02/02/10

Uma outra visão da cultura gaseificada

Christophe de Dejours

Para nós, clínicos, o que mudou [na organização do trabalho] foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário.

A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.”

Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe… [Público, Entrevista a Christophe de Dejours]


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Esta entrevista ao Público, do psiquiatra e psicanalista Christope de Dejours, merece ser lida de uma ponta a outra com muita atenção (quem ainda tiver aprendido francês pode ler também esta ao jornal L'Humanité). Ambas as entrevistas mostram como os locais de trabalho se tornaram, ou estão a tornar, em espaços concentracionários de natureza absolutamente totalitária. Escolhi o excerto acima, mas poderia ter escolhido qualquer outro da entrevista. É este modelo totalitário que está a ser importado para os serviços públicos. Por exemplo, era isto, e ainda é, que o Ministério da Educação queria, e quer, impor aos professores.

Não pretendo comentar aquilo que de político e social se manifesta aqui, nem tecer considerações sobre o carácter dos indivíduos que advogam este tipo de coisas e as põem em prática. Interessa-me, antes, voltar à questão da gaseificação da cultura. Não são apenas os produtos que são construídos para a ruína, para a sua rápida destruição na esfera do consumo. A ruína e a destruição dos próprios funcionários e gestores - muitas vezes é também esse o caso - é um elemento central da hipermoderna organização do trabalho. Sob a capa da avaliação de desempenho e da "qualidade-total", e com a ameaça de outsorcing no horizonte, o que se desenha é um cenário onde o elemento central é a destruição de tudo o que é puramente humano, desde as relações interpessoais de trabalhos até, em última instância, aos próprios indivíduos.

Outro aspecto particularmente interessante é a inevitabilidade de tudo isto. Não está nas mãos dos indivíduos parar este tipo de acontecimentos, apesar de aqui ou ali eles poderem ser refreados. Se alguém os parar numa empresa, ela acabará por ceder o seu espaço de mercado a uma outra que fará ou mesmo ou pior. Através deste modo de organização do trabalho, e dos valores sociais que o exigem, manifesta-se um modo de ser que opera muito para lá daquilo que é puramente humano. É como se um desejo ontológico de ruína e de destruição tocasse tudo aquilo que serve de base ao nosso modo de existência.

Para além das luzes brilhantes do espectáculo em que tudo se tornou, Thanatos faz o seu serviço. Mas o que há de novo, não é a presença do impulso de morte. Ele sempre existiu. A novidade é que ele deixou de ter contraposição. O mundo hipermoderno se não matou Eros, reduziu-o a uma caricatura. A deserotização da produção, característica do mundo criado a partir da Revolução Industrial, tem por função a criação de produtos que funcionem como um vácuo para o desejo dos consumidores. Da produção ao consumo, passando pelo produto, tudo é marcado por um impulso voraz de aniquilamento. O amor, Eros, que cria laços entre os seres humanos e entre estes e aquilo que os rodeia, é agora uma sombra delida, uma sombra escondida por detrás dos ciprestes que crescem no enxame de cemitérios que se escondem por todo o lado.

3 comentários:

Anónimo disse...

Cá para mim, este blog só não vai parar ao index do século XXI porque das duas uma: o seu autor está maluco e, por causa disso, só diz coisas malucas a que ninguém deve ligar ou então as palavras, por efeitos da fibra óptica, perderam o poder semântico, por déficit dos efeitos fonéticos.

maria correia disse...

Tinham, os velhos mitos, e razão tinha Wagner, ao musicá-los no Anel do Nibelungo: o Ouro do Reno(o capitalismo neoliberalizado senão mesmo apenas o capitalismo/ (egocentrismo e egoísmo)dará origem ao Crepúsculo dos Deuses. Quando Thanatos se sobrepõe a Eros e este erra perdido entre os ciprestes como alma danada, o que fazer?

jotabil disse...

Sim...Um dia lí "o esplendor do caos" do Eduardo Lourenço. Já tinha chegado a conclusões semelhantes e, naturalmente, que me identifico com esta visão da cultura.
O meu aplauso muito sentido.

cumps