Falácias educacionais – 4. O novo papel do professor
Um dos aspectos mais destacados no processo que está a destruir a escola pública ocidental prende-se com o chamado “novo papel dos professores”. Este novo papel é uma criação dos políticos e dos ideólogos provenientes de áreas como a psicologia ou as ditas ciências da educação. Para ilustrar o carácter falacioso deste pensamento, mobilizo algumas ideias retiradas da crónica do psiquiatra Daniel Sampaio, no Público (no suplemento Pública) de hoje.
A prosa de Sampaio é muito interessante pela forma como apresenta aquilo que são escolhas e decisões políticas como se fossem uma inevitabilidade da natureza, como se tudo decorresse de leis gerais que a ciência conhece, mas a que o homem terá de, como à lei da gravidade, se submeter. Há nesta prosa, como no discurso ideológico que a sustenta no sistema de ensino, uma evidente falsificação da realidade.
Diz Sampaio: «as mudanças sociais tendem a atribuir à escola um novo conjunto de funções». Esta asserção é falsa. Não são as mudanças sociais que tendem atribuir o quer que seja. As mudanças sociais ocorrem e mais nada, não têm vontade, nem capacidade para tomar decisões. O que se passa é que os políticos, certos grupos de psicólogos, “cientistas da educação”, etc., decidiram atribuir à escola um novo conjunto de funções e subverteram o papel da escola, que desde a Academia de Platão é o mesmo: instruir.
Diz Sampaio: «além de instruir, os professores são chamados a apoiar, socializar ou encaminhar para outros contextos alunos com histórias de vida, expectativas e capacidades muito diferentes». A construção da frase leva a pensar que é agora, e só agora, que os professores além de instruir, apoiam, socializam e encaminham alunos para outros contextos. Mais uma vez a ideia representa uma falsificação da realidade. Os professores sempre fizeram isso, uns melhor outros pior, no âmbito da sua missão de instruir. O que se passa é que, perante a constatação da falência de muitas famílias, o Estado e os ideólogos da educação pretendem, na prática, que o professor substitua a família e as estruturas sociais de apoio aos jovens, caso a família seja incapaz, e, em vez de instruir, faça aquilo que os outros não podem ou não querem. A realidade é que os agentes políticos nem querem responsabilizar as famílias pela educação das suas crianças, nem querem assumir esse papel de substituição pela criação de estruturas de enquadramento adequadas, nem querem apoiar as organizações da sociedade civil que as façam. A escola que o Professor Sampaio e a classe política projectam já não é uma escola, mas cada vez mais uma enorme instituição que combina as valências do hospital psiquiátrico, com terapias individuais e de grupo, o reformatório e a colónia balnear. Sublinhe-se, porém e ao contrário do que diz Daniel Sampaio, não são as mudanças sociais que estão a impor este tipo de instituição «escolar», mas homens e correntes de pensamento educacional concretos. Têm nomes. E esta deriva não é uma inevitabilidade da natureza, é uma opção deliberada.
Diz Sampaio: «Os próprios professores perderam o papel cultural de que outrora eram exemplo.» Quais os motivos? 1. «Ao não produzirem o conhecimento que são chamados a reproduzir»; 2. «e ao confrontarem-se com novas fontes de informação alternativas à escola (televisão, Internet, culturas juvenis)». Mais uma vez há falsificação da realidade. Os professores do ensino básico e secundário nunca foram produtores de conhecimento e sempre reproduziram conhecimento que outros produziam e ainda outros seleccionavam. Não é por isso que os professores perdem papel cultural. Também é falsa ideia de que só agora, com a televisão, Internet, culturas juvenis, existem fontes de informação alternativas à escola. Sempre houve. Mas o mais importante está noutro lado.
Se o professor Daniel Sampaio, apesar de ser professor, soubesse alguma coisa do que faz um professor nos ensinos básico e secundário não escreveria este pedaço de prosa, súmula preciosa de tudo o que há de ocioso na ideologia que domina actualmente a educação: «torna-se imperioso modificar o seu papel tradicional e abrir caminho a uma nova maneira de estar, muito mais coordenador de pesquisa e gestor de grupo de trabalho do que transmissor expositivo de manual para aluno médio». Para aprender a ler, escrever e contar, para apreender os conceitos estruturais das várias áreas disciplinares, para aprender a utilizar as capacidades racionais que a natureza pôs ao dispor do aluno, este não precisa de um “coordenador de pesquisa” nem de um “gestor de grupo de trabalho” (repare-se bem na concepção burocrática que emana do próprio discurso de Daniel Sampaio), mas de professores, que não sendo criadores de saber (como poderia, por exemplo, um professor do 1.º ciclo criar saberes para os seus alunos? Inventava um novo alfabeto? Propunha novas geometrias ou criava uma gramática alternativa?) tenham uma sólida formação científica, sejam dotados de capacidade de comunicação e de compreensão do outro. O professor terá de ser um mestre nas áreas que ensina, terá de estar tão à vontade nelas como o peixe na água, pois só assim será capaz de ter alguma paixão pelo seu trabalho e só assim a conseguirá transmitir aos seus alunos.
Mas quais as consequências sociais das proposta de Sampaio e do Ministério da Educação? São muito simples: os alunos da escola pública (gente remediada e pobre ou do interior do país) não têm direito a terem professores, mas “coordenadores” e “gestores”, não têm direito a aprender, não têm direito a tentar chegar às melhores universidades e aos melhores cargos na sociedade; os alunos de «boas» famílias das grandes cidades, esses pobres desgraçados, não têm, por seu turno, o direito a terem à sua frente “coordenadores” e “gestores” de aprendizagem e têm de suportar horríveis professores que ensinam e os obrigam a aprender de forma tradicional e, sendo assim, estão condenados, coitados, a reproduzir a situação da sua família: ir para as melhores universidades, ocupar os melhores cargos na sociedade, ter acesso ao reconhecimento político, social e económico devido aos cargos que desempenharão.
Veja-se como este discurso sobre a educação se constrói sobre premissas falsas, como todo ele é falacioso, como não resiste a qualquer análise que se faça, por mais simples que seja. E, no entanto, ele sai vitorioso, é extremamente agressivo. Mas isso não será o sinal da existência de grandes interesses por detrás dele?
O cinismo das elites sociais portuguesas, mesmo as de esquerda, é arrepiante.
A prosa de Sampaio é muito interessante pela forma como apresenta aquilo que são escolhas e decisões políticas como se fossem uma inevitabilidade da natureza, como se tudo decorresse de leis gerais que a ciência conhece, mas a que o homem terá de, como à lei da gravidade, se submeter. Há nesta prosa, como no discurso ideológico que a sustenta no sistema de ensino, uma evidente falsificação da realidade.
Diz Sampaio: «as mudanças sociais tendem a atribuir à escola um novo conjunto de funções». Esta asserção é falsa. Não são as mudanças sociais que tendem atribuir o quer que seja. As mudanças sociais ocorrem e mais nada, não têm vontade, nem capacidade para tomar decisões. O que se passa é que os políticos, certos grupos de psicólogos, “cientistas da educação”, etc., decidiram atribuir à escola um novo conjunto de funções e subverteram o papel da escola, que desde a Academia de Platão é o mesmo: instruir.
Diz Sampaio: «além de instruir, os professores são chamados a apoiar, socializar ou encaminhar para outros contextos alunos com histórias de vida, expectativas e capacidades muito diferentes». A construção da frase leva a pensar que é agora, e só agora, que os professores além de instruir, apoiam, socializam e encaminham alunos para outros contextos. Mais uma vez a ideia representa uma falsificação da realidade. Os professores sempre fizeram isso, uns melhor outros pior, no âmbito da sua missão de instruir. O que se passa é que, perante a constatação da falência de muitas famílias, o Estado e os ideólogos da educação pretendem, na prática, que o professor substitua a família e as estruturas sociais de apoio aos jovens, caso a família seja incapaz, e, em vez de instruir, faça aquilo que os outros não podem ou não querem. A realidade é que os agentes políticos nem querem responsabilizar as famílias pela educação das suas crianças, nem querem assumir esse papel de substituição pela criação de estruturas de enquadramento adequadas, nem querem apoiar as organizações da sociedade civil que as façam. A escola que o Professor Sampaio e a classe política projectam já não é uma escola, mas cada vez mais uma enorme instituição que combina as valências do hospital psiquiátrico, com terapias individuais e de grupo, o reformatório e a colónia balnear. Sublinhe-se, porém e ao contrário do que diz Daniel Sampaio, não são as mudanças sociais que estão a impor este tipo de instituição «escolar», mas homens e correntes de pensamento educacional concretos. Têm nomes. E esta deriva não é uma inevitabilidade da natureza, é uma opção deliberada.
Diz Sampaio: «Os próprios professores perderam o papel cultural de que outrora eram exemplo.» Quais os motivos? 1. «Ao não produzirem o conhecimento que são chamados a reproduzir»; 2. «e ao confrontarem-se com novas fontes de informação alternativas à escola (televisão, Internet, culturas juvenis)». Mais uma vez há falsificação da realidade. Os professores do ensino básico e secundário nunca foram produtores de conhecimento e sempre reproduziram conhecimento que outros produziam e ainda outros seleccionavam. Não é por isso que os professores perdem papel cultural. Também é falsa ideia de que só agora, com a televisão, Internet, culturas juvenis, existem fontes de informação alternativas à escola. Sempre houve. Mas o mais importante está noutro lado.
Se o professor Daniel Sampaio, apesar de ser professor, soubesse alguma coisa do que faz um professor nos ensinos básico e secundário não escreveria este pedaço de prosa, súmula preciosa de tudo o que há de ocioso na ideologia que domina actualmente a educação: «torna-se imperioso modificar o seu papel tradicional e abrir caminho a uma nova maneira de estar, muito mais coordenador de pesquisa e gestor de grupo de trabalho do que transmissor expositivo de manual para aluno médio». Para aprender a ler, escrever e contar, para apreender os conceitos estruturais das várias áreas disciplinares, para aprender a utilizar as capacidades racionais que a natureza pôs ao dispor do aluno, este não precisa de um “coordenador de pesquisa” nem de um “gestor de grupo de trabalho” (repare-se bem na concepção burocrática que emana do próprio discurso de Daniel Sampaio), mas de professores, que não sendo criadores de saber (como poderia, por exemplo, um professor do 1.º ciclo criar saberes para os seus alunos? Inventava um novo alfabeto? Propunha novas geometrias ou criava uma gramática alternativa?) tenham uma sólida formação científica, sejam dotados de capacidade de comunicação e de compreensão do outro. O professor terá de ser um mestre nas áreas que ensina, terá de estar tão à vontade nelas como o peixe na água, pois só assim será capaz de ter alguma paixão pelo seu trabalho e só assim a conseguirá transmitir aos seus alunos.
Mas quais as consequências sociais das proposta de Sampaio e do Ministério da Educação? São muito simples: os alunos da escola pública (gente remediada e pobre ou do interior do país) não têm direito a terem professores, mas “coordenadores” e “gestores”, não têm direito a aprender, não têm direito a tentar chegar às melhores universidades e aos melhores cargos na sociedade; os alunos de «boas» famílias das grandes cidades, esses pobres desgraçados, não têm, por seu turno, o direito a terem à sua frente “coordenadores” e “gestores” de aprendizagem e têm de suportar horríveis professores que ensinam e os obrigam a aprender de forma tradicional e, sendo assim, estão condenados, coitados, a reproduzir a situação da sua família: ir para as melhores universidades, ocupar os melhores cargos na sociedade, ter acesso ao reconhecimento político, social e económico devido aos cargos que desempenharão.
Veja-se como este discurso sobre a educação se constrói sobre premissas falsas, como todo ele é falacioso, como não resiste a qualquer análise que se faça, por mais simples que seja. E, no entanto, ele sai vitorioso, é extremamente agressivo. Mas isso não será o sinal da existência de grandes interesses por detrás dele?
O cinismo das elites sociais portuguesas, mesmo as de esquerda, é arrepiante.
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