23/11/07

A inveja e o Dr. José Miguel Júdice

Segundo consta, o Tribunal de Contas considerou milionários os vencimentos dos gestores de empresas públicas dos Açores, vencimentos esses que não chegam aos 5000 euros mensais. Na realidade, uma sovinice da Região Autónoma. As considerações do Tribunal deram origem a uma notícia no Diário de Notícias e a um comentário de José Miguel Júdice no Público, de hoje. O Dr. Júdice não se coibiu de referir a proverbial inveja portuguesa, no naco de prosa que se transcreve: «A minha revolta vai para uma cultura insuportavelmente demagógica, irrealista, arcaica e absurda, que caracteriza com profundidade a alma portuguesa e que, no fundo, tem na inveja a sua origem genética.» Este comentário surge como reacção à consideração pateta daqueles honorários como milionários. Não hesita mesmo em comparar a situação nacional ao igualitarismo totalitário da China de Mao.

De facto, tudo uma pelintrice e um mundo de invejosos e eu sinto um enorme enlevo com a revolta do comentador com a nossa cultura demagógica, irrealista, arcaica e absurda, cuja origem genética está na inveja. Seguindo a lição do Professor Gil, o ilustre causídico, como se diria de forma arcaica, ergue a sua voz contra a inveja nacional, mas esquece-se de esclarecer se a inveja portuguesa é genética, isto é, está inscrita nos nossos genes ou se, em alternativa, foi a própria sociedade que gerou uma cultura de inveja.

Esclarecer este pormenor não é despiciendo. Porque se a inveja faz parte do ADN luso, então não há nada a fazer, nem vale a pena bramar contra ela, nem aqueles que bramam, Dr. Júdice incluído, são, por isso, menos invejosos que os outros. Neste caso, o Dr. Júdice deveria estar calado, pois não teria autoridade, nem, tão pouco, valeria a pena estar a perder tempo e latim a combater ideologicamente um defeito genético. Deveria, pelo contrário, investir na descodificação do genoma do homo lusus, digamos assim, para o tratar da avaria genética.

Mas se o caso da inveja nacional não for genético, mas adquirido, o problema então será outro. Em vez de bramar contra essa arcaica e demagógica inveja, o nobre cavaleiro deveria perguntar: por que razão os portugueses são, ou se tornaram, invejosos? Eu sei, até o professor Gil se esqueceu da questão. Mas a questão não deixa de ser pertinente. Não assentará a inveja nacional num sentimento de impotência perante injustiças arcaicas e absurdas? Não terão sido a distribuição dos bens sociais e do reconhecimento entre portugueses, desde sempre, injustos? A inveja não será o sintoma tenebroso de uma prática social não menos tenebrosa, onde uns poucos acabam por se apropriar do contributo de muitos?

Acusar os portugueses de invejosos e justificar essa característica num qualquer desejo igualitário é uma forma de distorcer o problema. Não foram longos séculos de submissão dos fracos aos fortes, de uma impiedosa distribuição dos bens, de uma prática sistemática de protecção de alguns e desprotecção de muitos, que gerou a inveja, gerou a inveja mais reles e rasteira? A inveja, contrariamente ao que o Dr. Júdice parece pensar, não é uma característica lusitana pelo facto de sermos lusitanos. A inveja é o sintoma aparente de uma história prolongada de injustiças sociais, é a dor que revela o cancro. É feia esteticamente? É. É dolorosa? É. Mas o cancro que a gerou é muito mais feio, perigoso e doloroso.

2 comentários:

jlf disse...

(Creio que fugiu o meu apontamento... Ou estarei a repetir-me? Dizia eu:)

Então não é que tem razão?
O comentador, claro.
Do blogue - qual havia de ser?

world_wide_broadcast disse...

penso que todos os elementos, existentes no contemporâneo da típica cultura portuguesa são frutos de décadas de ausencia de higiéne comportamental, pois infelizmente continuamos a ser um país de joelhos perante o futebol, apenas queremos continuar a ouvir fado (atençao que gosto do mesmo mas não acho saudável semelhante melancolia que o espirito de tamanho género musical imprime á nossa cultura, sendo porém inevitável pois fado e cultura portuguesa estão intrinssecamente ligados). Como se não fosse suficiente, penso que a cultura de gangs trazida pela américa através de todos os meios de comunicação social, adicionada á tipica estrutura portuguesa de absorçao cultural externa (em que parece que a maioria do povo português só absorve hábitos que lhe garantam notoriedade imediata e um estilo de vida a tender unica e exclusivamente para a cultura do ócio ) veio catapultar algumas reacções em cadeia por parte daqueles que se sentem social, economica e psicológicamente segregacionados.... e no caso de semelhantes individuos, primeiro lamentam-se do que não têm, depois invejam o que os outros têm e a seguir cometem crimes (de toda e qualquer natureza) para tentarem obter notoriedade e lucro da forma mais fácil (como acima referido por mim). Portanto penso que o melhor remédio é os poucos que ainda não estão infectados por semelhante virús comportamental, mantermo-nos activos, e investir de forma continua em nós e naqueles que estão connosco, para conseguirmos escapar á falta de inercia positivista que este país atravessa.