22/02/10

A questão é entrar


- Escute, homem! Você quer entar na Politica? Quer. Então, pelos Historicos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos são constitucionaes, ambos são christãos... A questão é entrar, é furar. Ora você, agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O que o póde embaraçar? As suas inimisades particulares com o Cavalleiro? Tolices! [Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires; ortografia segundo a regra da época.]

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Não estamos no século XXI. Eça retrata o constitucionalismo monárquico do século XIX. O problema reside no simples facto de não haver qualquer diferença entre o oportunismo político da altura e o actual. Para além de uma vaga reverência ao constitucionalismo e aos valores cristãos, uma espécie de senso comum da época ou, para usar uma expressão em voga hoje em dia, o politicamente correcto de então, qualquer convicção é dispensável às elites políticas portuguesas em períodos de constitucionalismo normal.

Nas sociedades pós-modernas em que vivemos a indiferenciação programática dos partidos políticos deve-se à erosão de alternativas. Pode haver diferentes formas de gerir a coisa pública, mas todas elas coincidem no essencial. A indiferenciação político-partidária portuguesa, porém, não se inscreve apenas nesta perspectiva de ausência de alternativa das sociedades tardo-capitalistas. Ela é uma tradição profunda de ausência de valores políticos sólidos, de convicções sobre o bem comum, de falta de carácter dos protagonistas. De certa forma, Portugal foi pós-moderno mesmo antes de chegar a ser moderno, se é que alguma vez o foi efectivamente. Para as elites nacionais a questão é só uma, a questão é entrar, furar. A monarquia constitucional é um repositório dessas "virtudes" pátrias.

2 comentários:

Alice N. disse...

Será que, no próximo século, se continuará a ler Eça como se falasse do presente? Não há como sabê-lo, claro, mas pressinto que sim.

maria correia disse...

Infelizmente, a questão do poder e dos de que a este querem aceder, a maior parte por motivos ímpios, não é apanágio de Portugal, nem do século XIX nem do XXI. Se lermos o que qualquer, e repito, qualquer escritor --ou realizador ou pintor ou poeta ou músico (enfim, todos os que tentaram sair do inferno/caverna) do mundo diz sobre o assunto, todos são concordantes. O problema é universal. Camus, por exemplo, no Calígula, aborda o mesmo problema. Poderia citar qualquer um dos escitores que conheço e não conheço e todos diriam o mesmo por diferentes palavras. O poder corrompe e serão sempre os mais corruptíveis que lhe tentam aceder. Nem na luminosa Grécia antiga há salvação. A ascenção ao poder é sempre a descida aos infernos. Dante também o sabia. O bom Eça limita-se a constatar um facto universal. O mesmo fizeram todos os escritores grandes do seu século. Na história revolucionária recente, os maiores idealistas foram queimados vivos na fogeuira das vaidades do poder. Che Guevara que o diga, abandonado às florestas enquanto o «amigo» Castro ascendia ao podium. Trostky foi perseguido à morte por Estaline, no podium. Aqui, os idealistas de Abril foram assassinados pelo sistema. A cidadania, ah, a a cidadania...