06/01/10

O poder de proximidade


A atribuição ou a confirmação de forais por parte dos soberanos correspondeu também ao seu projecto de fazer difundir a autoridade da Coroa e de firmar alianças com estas comunidades de homens livres, de modo a contrabalançar o peso dos poderes senhoriais que se faziam sentir local e regionalmente. Por sua vez, tal aliança colocou os concelhos sob a protecção régia, procurando aqueles defender-se das pressões dos senhores locais. Os habitantes dos concelhos preferiam pagar ao rei os tributos fixados por escrito no foral, quer pela posse da terra, quer pela circulação e transacção de produtos, a estarem sujeitos à arbitrariedade e aos abusos praticados pelos senhores. [Bernardo Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 73]
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Aqui podemos surpreender não apenas um reforço do que se escreveu aqui ontem sobre a questão da regionalização, mas uma das características essenciais da relação dos portugueses com o poder. Por que razão somos tendencialmente favoráveis ao centralismo? Porque tememos o arbitrário do poder que está próximo. Os portugueses desconfiam do poder, desconfiam, certamente com razão, da sua arbitrariedade. Ora o poder central é longínquo e tem um carácter abstracto e universal. Ele é preferível aos poderes mais próximos, aparentemente mais fracos, mas com uma maior capacidade de interferir na vida concreta das pessoas.

Isto revela uma outra coisa. A natureza do poder de proximidade em Portugal, ainda hoje, é dada pela capacidade de decisão arbitrária. A ocupação de determinados lugares na estruturas municipais e nas instituições locais dependentes do Estado, como escolas, hospitais, etc., não significa uma representação local de um poder abstracto e universal, que trata todos por igual, mas a possibilidade dos indivíduos e grupos locais exercerem o seu arbítrio. Não é isto, obviamente, que está consignado na lei, mas é isto que é sentido por todos.

O exemplo mais recente é o da contestação, mais ou menos surda (pois o medo está instalado), dos professores relativamente aos directores de escola. Enquanto as escolas eram dirigidas por presidentes de conselhos executivos, a arbitrariedade destes estava limitada, pois não deixavam de ser professores. A solução encontrada pelo governo anterior foi a pior possível para os professores. Não apenas lhes impôs um director, mas um director dependente dos poderes fácticos locais. Seria menos doloroso para os docentes que o director fosse estranho à comunidade local e nomeado pelo poder central. Pelo menos havia, uma aparência de universalidade e abstracção.

O triunfo nas escolas portugueses do arbitrário local tem uma consequência absolutamente devastadora para o futuro do país. As escolas, já com fraca capacidade de debate interno, são hoje em dia túmulos relativamente ao debate pedagógico e educativo. Desapareceram as condições para a divergência e para pensar contra, e para fazer de outra maneira, a não ser aquela que os poderes instalados conseguem idealizar e realizar. Uma segunda consequência, de não menor impacto no futuro, é a que deriva destes poderes existentes nas escolas, a chamada gestão intermédia ser entregues a pessoas com um pensamento extraordinariamente frágil sobre a educação e o sistema educativo, mas que, pelo princípio de autoridade, fazem calar os elementos esclarecidos, claramente minoritários, que possam existir, e que teriam capacidade crítica. As escolas ficaram sujeitas ao menos denominador comum.

A referência à escola é apenas exemplar, pois é a instituição que melhor conhecemos. Isto passar-se-á nas outras instituições. A proximidade do poder, desde a origem da nacionalidade, é sentida não como a presença do universal abstracto, mas do arbitrário concreto. Há uma profunda linha de continuidade na nossa tradição, embora na Idade Média o que estava em causa fosse a liberdade das comunidades locais perante os senhores e, hoje em dia, seja a dos indivíduos perante os poderes locais ancorados em outros indivíduos.

Em Portugal, não há um amor ao anarquismo, mas fundamentalmente um medo da arbitrariedade do outro, quando esse outro é investido por qualquer tipo de poder. Isto revela uma longa tradição de uma determinada forma de exercício de poder.

1 comentário:

José Trincão Marques disse...

Portugal foi dos poucos países europeus que não teve feudalismo «puro» (por razões relacionadas com a nossa pequena dimensão e com a correlação de forças de vários interesses de classe).
Essa circunstância permitiu o aparecimento precoce do centralismo real.
É verdade que a arbitrariedade política e judicial foi limitada com o enfraquecimento da nobreza feudal.
Foi o centralismo real, conjugado com a nossa posição geográfica, que proporcionou a epopeia dos descobrimentos. No século XIV os pricipais Estados europeus ainda se encontravam espartilhados.

Não se podem comparar (por não serem comparáveis) as circunstâncias sócio-políticas da Idade-Média portuguesa, com as que se vivem actualmente, nem equiparar as Regiões Administrativas aos feudos senhoriais.
Em primeiro lugar, Portugal está integrado na União Europeia, não tendo os poderes soberanos que tinha há vários séculos atrás (pense-se na cunhagem de moeda, no poder legislativo, no poder judicial, no poder executivo, e agora mais recentemente até na política externa). Se existe algum «centralismo estadual», ele está hoje em Bruxelas e nâo em Lisboa.
Por outro lado, no Portugal medieval, o poder Real garantia alguma legalidade, mais direitos e menos discricionaridade, ou arbitrariedade, em comparação com o poder dos senhores feudais.
No Portugal democrático de hoje, tanto o Estado central, como as instituições estaduais descentralizadas (onde se incluem os municípios) estão sujeitas ao princípio da legalidade, com vários mecanismos de fiscalização recíprocos.
A Regionalização Administrativa prevista na Constituição tem a vantagem de descentralizar poderes para as regiões que já existem, mas com poderes desconcentrados.
Explico melhor. Hoje já existem em Portugal cinco Regiões Administrativas, com poder político efectivo, que decidem sobre os mais variados assuntos relacionados com a vida de todos nós (licenciamentos, planeamento e ordenamento do território, etc.). Porém os titulares desses poderes não foram eleitos pelo povo, mas sim nomeados pelo Governo.
As Regiões Administrativas permitirão que se possam eleger democraticamente os seus representantes. Com todas as vantagens daí inerentes, nomeadamente de escolher uns e excluir outros.
A democracia é o pior dos sistemas políticos com a excepção de todos os outros. Seja a que nível de poder for.

Post-Scriptum: Valerá a pena aprofundar a democracia nas escolas?