26/01/10

2. Arquétipos femininos e tragédias pessoais


Esta segunda nota de leitura sobre A Cidade e as Serras liga-se à imagem do feminino. De certa maneira, as personagens femininas da obra são pouco densas e a sua construção obedece à elaboração de estereótipos, cuja finalidade parece ser a de fornecer uma imagem arquetípica da mulher que se deve ter em consideração quando chegar a hora de formar família.

Jacinto não abandona, ao sair de Paris, apenas a civilização do saber e da técnica. Abandona também a vida social de uma certa alta sociedade e os seus jogos amorosos, onde brilham duquesas e cocottes, não se distinguindo umas das outras. A mulher, que Jacinto vai encontrar em Tormes, está longe deste jogo de sedução, seja esta motivada pela necessidade, seja pelo mero prazer e exercício de poder de casta. Joaninha, uma reminiscência de Garrett, acaba por ser, à imagem da sua, e também de Zé Fernandes, tia Vicência, a súmula das virtudes femininas que dão ânimo ao homem gasto pela experiência mundana. Joaninha é pura, fadada para a maternidade, uma dona de casa, cujos traços eróticos são, fora do segredo do lar, não reveláveis.

Esta deserotização da descrição de Joaninha não deve ser relacionada apenas com a mulher mundana da grande cidade. Ela aparece aqui em oposição a esse tipo de mulheres, mas nessa sua oposição ela representa uma forma de relacionamento muito específica com o masculino. Ela é a salvação para o homem português experiente e cansado dos jogos eróticos da vida em sociedade. Muitas vezes é-se tentado a ver este tipo de estereótipos, os quais chegaram até hoje, como produto do Estado Novo e da coligação moral entre o salazarismo e a Igreja Católica. O que se constata, porém, é que a ideologia do Estado Novo apenas reflecte e conserva modelos mais antigos, veiculados inclusive por pessoas tão insuspeitas como Eça de Queirós.

Esta imagem fictícia da virtuosa mulher portuguesa não deixa de ser o produto de um eros masculino temeroso perante o saber erótico da mulher e do poder que isso pode representar, como as mulheres de Agustina Bessa-Luís – mulheres da mesma proveniência geográfica e social – não deixam nunca de mostrar. São estes arquétipos do masculino e do feminino, presentes em A Cidade e as Serras, que acabam por gerar não apenas muitos dos equívocos que se estabelecem nas relações entre mulheres e homens, como criam as condições psicológicas de muitas tragédias pessoais.

1 comentário:

maria correia disse...

...Bem longe da imagem forte de Maria Eduarda (ou até da Gouvarinho)e da trama tremenda que Carlos da Maia viverá em Os Maias.