18/01/10

Eça de Queiroz - Não querem ideias...


Passei as pontes, que separam em Paris o Temporal do Espiritual, mergulhei no meu doce Bairro Latino, evoquei, deante de certos cafés, a memoria da minha Nini; e, como outr'ora, preguiçosamente, subi as escadas da Sorbonne. N'um amphitheatro, onde sentira um grosso susurro, um homem magro, com uma testa muito branca e larga, como talhada para alojar pensamentos altos e puros, ensinava, falando das instituições da Cidade Antiga. Mas, mal eu entrára, o seu dizer elegante e límpido foi suffocado por gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça bestial, que sahia da mocidade apinhada nos bancos, a mocidade das Escolas, Primavera sagrada, em que eu fôra flôr murcha. O Professor parou, espalhando em redor um olhar frio, e remexendo as suas notas. Quando o grosso do grunhido se moderou em susurro desconfiado, elle recomeçou com alta serenidade. Todas as suas ideias eram frias e substanciaes, expressas n'uma lingoa pura e forte; mas, immediatamente, rompe uma furiosa rajada de apitos, uivos, relinchos, cacarejos de gallo, por entre magras mãos, que se estendiam levantadas para estrangular as ideias. Ao meu lado um velho, encolhido na alta gola d'um macfrelane de xadrezes, contemplava o tumulto com melancolia, pingando endefluxado. Perguntei ao velho:

- Que querem elles? É embirração com o professor... é política?

O velho abanou a cabeça, espirrando:

- Não... É sempre assim, agora, em todos os cursos... Não querem ideias... Creio que queriam cançonetas. É o amor da porcaria e da troça. [Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras]

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A Cidade e as Serras é um livro póstumo de Eça de Queiroz, publicado em 1901. Esta aventura de Zé Fernandes na Sorbonne, ainda, por aqueles dias, um dos templos mais sagrados do saber, deve corresponder ao Zeitgeist do fim do século. Quando hoje nos queixamos dos nossos alunos, talvez nos falte esta perspectiva que a história, nem que venha através do romance, dá. Talvez Eça assinale um momento em que na Europa se opera uma cisão entre as novas gerações pertencentes às elites intelectuais e o saber. «É sempre assim, agora, em todos os cursos... Não querem ideias...» Com a democratização do ensino, democratizou-se a pateada e o não querer ideias. Ou talvez o problema seja eterno, um inultrapassável conflito entre o saber e as hormonas, nomeadamente as masculinas.

1 comentário:

José Ricardo Costa disse...

E, no século XIII, como seriam as tabernas de Paris apinhadas de estudantes? Pobre Teologia! O problema não está na boémia estudantil e num relativo desdém pelo estudo. Provavelmente, sempre foi assim e irá continuar a ser. E, vendo bem, dentro de certos limites, pode até ser saudável. A tragédia dá-se no momento em que o próprio estado e sociedade promovem institucionalmente esse desdém.
JR