23/01/10

Poderes concorrentes


Face a esta tendência de fundo, repetidamente renovada e reavivada, face, também, à crueza dos factos objectivos, fica, pois, em causa aquela idílica imagem de uma monarquia orgânica e corporativa, que se propunha e conseguia enquadrar harmoniosamente todos os corpos sociais do reino e, sobretudo, uma aristocracia sua pretensa aliada natural, por tantas vezes ser sangue do seu sangue. Esta verdadeira lenda, criada e difundida por uma certa historiografia tradicionalista, não resiste ao confronto com a documentação coeva e, muito menos, a uma interpretação crítica e não preconceituosa dos factos. E destes, vistos numa perspectiva que vá para além do caso isolado, o que ressalta é um longo e persistente fenómeno de tensão, de conflitualidade e de choque tendencial entre poderes concorrentes. [Bernardo Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 168]

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Esta análise de Vasconcelos e Sousa refere-se a um período que vai desde a fundação do reino até Afonso V. Aquilo que merece ser sublinhado é, em primeiro lugar, desmisticação das narrativas tradicionais que davam uma visão celestial da monarquia portuguesa, mostrando-a como orgânica e corporativa, integradora harmoniosa das diferenças. Essa narrativa ditirâmbica alimentou, por exemplo, a democracia orgânica do prof. Salazar. É curioso que, ainda que sem consciência disso, alimenta também a visão idílica da futura coexistência, num Portugal hipoteticamente regionalizado entre o poder central e as elites políticas regionais. O que a história mostra, porém, parece ser outra coisa, "um longo e persistente fenómeno de tensão, de conflitualidade e de choque tendencial entre poderes concorrentes".

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