Bento XVI, a Igreja Portuguesa e o que está em questão
Foram duras as palavras ditas por Bento XVI aos bispos portugueses (ver aqui e aqui). Perante o panorama actual da Igreja Católica em Portugal, o papa diz mesmo que “é preciso mudar o estilo de vida de organização da comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros”. Curiosamente, um papa visto por alguns como um conservador e um renegado do concílio Vaticano II vem chamar a atenção à Igreja portuguesa para a distância a que ainda se encontra da realização do espírito conciliar. Mas o que é necessário sublinhar é aquilo que Bento XVI propõe como via para resolução da crise. Ora essa via é a da “eclesiologia da comunhão na senda do Concílio”. A ideia de «comunhão» surge em vários passos do discurso papal.
O grande problema, porém, encontra-se mesmo aí. Mais do que uma rejeição do cristianismo, o que acontece é a rejeição de um espírito de comunhão e de comunidade da fé. A consciência moderna trabalhada, durante séculos, pelo iluminismo emancipou-se e convive dificilmente com formas de vida onde essa consciência não é o último árbitro. É cada vez mais difícil para homens educados no espírito moderno admitir que, sobre a sua consciência, se erga a consciência do sacerdote como intérprete da palavra de Deus e orientador da vida do indivíduo. Aqui encontra-se o cerne das dificuldades do catolicismo no mundo ocidental, e Portugal não é excepção.
Este problema é reforçado pela própria natureza do cristianismo. É preciso perceber que se há individualismo ocidental, então este formou-se na base de um arquétipo: Jesus Cristo. É este modelo que está por detrás das concepções iluministas do indivíduo. Sem ele, teria sido impossível ao mundo ocidental abandonar as formas de vida baseadas na tradição comunitária e adoptar formas de existência fundadas na responsabilidade e nos direitos individuais. O crescente individualismo presente na vida ocidental não se insere numa cultura anti-cristã, mas na realização de uma possibilidade aberta pelo próprio cristianismo. Surge como uma consumação do Cristo evangélico.
A questão que o individualismo verdadeiramente coloca está ligada à fragmentação da consciência. Esta fragmentação da consciência permite a deriva que vai da consciência individual senhora de si, dos seus direitos e da sua responsabilidade, até à consciência errante, uma consciência que se perde nas múltiplas seduções que a vida moderna coloca. É o acréscimo da errância da consciência, o sentimento de que os indivíduos se encontram perdidos nesta vida, que poderá fornecer a ilusão subjacente às palavras de Bento XVI. No fundo, pensa-se que novas formas de comunhão, novas formas de catecumenato (e elas estão aí, algumas de fazer arrepiar os cabelos), uma atenção maior e mais sólida à formação religiosa das novas gerações, poderão ser solução para o decréscimo da prática religiosa. Tenho dúvidas sobre a solução. É possível que no âmbito de um certo cristianismo popular as coisas ainda se possam passar assim, mas esse cristianismo popular está em transformação. O mundo rural acabou e a vida nos subúrbios das grandes cidades é outra coisa.
Com o crescimento exponencial da formação académica, por precária que esta seja, e o grau de emancipação da consciência individual que isso representa, as soluções comunitárias mostrar-se-ão sempre impotentes para chegar aos indivíduos. A Igreja Católica está confrontada com um problema que talvez nem consiga enunciar: como falar para indivíduos enquanto indivíduos, respeitando a sua individualidade, a liberdade da sua consciência, a responsabilidade com que podem assumir os seus actos? Durante 20 séculos a Igreja Católica espalhou aos quatro ventos que todos eram filhos de Deus e iguais perante o Pai. Ora, quando os indivíduos tomam consciência desta sua identidade já não podem suportar directores espirituais, tutores da consciência, juízes dos seus comportamentos éticos e das suas opções existenciais, entre elas a forma como gerem a sexualidade (uma fixação da Igreja, ao contrário do Cristo evangélico).
Para estes indivíduos aquilo que o «catecumenato» e a comunhão podem oferecer é risível. Há muito que eles ultrapassaram essas formas primitivas de consciência. Se a Igreja Católica quer tocar as consciências esclarecidas (no sentido da Aufklärung), então terá de abandonar o paternalismo e formas mistificadas de fraternidade. O diálogo a fazer é entre Razão e Fé, entre a conduta racional na vida social e individual e a experiência espiritual supra-racional. Retomar, ainda que de forma reconstruída e envolta em novas roupagens, formas comunitárias que a experiência da consciência já rejeitou é uma ilusão.
A actual crise da práxis religiosa pede pelo menos dois tipos de aproximação. Ao nível popular, a religião ainda é percebida como forma de consolo para os desvarios da vida. Aqui é compreensível a solução papal. Mas as nossas sociedades são constituídas já por amplos sectores de indivíduos, donos de si, senhores da sua consciência, segregados dos espaços comunitários tradicionais. Para estes, as formas tradicionais de consolo são sentidas como experiências infantis. Se o catolicismo quiser tocar nestes sectores cada vez mais importantes do tecido social, então tem de tratá-los como adultos, respeitar as prerrogativas desses adultos e propor-lhe mais do que meras fábulas. O que implicaria, porém, que os membros da Igreja fossem também e na plenitude adultos e não gente presa à mitografia que preencheu a sua infância e o discurso de sublimação dos recalcamentos, ou não, da sua vida pós-púbere.
O grande problema, porém, encontra-se mesmo aí. Mais do que uma rejeição do cristianismo, o que acontece é a rejeição de um espírito de comunhão e de comunidade da fé. A consciência moderna trabalhada, durante séculos, pelo iluminismo emancipou-se e convive dificilmente com formas de vida onde essa consciência não é o último árbitro. É cada vez mais difícil para homens educados no espírito moderno admitir que, sobre a sua consciência, se erga a consciência do sacerdote como intérprete da palavra de Deus e orientador da vida do indivíduo. Aqui encontra-se o cerne das dificuldades do catolicismo no mundo ocidental, e Portugal não é excepção.
Este problema é reforçado pela própria natureza do cristianismo. É preciso perceber que se há individualismo ocidental, então este formou-se na base de um arquétipo: Jesus Cristo. É este modelo que está por detrás das concepções iluministas do indivíduo. Sem ele, teria sido impossível ao mundo ocidental abandonar as formas de vida baseadas na tradição comunitária e adoptar formas de existência fundadas na responsabilidade e nos direitos individuais. O crescente individualismo presente na vida ocidental não se insere numa cultura anti-cristã, mas na realização de uma possibilidade aberta pelo próprio cristianismo. Surge como uma consumação do Cristo evangélico.
A questão que o individualismo verdadeiramente coloca está ligada à fragmentação da consciência. Esta fragmentação da consciência permite a deriva que vai da consciência individual senhora de si, dos seus direitos e da sua responsabilidade, até à consciência errante, uma consciência que se perde nas múltiplas seduções que a vida moderna coloca. É o acréscimo da errância da consciência, o sentimento de que os indivíduos se encontram perdidos nesta vida, que poderá fornecer a ilusão subjacente às palavras de Bento XVI. No fundo, pensa-se que novas formas de comunhão, novas formas de catecumenato (e elas estão aí, algumas de fazer arrepiar os cabelos), uma atenção maior e mais sólida à formação religiosa das novas gerações, poderão ser solução para o decréscimo da prática religiosa. Tenho dúvidas sobre a solução. É possível que no âmbito de um certo cristianismo popular as coisas ainda se possam passar assim, mas esse cristianismo popular está em transformação. O mundo rural acabou e a vida nos subúrbios das grandes cidades é outra coisa.
Com o crescimento exponencial da formação académica, por precária que esta seja, e o grau de emancipação da consciência individual que isso representa, as soluções comunitárias mostrar-se-ão sempre impotentes para chegar aos indivíduos. A Igreja Católica está confrontada com um problema que talvez nem consiga enunciar: como falar para indivíduos enquanto indivíduos, respeitando a sua individualidade, a liberdade da sua consciência, a responsabilidade com que podem assumir os seus actos? Durante 20 séculos a Igreja Católica espalhou aos quatro ventos que todos eram filhos de Deus e iguais perante o Pai. Ora, quando os indivíduos tomam consciência desta sua identidade já não podem suportar directores espirituais, tutores da consciência, juízes dos seus comportamentos éticos e das suas opções existenciais, entre elas a forma como gerem a sexualidade (uma fixação da Igreja, ao contrário do Cristo evangélico).
Para estes indivíduos aquilo que o «catecumenato» e a comunhão podem oferecer é risível. Há muito que eles ultrapassaram essas formas primitivas de consciência. Se a Igreja Católica quer tocar as consciências esclarecidas (no sentido da Aufklärung), então terá de abandonar o paternalismo e formas mistificadas de fraternidade. O diálogo a fazer é entre Razão e Fé, entre a conduta racional na vida social e individual e a experiência espiritual supra-racional. Retomar, ainda que de forma reconstruída e envolta em novas roupagens, formas comunitárias que a experiência da consciência já rejeitou é uma ilusão.
A actual crise da práxis religiosa pede pelo menos dois tipos de aproximação. Ao nível popular, a religião ainda é percebida como forma de consolo para os desvarios da vida. Aqui é compreensível a solução papal. Mas as nossas sociedades são constituídas já por amplos sectores de indivíduos, donos de si, senhores da sua consciência, segregados dos espaços comunitários tradicionais. Para estes, as formas tradicionais de consolo são sentidas como experiências infantis. Se o catolicismo quiser tocar nestes sectores cada vez mais importantes do tecido social, então tem de tratá-los como adultos, respeitar as prerrogativas desses adultos e propor-lhe mais do que meras fábulas. O que implicaria, porém, que os membros da Igreja fossem também e na plenitude adultos e não gente presa à mitografia que preencheu a sua infância e o discurso de sublimação dos recalcamentos, ou não, da sua vida pós-púbere.
Sem comentários:
Enviar um comentário