03/01/10

O direito à blasfémia


Para aqueles que o Benfica é uma religião, esta montagem é uma blasfémia. Deveria ser proibida? Claro que não. Mas se se blasfemar contra uma religião, daquelas que fazem parte do património cultural da humanidade, deverá haver punição? Isso acontece, por exemplo, na Finlândia e vai passar a acontecer na Irlanda. Eu que não sou blasfemo, nem vejo um particular interesse na blasfémia, fico perplexo pelos caminhos que se estão a seguir. O direito a blasfemar deve ser garantido como uma das formas mais genuínas da liberdade de expressão. Por que razões? Por quatro razões.

1. Porque a blasfémia atinge apenas o núcleo das crenças de um conjunto de pessoas, mas não atinge a integridade dessas pessoas. Desrespeitar crenças não é desrespeitar pessoas. O acto de blasfemar apenas pode prejudicar, do ponto de vista da salvação eterna, o blasfemador e nunca as supostas vítimas da blasfémia. Desde que o blasfemador não tente interferir na liberdade de crer e na liberdade de praticar o culto da religião em que se acredita, nada justifica a intervenção do Estado para punir o acto de blasfémia.

2. Uma segunda razão prende-se com a intervenção estatal. Que autoridade e que critérios possui um Estado laico, ou outro qualquer, para determinar que um conjunto de crenças tem natureza religiosa e que merece, por isso, o respeito? Um Estado limita-se a aceitar a liberdade de praticar determinados cultos, mas não tem competência para determinar se eles merecem o respeito ou a derrisão de terceiros. Haverá maior blasfémia para um cristão do que negar a divindade de Jesus Cristo? Deverá, então, o Estado perseguir todos os judeus e muçulmanos que não a aceitam? Onde começa e onde acaba o acto blasfemo?

3. A blasfémia tem uma função terapêutica dentro da sociedade. As religiões são crenças no absoluto. O problema, contudo, é que essas crenças são tidas por seres relativos, os seres humanos. A fé pouco esclarecida e a ausência de um espírito crítico por parte do fiel, aliada a interesses pessoais mais ou menos obscuros, conduzem a que se dê uma valor absoluto àquilo que são apenas visões e perspectivas meramente subjectivas. A blasfémia choca o que há de humano nas religiões, mostra a irrisão das pretensões de um grupo de homens. Ao fazê-lo, relativiza as suas pretensões ao absoluto e torna uma dada Igreja (entenda-se por Igreja uma qualquer sociedade religiosa) menos agressiva, mais humilde e mais afável com a espécie humana.

4. Por fim, blasfemar é um exercício, do ponto de vista do divino, absolutamente inútil. Se Deus não existir, não poderá ser insultado pelo blasfemador. Se Deus existir, como poderá a palavra de um homem atingir a divindade? Mais, a blasfémia muitas vezes não é mais do que o reconhecimento e a glorificação, ainda que por vias negativas, do divino (lembram-se de Paulo de Tarso?). Aqueles crentes que protestam contra os blasfemadores e exigem o seu castigo público estão mais preocupados consigo do que com Deus. Devem deixar a Deus a liberdade de castigar no além aquele que blasfema, se assim o entender, e preocuparem-se em respeitar a vida dos seres humanos e serem exemplares na sua relação com os outros.

Como já escrevi várias vezes, julgo ser útil e necessária a presença do Cristianismo no tecido social da Europa. Os valores por ele veiculados são estruturantes de uma civilização fundada na liberdade. A Europa necessita que as igrejas se voltem a encher e a prática da moral cristã, transmitida pelos evangelhos e pela tradição, ganhe preponderância. Temo que a Europa, enquanto lugar de liberdade e de razão, sem esses valores desapareça. No entanto, o pior que pode acontecer é voltar a uma espécie de autos-de-fé fundados na lei civil. A punição da blasfémia é uma ingerência inaceitável do poder civil na liberdade religiosa.

1 comentário:

José Ricardo Costa disse...

Jorge, só tens legitimidade para dizeres que na Europa as igrejas se deverão voltar a encher, se hoje à tarde eu te vir a entrar na igreja de Santiago, ou se te tivesse visto, hoje ao meio-dia, a sair da missa de S. Pedro ali ao Quinchoso. Acredita que isto não significa qualquer provocação rasteira da minha parte. Digo isto,porque o problema é mesmo este. Percebemos que, historicamente, o cristianismo pode ser a nossa salvação mas já não somos capazes de ser cristãos. Porque nós não acreditamos no que queremos mas no que somos capazes de acreditar. Imagina que te dizem: "Para salvar o mundo ocidental, devemos acreditar que 2+2=5". Ok, então agora acredita lá.
Pois esse é o problema. Tu não consegues acreditar em Deus, na Trindade, na divinidade de Jesus, no Sagrado Coração de Maria, nos milagres. Aprecias a coisa, mas nos filmes do Tarkovsky e do Carl Dreyer, na música do Messiaen e do Arvo Pärt, nas pinturas barrocas. Mas isso não te leva à igreja de Santiago logo à tarde. Lês o Evangelho, é verdade, os Salmos e os profetas. Mas lês sentado na cama como lês o Sebald, o Musil ou o Bernhard. Sãoa narrativas, histórias, morais, é certo, mas histórias. Mas não vais a correr para a igreja de Santiago porque gostaste muito de ler os Salmos sentado na cama.
Pois, é este o destino da Europa. Os netos, ao contrário dos avós, já não conseguem acreditar que 2+2=5. No mundo islâmico ainda acreditam. Mas não é por termos a consciência de eles acreditarem que vamos ser capazes de também acreditar. Como já disse, não acreditamos no que queremos. Como diria o António Vitorino: habituem-se!

Abraço,
JR