainda têm, nelas nasceu uma erva rasa,
amarela, queimada pelo cálcio, a tudo devora.

Não é âncora o que ofereço, nem lenço
para lágrimas, se lágrimas ainda te ardem
sobre a pele rugosa, a face, dizes que te disseram.
Espelhos não fabrico, nem do vidro
sei o segredo, nem das mãos o aconchego.
Canto na escuridão para não morrer,
para me ouvir e adivinhar o que ainda sou
e nesta ilusão caminho estrada fora,
os pés no chão, e na cabeça, ainda a tenho,
o ar da noite preso numa caravela.
Ao arder, ponho máscara de cera e se invoco
o deus, oiço a voz de quem de casa não sai
a olhar as dispersas sementeiras;
no fulgor do passado, os campos invadiam.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

Exodus, um novo ciclo

Uma longa hesitação tem-me levado a adiar a postagem do ciclo Exodus, escrito em 2007. Uma arreigada convicção vê a prosa como a decadência da linguagem poética. A linguagem começaria por ser uma construção metafórica e com a vulgarização das metáforas surgiria a linguagem corrente, a prosa que os homens utilizam na comunicação, na reflexão ou na narrativa não poética. Se assim foi, e há gente como Nietzsche que o defende, a verdade é que nós nunca teremos acesso a essa linguagem primordial absolutamente poética e criativa. Somos homens de tempos prosaicos e da ruína da linguagem.

O exercício que tem o nome de Exodus parte destas constatações. Parte da situação de ruína e tenta elevar-se ao poético, sem talvez abandonar o chão prosaico de onde parte. O poético, se o houver, não é dado pelas estratégias habituais ligados ao ritmo, à métrica, à rima, à convenção técnica, mas a esta e àquela palavra que se libertam da sua natureza prosaica e ao jogo semântico que institui um universo em cada poema, digamos assim.

Exodus não descreve, todavia, universos existentes, nem é inspirado no livro bíblico com o mesmo nome, apesar de apresentar tantos poemas como capítulos existentes nesse livro, quarenta. Há também em quase todos os poemas uma pequena citação dissimulada de cada um dos capítulos, mas essas citações nem podem sequer ser consideradas pontes intertextuais. São jogos de adivinhação presos em universos que se chocam com aquele que habitamos. Mas tudo isto não passa de suposições de quem tenta libertar do magma da prosa uma palavra ou um mundo.

José Afonso - Redondo Vocábulo

É evidente que este José Afonso é melhor do que outros mais vampirescos. Embora cada coisa tenha o seu lugar, o génio de José Afonso é muito mais nítido quando é menos político. Opiniões, dirão. Opiniões, confirmo.

Um país em colapso

Os sindicatos da polícia preparam uma vaga de contestação à política governamental. Depois de professores, camionistas, militares, funcionários públicos, trabalhadores por contra de outrem, chega agora a vez das forças militarizadas. Para lá das razões que cabem a cada sector profissional, o que fica à mostra é um país em colapso, um país estruturado numa sociedade sentida como largamente injusta. Trinta anos de democracia foram insuficientes para tapar as profundas fissuras que atravessam, há séculos, a sociedade portuguesa. O mais problemático, porém, é que se criou um sentimento de que as “fendas” sociais estão a alastrar de uma forma irremediável, e que a democracia não é solução mas parte do problema. Isto é particularmente perigoso.

Congresso do PSD

Estando fora no fim-de-semana, o acompanhamento do congresso do PSD foi muito débil. Agora que o sínodo terminou, parece que ficou confirmado, tendo em consideração o número de apoios granjeados (e este argumento é o único), que Pedro Passos Coelho é mesmo um génio da política. Manuela Ferreira Leite não passará assim de uma diaconisa que, como na Igreja primitiva, tem mais uma função assistencial e caritativa do que de direcção apostólica. A fabricação de génios políticos no PSD é tão rápida como aquela que acontece, por obra do Ministério da Educação, na Matemática.

Por uma vez, de acordo com Daniel Sampaio

Estava tudo a caminhar tão bem. Procurador-Geral da República e Ministra da Educação até pareciam de acordo: a violência escolar tinha diminuído. Também que indisciplina não era violência, etc., etc. Mas o psiquiatra oficial do regime, o Professor Daniel Sampaio, veio pôr fim ao idílio: afinal, a indisciplina é uma forma de violência. Segundo o Público, Sampaio terá dito: «Há uma diferença entre indisciplina e violência mas quando se diz que indisciplina nada tem a ver com violência não estamos no bom caminho.»

É claro que Sampaio tem razão. A indisciplina atinge o direito dos outros alunos a aprender e a ter um ambiente normal na escola. Atinge também o direito dos professores a ensinar. A indisciplina é uma forma de violência difusa. Por norma, não ultrapassa a fronteira e não descamba em violência física, mas os direitos dos outros são de facto coarctados e isso é uma clara forma de violência. Esse tipo de violência pode ter consequências nefastas não apenas no aproveitamento imediato das vítimas, mas também no seu futuro escolar. Por uma vez, estou de acordo com Daniel Sampaio.

21/06/08

Quando chumbar é uma vergonha

Se o leitor quer compreender por que razão o ensino português é o que é e se ainda quer perceber as razões de fundo que opõem professores ao Ministério da Educação, então poderia começar por ler e meditar profundamente o artigo de hoje, nas páginas centrais do Diário de Notícias:
Mas para não ficar a pensar que isto se passa apenas com ucranianos, acrescento que tenho uma aluna de um outro país de leste, uma das minhas melhores alunas, que me diz exactamente o mesmo. Fica horrorizada com a irresponsabilidade da maior parte dos colegas.

20/06/08

Colisão de galáxias

Um rasto de luz,
uma câmara de gás…
Algumas estrelas espreitam.

E nas trevas infinitas
há galáxias esquecidas
tão doentes; mal se deitam.

Jorge Carreira Maia, Poemas dispersos.

Carmen McRae 1988 Montreal

Cuidar da mercearia

A cimeira de líderes (seja lá isso o que for) da União Europeia faz o favor de não aborrecer, por agora, a Irlanda por ser um país democrático (Lusa). O tratamento dos desvarios democráticos dos ilhéus fica para depois, apesar do feitor cá do sítio achar que não há alternativa ao milagroso Tratado de Lisboa, feito pelo qual há-de subir ao reino dos céus e adquirir a glória dos altares, com direito a resplendor e tudo. Agora, porém, há que tratar da mercearia, que a escalada de preços, nomeadamente do petróleo, está a minar os alicerces dos quintais e sem quintais não há Tratado.

Em defesa dos exames

Tanto no exame de Língua Portuguesa do 9.º ano, realizado na quarta-feira, como no de Matemática também do 9.º ano, realizado hoje, as associações profissionais de ambos os sectores vieram sublinhar a diminuição do grau de dificuldade das provas relativamente a anos transactos (Sol). Chegámos a um momento inaceitável da nossa vida pública. Os exames e as provas de aferição nacionais não podem servir de arma de arremesso político. A degradação do estado da educação, provocada pela actual equipa ministerial, é tal que começa a justificar-se a intervenção do primeiro-ministro ou, caso este não sinta inclinação para tal, do Presidente da República. A não acontecer, corre-se o risco de até os exames nacionais deixarem de ter qualquer valor social reconhecido. As notas dos alunos não podem ser motivo de gargalhada geral como aconteceu com os resultados das provas de aferição. Chega.

Os dias comuns

O primeiro post foi a 21 de Maio deste ano, portanto os dias comuns vão fazer um mês. Mas o que é os dias comuns? Leia-se a epígrafe: fotografia com música e poemas dentro. A coisa começa a esclarecer-se. Talvez a palavra-chave seja fotografia. O blogue de Carlos Rema vem mostrando fotografia do autor de enorme qualidade. Depois, combina-a com música que indicia toda uma geração: jazz e música francesa. Por fim, há também, uma vez por outra, poesia e pequenas reflexões. Mas o essencial é mesmo a fotografia quase sempre a preto e branco, quase sempre a fotografar o não presente, o não visível, o não fotografável. Fotografia metafísica, portanto. Não sei se o autor é crente, mas se há uma coisa de que falam aquelas fotografias é de Deus, ou do seu afastamento, ou do efeito da sua ausência sobre o homem. Não sei se pode dizer que um blogue de um torrejano seja um blogue torrejano, mas será essa discussão útil? Clique aqui para ir até .

Jornal Torrejano, 20 de Junho de 2008

Tem nova cara a edição on-line do Jornal Torrejano, tem novas funcionalidades e está mais moderno (sem ofensa, claro). Está mais bonito e mais profissional. Por exemplo, as últimas notícias estão a funcionar, o que é um excelente sinal. Chega de elogios. Embora eu não seja da casa, não passo de um mero colaborador que o JT faz o favor de publicar uns textos que vou mandando, ainda podem julgar que estou a fazer um elogio a coisa minha, não é.

Na edição impressa (mas on-line), nota de relevo para o novo comandante dos bombeiros torrejanos e para a entrevista com Arnaldo Santos, o comandante que sai. Nos destaques da edição, uma referência sentida para a morte de José Henrique Farinha, meu antigo colega de estudos, pai de uma aluna minha e pessoa boa, merecedora de grande estima e consideração.

Na opinião, os escribas aparecem ordenados pela ordem alfabética. Assim, Carlos Henriques escreve Selecção descrente?, Carlos Nuno, O Barril, este blogger, A Irlanda e a democracia na Europa, Jorge Salgado Simões, Não-Nope-Nada-Rien-Kaput, José Ricardo Costa, The Winehouse, Marco Liberato, A Cruzada, Santana-Maia Leonardo, Este país não é para velhos.

Com os votos de um contínuo aprimoramento do nosso jornal, despeço-me com amizade até ao próximo programa, quero dizer à próxima edição. Bom fim-de-semana.

19/06/08

Lilases tardios

Lilases tardios
infestam as ruas.
Tristeza na noite,
efémera e cálida,
sombreia o Outono
sem nome que levas
ao mar assombrado,
roído de areia.

Se cantas ainda
aquela suave
e doce cantiga,
é porque os lilases
não entardeceram
naquela rua triste
perdida no mar
sombrio do Outono.

Deixaste um rio
de lava manchado
na aldeia tão fria.
Então caminhaste
cabelos ao vento
e fogo no olhar.
Assim amanhece
o triste lilás.

Jorge Carreira Maia, Pentassílabos, 2008

Ute Lemper - All that jazz

Ganharam, pronto, podem calar-se? Homenagem aos alemães com a Ute Lemper e all that jazz também para vocês. Tenho dito.

O céu está negro

Portugal 2 Alemanha 3. Acabou-se. Foi digno e um grade trabalho de Scolari e, também, dos jogadores. Os alemães marcaram mais e quanto a isso não há nada a dizer. No fim estavam nas cordas, mas o que conta são os golos. Agora estamos todos mais tranquilos para descobrir quem vais ser o vencedor. Palpite: Itália.

Tudo negro, cada vez mais negro

Portugal 1 Alemanha 3. Sem palavras.

A coisa está cinzenta escura

Portugal 1 Alemanha 2. A coisa melhorou. Ainda há esperança, até o Nuno Gomes se lembrou que era avançado-centro. A coisa até já podia estar empatada.

A coisa está preta

Portugal 0 - Alemanha 2. A coisa está escura como breu, os tipos são uns panzers dos diabos. Vamos lá ver se a há força para a reviravolta.

Corrupção e ostracismo

Quando leio certas coisas lembro-me dessa instituição ateniense a que não faltava grande sabedoria: o ostracismo. Dirão que não é muito democrático condenar o pessoal ao exílio. De acordo, mas quando se lêem coisas (Público) como as que diz essa sumidade que chefia a bancada parlamentar socialista, Albano Martins, a saudade daqueles tempos gloriosos torna-se violenta. O PS quer um Conselho de Prevenção da Corrupção para, diz a excelência, “detectar e prevenir” os riscos (sic) da corrupção. Parece que a polícia e a justiça têm mais que fazer, é preciso um conselho preventor. Para quê tal conselho? “Identificar as áreas mais vulneráveis à penetração do fenómeno”. Aliás, ninguém faz ideia de quais são, só mesmo o conselho é que nos salva. E a que mais pérolas temos direito? Esta é extraordinária: a proposta prevê “meios logísticos e aproveita as sinergias da administração pública, desde logo os inspectores-gerais da administração pública”. Quem utilizasse a palavra sinergia deveria ser condenado a um duplo ostracismo. Esta proposta socialista é o que se chama, por cá, andar a encanar a perna à rã. Temos mesmo de aturar isto? Vá lá, tragam as conchas de ostras e o pessoal vota.

Exames, aferições e credibilidade

A política governamental na área da educação conduziu a um beco com uma única saída, a saída da equipa ministerial. A razão é simples: não há qualquer confiança social nos resultados das provas de aferição e dos exames nacionais. A questão está de tal maneira politizada que muita gente vê nas provas e nos resultados puros actos políticos e não o trabalho normal e independente da instituição educativa.

Pode vir o director do GAVE, Carlos Pinto Ferreira, acusar os críticos de nada saberem de avaliação (Público). Isto não é mais do que uma amostra do desespero que percorre as hostes, devido ao pouco crédito que possuem neste momento. Quem trabalha em educação sabe muito bem que não há reviravoltas de um ano para o outro. Sabe ainda outra coisa: o principal motivo das frágeis aprendizagens dos alunos encontra-se numa cultura que ostentam e que é inimiga do trabalho, do estudo e do esforço. Sabe também que essa cultura não mudou. Por que motivo mudaram os resultados?

Pretender, como a senhora ministra, que isso se deve aos planos (esta tentação sovietizante do plano é interessante) da matemática e da leitura é acreditar em milagres. Só um milagre poderia inverter, não ao nível de uma escola, mas do país os resultados de um ano para o outro. A única coisa que resta e que é explicação verosímil centra-se nas provas, no seu grau de dificuldade, nos critérios de correcção e na distribuição da pontuação pelos itens. Quem sabe um pouco de avaliação, de construção de provas, de análise estatística de resultados e de ponderação das cotações, percebe que é possível dar um jeito nos resultados. Mesmo que nada de errado se tenha passado, a desconfiança social instalou-se. Refira-se, ainda, um outro problema ligado a este: o da possibilidade de comparar resultados com anos anteriores. É preciso provar que as provas eram equivalentes, o que está muito longe de estar provado. Em última análise, quando se fazem comparações entre resultados para evidenciar êxito de políticas, nem sequer sabemos do que se está a falar.

Se houvesse algum interesse em assegurar a credibilidade das provas, dever-se-ia tê-las submetido a análise e auditoria independente. Agora, porém, é tarde e todas as análises que sejam feitas, por mais honestas que sejam, serão compreendidas como fazendo parte do jogo político que a equipa ministerial organizou. Este défice de credibilidade, e não interessa se ele corresponde à realidade ou a uma ficção, exigiria para o bem do país e do sistema educativo a demissão não apenas da equipa ministerial, mas também do director do GAVE, independentemente da bondade do seu trabalho. A excessiva politização da educação, promovida pelo governo como estratégia eleitoral, é nefasta para os alunos e para o futuro do país.

18/06/08

Canta ardente fada

Canta ardente fada,
faz de tudo o que há
um céu de azeviche,
talvez uma flor
de roseira seca
a olhar vazia
para tão negro
vazio qu’em mim há.

Jorge Carreira Maia, Pentassílabos, 2008

Bloco central

“Marcelo Rebelo de Sousa não descarta acordo entre o PSD e o PS depois das eleições” (Público). Marcelo sabe o que está a dizer. Sabe que essa poderá vir a ser a única solução para assegurar a continuidade das políticas que estão a ser seguidas na Europa. O empobrecimento da população precisa de continuar sem grandes sobressaltos políticos e é isso que, em caso de necessidade, levará à formação de um bloco central, como já aconteceu e está, neste momento a acontecer, na Alemanha. A isto há que juntar uma possível revisão constitucional, que seja útil para os fins que ambos os partidos, ou as forças que eles representam, perseguem.

Horace Silver Quintet-Nutville-1969

Não sei o motivo, mas comecei a embirrar com o tamanho desmesurado dos vídeos. Assim, o Horace Silver vai em tamanho menor. O som também já teve melhores dias, mas ainda assim vale a pena.

Horace Silver Quintet-Nutville-1969
Colocado por redhotjazz

Pedro Nunes, o novo herói da criançada em Portugal

Depois de saber dos espantosos resultados nas provas de aferição de Matemática (4.º e 6.º anos), fiz um inquérito aos meus amigos que têm filhos na idade de realizar aquelas provas. Fiquei estupefacto. A miudagem só fala no Pedro Nunes, todos querem ser como o Pedro Nunes. Os filhos de gente mais à esquerda até falam em ser Bento de Jesus Caraça. Há miúdos, talvez esquizofrénicos, que querem ser os dois ao mesmo tempo. Um amigo meu até já me pediu os livros do Hilbert e do Russel para emprestar ao miúdo que está a acabar o 4.º ano. Os pais estão aflitos com tanto interesse pela matemática demonstrado pela pequenada. Há alguns que já pensam consultar psicólogos como o dr. Eduardo de Sá ou psiquiatras como o dr. Daniel Sampaio para saber se isto é normal. Meu Deus, como o plano da matemática mudou toda uma cultura atávica. Não posso abrir mais a boca de espanto.

Um país de matemáticos

Dantes éramos um país de poetas, agora somos um país de matemáticos. Ao fim de dois anos, a ministra da Educação conseguiu transformar um país que mal sabia contar pelos dedos, numa pátria de alta eficiência matemática, pelo menos a avaliar pelos resultados das provas de aferição do 4.º e 6.º anos de escolaridade. Os resultados positivos estão acima dos 90%. É evidente que existem sempre umas almas mais desconfiadas que acham que as provas são demasiado fáceis e também há outras almas suspeitosas que pensam que os resultados se podem manipular com facilidade. Mas deixemos de lado essa gente que gosta pouco das aparências e banhemo-nos na nossa nova vocação matemática. Afinal, estávamos esquecidos, mas descendemos todos do Pedro Nunes.