07/02/10

O romance e a caverna platónica

(Imagem retirada daqui)

A intuição de Nietzsche que compreende Platão como um percursor do romance moderno capta, talvez para além daquilo que o próprio Nietzsche pensava, uma relação essencial entre a filosofia platónica e a narrativa moderna. Não é apenas, porém, na estrutura dialogada dos textos platónicos ou na fina psicologia com que são retratados alguns personagens, ou ainda as peripécias dos diálogos ou as técnicas narrativas que são o essencial dessa conexão entre Platão e o romance moderno (e aqui, sob a designação de romance moderno, incluiria também o conto, a novela, certa poesia e teatro, e formas artísticas extra-literárias, como o cinema ou, ainda e de forma provocadora, a pintura e a fotografia).


O essencial dessa conexão encontra-se naquele que é, porventura, o texto mais famoso de Platão, a alegoria da caverna (República, livro VII; pode ler aqui). Neste texto, como na generalidade da sua filosofia, Platão divide o mundo em dois. O mundo dentro da caverna, onde os seres humanos se encontram naturalmente, presos às suas necessidades naturais e às ilusões ideológicas que lhe estão associadas. Fora da caverna, existe um outro mundo, um mundo onde apenas se pode aceder pela libertação da necessidade natural e das ilusões provocadas por essa necessidade. Toda a filosofia é apenas o esforço de um ou outro prisioneiro para se libertar da sua condição natural e das ilusões inerentes a essa condição.


O que tem, no entanto, tudo isto a ver com a literatura, nomeadamente com o romance moderno? O romance moderno, a literatura e a arte em geral, não são outra coisa senão descrições, digamos assim, daquilo que se passa dentro da caverna. Todos os romances, por exemplo, falam apenas e só de uma coisa, da caverna e das acções que os prisioneiros da caverna levam a efeito dentro dela. A caverna platónica com os seus prisioneiros e a "verdade" que eles pensam possuir é o arquétipo do mundo humano, e é deste mundo que o romance trata. Um exemplo. D. Quixote de Cervantes é tido como o primeiro romance moderno. Não é curioso que o personagem principal sofra de ilusões cognitivas que o levam a distorcer a realidade de tal modo que confunde moinhos com gigantes? Quixote é uma personagem da caverna platónica, e a Mancha, apenas uma refiguração dessa caverna. Poder-se-iam multiplicar, ad nauseam, os exemplos.


Deste modo, todo o romance moderno vive da intriga gerada pela confluência das nossas necessidades naturais, manifestadas em desejos, paixões, sentimentos, etc., e as ilusões cognivitas de que somos portadores. Isto tem uma consequência. O romance, e acrescentaria toda a arte, vive sob o império da necessidade. Não me refiro à liberdade do artista enquanto criador, mas aos mundos desenhados nessas obras de arte. Necessidade e ilusão, eis a matéria do romance e, por extensão, da arte. Mas nós só sabemos que a ilusão não é a verdade e a necessidade não é a liberdade por oposição ao fora da caverna, à crença filosófica da existência de um mundo onde liberdade e verdade são a condição dos seus habitantes, se é que existe algum.

A alegoria da caverna não é apenas uma metáfora sobre a condição de possibilidade da filosofia. É ela que torna possível todo o romance e as respectivas intrigas no espaço da caverna. Sem a caverna platónica e o mundo fora da caverna (isto é, sem a cisão ontológica, para usar o filosofês), não haveria literatura nem arte em geral. Fundamentalmente não haveria romance moderno. Isto é assim mesmo que, paradoxalmente, exista literatura e arte muito antes de Platão ter visto a luz do Sol. Aqui, porém, é preciso distinguir o nível cronológico e o nível ontológico. O sentido ontológico, de que a alegoria da caverna é o símbolo, é a condição de possibilidade de toda a arte em geral.


Este texto serve como uma espécie de introdução explicativa de pressupostos a certas considerações que se irão fazer neste blogue sobre romances, em primeiro lugar a Justine, de Marquês de Sade.

6 comentários:

maria correia disse...

Cito JCM: «...Diria que as narrativas míticas são ainda discursos dentro da caverna. A filsofia de Platão é o discurso de quem, fora da caverna, instaura od dois mundo para julgar um pelo outro.» e ainda: «...O romance moderno, a literatura e a arte em geral, não são outra coisa senão descrições, digamos assim, daquilo que se passa dentro da caverna.» Nesse caso, se não estou errada, todo o romance moderno (e talvez toda a arte moderna» é uma narrativa mítica e não acompanhou o «salto» dado por Platão na «Alegoria da Caverna». Falta-nos então um romance ou uma arte «meta narrativa mítica». Creio que os surrelistas tentaram fazer isso...

Jorge Carreira Maia disse...

Maria,

Permita-me discordar sobre os surrealistas.Diria, antes, que a literatura e a arte surrealista são uma emanação da caverna da caverna. Não do que está além, mas do que está dentro. Por exemplo, a escrita automática como processo de expressão do inconsciente (a tal caverna da caverna).

Platão deparou-se com esse problema, o de uma arte «meta narrativa mítica». A sua solução foi expulsar o poeta da cidade ideal. Declarou essa arte impossível. As narrativas míticas, romances, livros sagrados, discurso científico, são sempre interiores à caverna. O fora da caverna é o foro da filosofia, mas só na aparência. Provavelmente, e sublinho este provavelmente, sobre o fora da caverna só se possa falar não falando, à maneira do Zen ou da mística. O daquilo que Platão dizia saber mas que não era passível de discurso. O fora seria o silêncio que permite a articulação do discurso. Mas isto são suposições.

maria correia disse...

Não terei tanta certeza assim em relação aos suurrealistas, s eme permite, Jorge Carreira Maia...

Porém, de momento só me ocorrem duas coisas: uma frase subliminar de ordem hermética:

"O que está em cima é como o que está em baixo. E o que está em baixo é como o que está em cima"..é uma das leis do hermetismo...

A outra, a poesia de Holderlin, que poderia considerar poesia de uma «meta narrativa mítica»...ou, ainda, Herberto Helder...

Creio ser possível encontrar tanto no romance como na arte em geral mais alguns exemplos dessa narrativa exterior à «caverna»...mas posso estar errada. Continuo a dizer que «só sei que nada sei»...

jotabil disse...

Quando conseguirmos uma visão do exterior da caverna...como muito bem, conjectura o JMC....atingimos o contaco directo com o absoluto que anteriormente, nos fazia vibrar, nos inquiteva, nos fazia subir e descer o caminho de Sísifo, quase num procedimento estéril e deseperado.
Não precisamos já, então, de nenhum ente que julgue, adequamente, a nossa percepção da realidade, isto é, o campo do absurdo deixou de existir.
Por isso, já seremos précientes e préconscientes, as paixões já não necessitam de ser expressas, as angústias, as imagens da nossa estética...de resto a subjectividade já se não expressa..tudo dominamos e tudo temos...ou seja, somos o próprio absoluto...estamos sob a luz da verdade...somos deuses!!!...Claro se o exterior da Caverna existir.
Nesse lugar, donos do nosso ser...os romances só teriam lugar no nosso, então, imenso carinho pelo quase infinito caminho que percorremos até esse estádio absoluto e omnipotente.

cumps

Anónimo disse...

Texto interessante, atractivo, mas inquinado de um erro de base, o da superioridade da filosofia sobre todas as outras manifestações do pensamento humano. É verdade que, tarde, torce um pouco do que antes quase gritara, só na filosofia se poderia ver o esforço para se libertar da caverna.
Se se procura o exemplo em Cervantes, que se vá até ao fim, se a loucura, a luta contra os moinhos, a ilha da Barataria, e por aí fora, é a caverna, então a redenção final, será o esforço para dela sair. O que nos pode conduzir, ainda no exemplo de Quixote, à libertação atingida, a morte, muito para lá do Zen ou da mística. Inconveniente, pode-se presumir.
Uma última nota, subverta-se a sua consideração final: são as capacidades do texto narrativo que permitem a possibilidade de verbalizar a cisão ontológica e não o inverso, o que ajuda a resolver o seu dogma ("Isto é assim mesmo que(...)"
Cumprimentos
JB Lemos

Anónimo disse...

A pessoa que escreveu a alegoria da caverna não quis dar um exemplo ou melhor uma fabula para exortar o modo como nos funcionamos, o nosso pior inimigo é o cerebro e o nosso melhor amigo é o "sol", é a antiga luta da ilusão versus verdade, somos nos que estamos na caverna e pessoas como Galileu ajuda-nos a sair desta merda tal como saramago escreveu no seu ensaio da cegueira, outro platão que passou e foi-se....