Voltar as costas à Europa
Por iniciativa de Calisto III chegou mesmo a constituir-se uma armada que contou com barcos portugueses e que entrou em combate contra os turcos no Mediterrâneo Oriental. Mas, apercebendo-se de que a grande cruzada tardava em ser lançada, Afonso V começou em 1457 a inflectir a sua atenção para Marrocos, onde poderia combater os infiéis defendendo Ceuta, na posse dos portugueses desde 1415, e tornando-lhes novas praças. A morte de Calisto III, em 1458, fez com que também o papado arrefecesse os ímpetos cruzadísticos. A grande esquadra que deveria atacar Constantinopla jamais chegaria a ser formada e Afonso V reorientou o seu esforço de conquista para o Norte de África, no que terá contado com o apoio entusiástico dos sectores que sempre tinham preferido esta via para combater o Islão e nela procuravam obter bom proveito, como era o caso do infante D. Henrique, um dos apoiantes da viragem para Marrocos. [Bernardo Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 163]
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Voltemos à História de Portugal coordenada por Rui Ramos. A inflexão na política externa, digamos assim, de 1457, aqui assinalada, não marca apenas a abertura para aquilo a que se chama os Descobrimentos, marca uma característica essencial do desenvolvimento político de Portugal. Em 1453, os Turcos tomam Constantinopla, pondo fim ao chamado Império Romano do Oriente. O cisma do Oriente (1054), que dividiu a cristandade (Igreja Católica e Igreja Ortodoxa), criou as condições para uma fragilização progressiva das forças cristãs (também desgastadas pela aventura das Cruzadas, uma delas contra Constantinopla) e permitiu o domínio turco nos Balcãs. De certa maneira, a política europeia jogava-se no conflito com os turcos (estes, ainda em 1683, estiveram às portas de Viena). Ora, a opção de Afonso V foi a de virar as costas à Europa e voltar-se para África.
Um reino periférico e sem recursos materiais, sem possibilidades de expansão territorial no continente europeu, desinteressado do destino dessa Europa herdada do longínquo Império Romano, Portugal encontrou na expansão marítima a sua possibilidade de continuar a existir e o principal leitmotiv da sua política externa. Essa política durou de Afonso V até aos professores Salazar e Caetano, isto é, até 1974.
Com o fim do império colonial, na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal retorna, de certa maneira, a 1457 e aos problemas que a aventura marítima tinha ajudado a resolver e, ao mesmo tempo, a mascarar, nomeadamente ao problema da viabilidade do país reduzido à sua dimensão peninsular. A entrada para a CEE na década de oitenta, uma espécie de retorno tardio à Europa, veio adiar o problema. Mas a crise persistente do actual regime, nos campos económico e político, reacende a questão, e fá-lo de uma maneira aguda. Já não há colónias nem a União Europeia parece disposta a contemporizar connosco. Acabou-se o tempo das conquistas e das descobertas marítimas. O que vamos fazer connosco e com o país que recebemos? Olhando cruamente, hoje as nossas possibilidades de persistência parecem ser bem menores que em 1457.
O problema da incapacidade dos portugueses de inscreverem a sua vontade no real, problema levantado pelo filósofo José Gil, deve ser pensado neste contexto histórico. Qual o real que nos cabe?
1 comentário:
O real que vamos tendo.
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