09/01/10

O professor como autoridade pública


Até onde cresceram as nossas ilusões para que se chegasse aqui? A comunidade autónoma de Madrid, entidade de carácter regional, no sequência do que já aconteceu na comunidade valenciana, concedeu aos professores o estatuto de autoridade pública. Quais são as consequências? Uma primeira consequência é a de igualar os professores, em caso de agressão contra eles, aos juízes, forças de segurança, médicos, comandantes da marinha mercante e pilotos de aviação. Uma agressão a pessoas pertencentes a estes grupos é legalmente um atentado contra a autoridade. Uma segunda consequência, vem do facto de a autoridade pública ter a presunção de verdade, o que significa que a sua palavra tem, num caso de conflito, mais valor que a de um outro cidadão. Estas medidas têm sido tomadas em comunidades dirigidas pela direita. O Congresso espanhol, onde os socialistas são o maior partido, chumbou uma proposta do PP para legislar nacionalmente no mesmo sentido. Mas a chumbo não tem a ver com o conteúdo da lei, mas com o método utilizado pelo PP para a propor, enquanto ainda decorriam negociações com os sindicatos espanhóis de professores.

Que ilusões alimentámos sobre as crianças e os jovens? Que ilusões alimentámos sobre nós mesmos, para que, em desespero de causa, se comece a ter necessidade de afirmar os professores como pertencendendo às forças que asseguram a ordem no Estado? Um professor, aliás como um médico, não é um juiz, não é um militar, não é um polícia. Um professor tem um papel na soberania do Estado, mas não na repressão e na violência que assegura a ordem nesse Estado.

O que se passa, porém, é que a demagogia vinda da esquerda herdeira de uma leitura enviesada de Rousseau e do Maio de 68 (mas não só, sublinhe-se) tentou destruir a imagem do professor, retirou-lhe a frágil autoridade que era a sua e submeteu-o aos vexames dos alunos e da população. As políticas da Educação, em muitos países ocidentais, durante muitos anos, de forma mais clara ou mais encapotada, trataram de sublinhar e acentuar a desautorização dos docentes. Agora começa a reinar o desespero. Que fazer às novas gerações que ninguém controla? Que fazer com os pais que, de forma cada vez mais acintosa, acham que os professores são uma espécie de valetes de quarto para cuidar do resultado das suas flutuações hormonais (isto é, os filhos), para os quais muitos não têm apetite ou vontade de educar. Os espanhóis começam a dar uma resposta: os professores são autoridade pública, e têm presunção de verdade.

Mais tarde ou mais cedo, isto também chegará a Portugal. Mas isto é apenas um remendo. Os professores têm de facto, embora não reconhecido politicamente, um papel essencial na soberania dos Estados. São eles que, nas sociedades modernas, pelo trabalho sobre o currículo nacional, criam as condições para que todos se possam entendender e querer viver na mesma sociedade. Os professores são os criadores das condições de possibilidade do consenso em que assenta o conflito e o jogo democráticos. Isso, porém, não quer dizer que eles sejam uma autoridade pública.

A autoridade do professor assenta apenas na autoridade do seu saber. Mais nada. As sociedade ocidentais, sociedades que vivem do saber, deixaram crescer dentro delas próprias, como dentro do ovo da serpente, uma cultura juvenil que despreza o saber. Essa cultura cresceu, invadiu as escolas e as famílias, contaminou a sociedade. O saber é, socialmente, destituído de valor. O problema reside aqui. Enquanto professor, não quero ser polícia, nem juiz, nem agente da ordem pública. Quero ser visto como alguém que contribui para o desenvolvimento cívico da sua comunidade (alguém que ajuda a construir o desejo de soberania) e que, devido ao saber que possui (saber esse que a comunidade determinou como relevante), contribui para preparar as novas gerações que assegurarão o futuro dessa comunidade.

Os professores devem ser protegidos porque representam e transmitem aquilo que a comunidade determinou como sendo os melhores valores cognitivos e cívicos. Não se trata de voltar a ter medo dos professores. Trata-se de uma coisa bem mais simples. Respeitar os professores, porque se respeita a sua função social e o saber que eles transportam paras as novas gerações. Como as coisas estão, porém, isto talvez só seja possível se o medo, pois é disso que se trata na legislação de Madrid, voltar a ter um papel na vida escolar. Isso, porém, não nos deve alegrar e, muito menos, orgulhar. Pelo contrário, é o sintoma de que as últimas gerações falharam escandalosamente na educação das mais novas. Tenhamos vergonha.

1 comentário:

José Trincão Marques disse...

Nunca pensei que um simples e ligeiro comentário a um post deste blogue, do meu amigo Jorge Carreira Maia, que fazia me fazia referência directa, provocasse tanta irritação.

Tive o cuidado de dizer que nada sabia de política de educação. Apenas emiti opinião acerca da aparente contradição entre a crítica à democratização das escolas e a preferência do anterior modelo escolar. Ninguém aqui desfez essa contradição.

É assunto acerca do qual pouco sei, e neste momento nem me interessa saber muito.

O que me surpreendeu foi a crispação e agressividade de alguns comentadores, aparentemente professores.

Sem querer entrar na discussão das políticas de educação (fico só a assistir para ver se alguém se entende), quero apenas lembrar que o nosso Código Penal já inclui há vários anos (há mais de dez) os professores entre as várias profissões consideradas entidades públicas, contra quem a prática de um crime no exercício das suas funções é considerado circunstância agravante (artigo 132º, nº2, alínea j) do Código Penal, aplicável directa e subsidiariamente).

Não me parece que o assunto da crise da educação se resolva só por aqui.

Caro Jorge, desculpa estas continuadas visitas. Vou ausentar-me por uns tempos (ou pelo menos, passar por aqui sem fazer barulho).