03/02/10

Um paternalismo virtuoso


O último post sobre a leitura de A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. O que representa Jacinto no seu retorno a Tormes? Ele emana de e reforça um certo arquétipo de homem condutor de destinos de uma comunidade. Volta do estrangeiro, fatigado com a depravação das grandes metrópoles, e deixa-se cativar pela virtude local, um misto de ingenuidade e de ignorância. O grande senhor convertido à virtude vai descobrir, horrorizado estética e eticamente, a miséria que impera nas suas propriedades. Prepara um grande plano de reforma, passando pela reconstrução de casas, até à construção de uma escola.

Jacinto é modelado como um homem providencial recto e justo, que distribui a cada um aquilo que ele, Jacinto, acha que merece. Ele é apenas e só um pai virtuoso. É um arquétipo político que, em Portugal, vem de trás e teve até hoje uma enorme fortuna. Mesmo que Jacinto se diga, a dado momento, socialista, para afastar de si suspeições de partidário de um ultramontanismo miguelista serôdio, o modelo onde assenta a sua figura não deixou de estar presente, por exemplo, em Salazar, ou já na democracia pós-74, em figuras como Eanes, Soares e Cavaco, mesmo Cunhal.

Qual a contrapartida deste arquétipo parternalista e virtuoso? Se ele é o homem activo que, pelo carácter e pelo sentido de justiça, coloca o mundo nos eixos, isto é, dá a cada um o que é seu, os outros apenas têm de esperar que chegue o homem virtuoso. A sorte da maioria depende da virtude de um só. Por isso, o esforço próprio, a iniciativa e a autonomia são inúteis. De facto, Jacinto não era um miguelista, mas também não era um liberal, naquele sentido em que acreditaria que cada um deve tomar a sua vida nas suas próprias mãos. Todo o drama de Portugal contemporâneo, do Portugal de hoje, está ali naquelas belas e afectuosas relações que o senhor Jacinto entretém com as pessoas de Tormes.

Sem comentários: