01/02/10

Uma cultura gasosa

Já não estamos naqueles tempos em que a cultura era um sistema completo e coerente de explicação do mundo. De igual modo, acabaram as grandes épocas de oposição entre cultura popular e cultura erudita, entre "civilização" das elites e "barbárie" da populaça. A este universo de oposições distintivas e hierárquicas sucedeu um mundo em que a cultura, que já não se separa da indústria mercantil, alardeia uma vocação planetária e se infiltra em todos os sectores de actividade. Ao mundo de ontem, em que a cultura era um sistema de signos distintivos, comandados pelas lutas simbólicas entre grupos sociais, que se organizava em torno de pontos de referência sagrados e institucionais, sucede o mundo da economia política da cultura e da produção cultural prolífica e incessantemente renovada. Já não existe o cosmos fixo da unidade, do sentido último e das classificações hierarquizadas, substituído que foi pelo das redes, dos fluxos, da moda e do mercado sem fundamento nem centro de referência. Nestes tempos hipermodernos, a cultura transformou-se num mundo cuja circunferência passou a estar em todo o lado e o centro em lado nenhum. [Gilles Lipovetsky & Jean Serroy (2010). A Cultura-Mundo - Resposta a uma Sociedade Desorientada. Lisboa: Edições 70, pp. 12]

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O importante já não é sublinhar o fim da explicação coerente do mundo, nem a morte da distinção entre cultura e barbárie. O que importa pensar é a natureza gasosa da cultura. A gaseificação da cultura a que assistimos tem uma suposta origem nos fenómenos acima citados desde a indústria cultural mercantil à moda, e é simbolicamente descrita nos conceitos de rede, fluxo, de mundo que é uma circunferência destituída de centro. Esta última metáfora é um indicador precioso do caminho que se está a trilhar. Ela foi já utilizada, no início da modernidade, para descrever a novo concepção de cosmos que despontava.

Com esta conexão entre o mundo da cultura e o mundo da natureza cósmica percebemos que o que está em causa é a destruição do espírito pela naturalização da cultura. Essa naturalização é feita pelo mercado. Ao transformar-se em mercadoria, a cultura está submetida aos mesmos efeitos das mercadorias cujas matérias-primas residem na natureza, isto é, aos ciclos de produção, consumo e obsolescência. Os produtos culturais nascem para se tornarem obsoletos e, desse modo, volatilizam-se, gaseificam-se.

Os clássicos da cultura são clássicos porque provêm da solidez do espírito, mas nos nossos tempos os produtos culturais não possuem solidez, são matéria gaseificada que se dissolve no ambiente, as mais das vezes poluindo-o, diga-se de passagem (veja-se a indústria do entretenimento - vai desde a "literatura" ao cinema, passando por um crescente número de novas modalidades ditas culturais ou "artísticas" - ou o infinito trabalho académico, constituído, na sua imensa globalidade, por lixo intelectual justificador de carreiras académicas ou puro diletantismo). Esta gaseificação da cultura é um dos traços da modernidade tardia, ou hipermodernidade. O que se oculta nesse processo de gaseificação? A pura ruína. Enquanto as civilizações tradicionais produziam a vida segundo a norma da eternidade e da permanência das suas construções, o nosso mundo moderno, ou hipermoderno, constrói tudo para a sua própria ruína.

A ruína deixou de ser uma consequência natural, derivada da acção das leis da natureza sobre as produções espirituais da humanidade, para ser o elemento central da cultura actual, das produções do espírito moderno ou hipermoderno. Quando se concebe um produto (e tudo se transformou num produto para o mercado global), concebe-se pensando já na sua obsolescência, na sua ruína, na sua gaseificação. Parece sólido, mas como o gás ele está pronto a desaparecer na atmosfera. Não se trata sequer de falar numa civilização do desperdício, do consumo ou mesmo do hiper-consumo.

Trata-se de uma civilização cujo núcleo central de desenvolvimento é o querer da ruína. Note-se que isto não atinge apenas os bens de consumo como automóveis, telemóveis, romances, filmes, jogos, etc. Isto atinge as próprias teorias científicas, as quais são construídas para serem destruídas e substituídas por outras consideradas melhores. As ciências, núcleo central da espiritualidade actual, são constituídas por teorias que visam, em última análise, a sua própria destruição, a sua gaseificação. Visam a ruína de si mesmas como explicação dos fenómenos que estudam. O fim que habita as ciências, um fim que visa a auto-destruição, impregna todo o ambiente em que se vive. A ruína nasce do corte entre as ciências e aquilo que as fundamentava e as ligava à ideia de eternidade, isto é, a filosofia e, num outro âmbito, a teologia. Curiosamente, o que celebramos quando celebramos a autonomia das ciências nascida na modernidade, com Galileu e Newton, é o culto da ruína como programa central da nossa vida.

1 comentário:

Miguel e Rita Clara disse...

Sem eixo?
Se assim for regresso a Ptolomeu.
A atonalidade mental da era moderna desorganiza a necessária consciência dos ciclos e ritmos.
Se assim for, talvez condene Galileu, eu não consigo organizar o cosmos e por roupa a lavar e a secar e depois passá-la a ferro, se o caos chegar por dentro deito tudo fora pois não saberei reconhecer a ordem das coisas.
Era para ser a era do vazio e o vazio não é estruturado, não é como as pausas musicais, o vazio é
aleatório.
E nós pequenos humanos precisamos de eixos para suportar as periferias...
Continuo a saber que não sou deste tempo, assumo-me como Vitoriana do século XXI.
Devolvam-me Deus e a sua prenidade e quedem-se com a ciência e a sua efemeridade.
Provavelmente estamos apenas azamboados de tanto girar...