13/02/10

2. A lei da natureza e a virtude infeliz


Retomemos a leitura de Justine, de Marquês de Sade. No post anterior foi sublinhada a natureza totalitária dos universos descritos por Sade e referida a sua função arquetípica na história da Europa contemporânea. Esses universos são, por seu turno modelados, na caverna platónica. Em cada uma das situações onde Justine se vê envolvida, tanto as vítimas como os algozes libertinos estão, como os prisioneiros da caverna de Platão, presos, submetidos à força. As vítimas submetidas à violência da coacção física, os libertinos, à violência do desejo.

Que lei rege estas cavernas platónicas? O próprio texto a explicita claramente. Desde ladrões e valetes de quarto a aristocratas, passando por burgueses, religiosos e homens de ciência, como o médico incestuoso, pedófilo e assassino, todas enunciam a mesma legalidade, a de um universo social regulado pela lei da natureza. Esta ao fazer uns fracos e outros fortes estabelece o padrão do que cabe a cada um na vida social. A uns fez fracos e vítimas e a outros, fortes e carrascos. O desejo ou a luta entre desejos, num prolongamento da filosofia de Hobbes e antecipando Hegel e Freud, é crucial na visão de Sade. O desejo liga os homens à natureza e entre si, tornando uns senhores e outros escravos. O desejo é, contudo, a manifestação da razão. A razão natural que se inscreve na capacidade e poder, físicos e intelectuais, com que cada um se apresenta ao mundo. Um prolongamento de certos concepções sofísticas contra as quais pensaram Sócrates, Platão ou Aristóteles.

Esta concepção da lei da natureza permite, então, perceber como os universos totalitários se instituem e como se regula a ordem que os estrutura. Concomitante a isto é, por seu lado, a demonstração de que qualquer comportamento virtuoso é fonte de logros e um caminho para a sujeição. O subtítulo da obra – os infortúnios da virtude – mostra a conexão entre a aspiração à virtude e a infelicidade que ela produz. Numa leitura aparentemente crítica das concepções de virtude que provêm do platonismo e do cristianismo, as personagens libertinas tentam, a cada momento, mostrar que o mundo está feito de tal forma que só o vício é recompensado. Um tema que terá impressionado a imaginação do final do século XVIII. Deus ausenta-se do mundo, e a virtuosa Justine passa uma vida de sujeição até que a própria natureza, através de um raio, a aniquila. Na caverna onde os homens habitam, uma caverna constituída por mil outras cavernas, só a astúcia, o ardil, o embuste, a violência são verdadeiramente virtuosos, isto é, nos tornam excelentes na sobrevivência e permitem a satisfação dos desejos com que a natureza nos dotou.

1 comentário:

maria correia disse...

É por isso que urge sair da Caverna.