A tempestade que se avizinha
O grau de degradação a que chegou a nossa vida cívica anuncia o pior. Não é a crise internacional que está a espoletar a situação que vivemos, mas o nosso comportamento e, fundamentalmente, as dezenas de anos, desde a entrada para a União Europeia, de leviandade política.
Vou dar um exemplo que me vai trazer má fama entre os professores. Quando comecei a leccionar, ensinava Filosofia, aos 10.º e 11.º anos, com um horário de de três tempos lectivos semanais (3X50m=150m). Hoje, para currículos relativamente semelhantes na extensão ou talvez mais diminutos, eu disponho de quatro tempos lectivos (4x45=180m). Quando havia exame de Filosofia do 12.º ano, coisa que aconteceu até Maria de Lurdes Rodrigues e Valter Lemos tomarem conta do Ministério da Educação, eu levava os alunos a exame com quatro tempos lectivos (4x45=180m), o que me chegava e sobrava. Hoje, sem exames e com o mesmo programa, eu disponho de seis tempos lectivos (6x45=270m). O que se passou com a Filosofia, aconteceu com muitas das outras disciplinas. Isto para não falar da aberração curricular do ensino básico, em que falta tempo para as disciplinas sérias e sobra para as inutilidades curriculares. Estas decisões implicaram um acréscimo de professores a contratar, sem que no entanto o benefício para a instrução geral dos alunos se fizesse notar. Foram actos de pura leviandade política fundada em crenças utópicas. O único mérito é o de ter dado trabalho no Estado a um maior número de professores, que sem essas decisões nunca teriam entrado na profissão. Mas hoje a primeira página do Expresso titula "Professores vão custar este ano mais 420 milhões". Talvez fosse bom que os professores interpretassem este tipo de coisas, para perceberem o que aí vem.
Sejamos, porém, honestos. Esta leviandade na educação é apenas uma gota de água na forma como se tem gerido levianamente os dinheiros públicos. Das autarquias ao poder central, todos nós suspeitamos que o esbanjamento é desmedido, tudo fundado nos projectos utópicos de gente sem sentido de responsabilidade nem a mínima noção moral relativamente ao bem comum. A situação financeira é absolutamente dramática, enquanto se finge, pois é isso que se faz, que vivemos na normalidade. Mas, na verdade, os que governam não sabem como se hão-de ir embora com honra, e os que estão na oposição rezam para que o fardo não lhes caia em cima.
Mas as nuvens negras não vêm apenas da esfera financeira e das contas do Estado. Vêm do ambiente em que se vive, do descrédito total do poder judicial, da imagem cada vez mais desgastada do primeiro-ministro e da elite política do Partido Socialista, mas também da oposição governamental. Vêm do ambiente de medo e de controlo da liberdade em que se vive. As pessoas têm medo de enfrentar os poderes, o central ou os autárquicos. Uma teia metálica, feroz, impiedosa abateu-se sobre a vida cívica, anulando o pensamento adverso e o contraditório. O pior é, porém, o clima de apatia que o cidadão comum ostenta perante a realidade económica e a asfixia da liberdade. Também ele finge que não se passa nada. Como não se passa nada, nada de mal vai acontecer. Esta era a doce ilusão dos gregos há uns tempos atrás.
Está a chegar a altura em que nos vamos confrontar com a nossa própria realidade. São dispensáveis profissões de fé no futuro, como se o futuro fosse sempre radioso. O futuro pode ser bem negro. É preciso, pela primeira vez, ter consciência disso. A leviandade que dirigiu Portugal desde a entrada na União Europeia sempre tinha como pressuposto que o futuro iria ser, talvez por um passe de mágica, radioso e cantante. Essa falsificação da realidade vai-nos sair muito cara. Ou mudamos a atitude perante a vida ou vamos pagar bem caro, tão caro que nem imaginamos quanto vai custar e quanto vai doer. Só sabemos a quem, pois isso toca sempre aos mesmos.
3 comentários:
O desprezo pela instrução, pelos saberes, pelos mais velhos, pelos valores, pela História, pela Filosofia, pela Literatura, tudo isso já está a fazer-se sentir. O caos já está criado, ainda que muitos continuem virados para as sombras que vão passando ao longo do muro. É inacreditável mas é verdade: nunca imaginei que após cerca de pouco mais de duas décadas de actividade pacífica na docência tivesse de enfrentar e aturar tanta má educação e tanta falta de respeito, decorrentes precisamente dessa política desastrosa que esvaziou o espaço educativo. Contudo acredito que a mudança vai impor-se e que está para breve a disciplina de filosofia obrigatória no ensino básico, com a grande finalidade de ajudar a crescer, a despertar para os saberes e para a compreensão de si e do mundo. Portugal não pode andar à deriva do esvaziamento de Planos Tecnológicos.
A mim, que sou professor de Filosofia, falece-me esse optimismo sobre as virtudes do ensino da Filosofia no ensino básico. Algumas experiências restritas podem dar resultados interessantes, mas a sua generalização, na minha óptica, apenas serviria para aumentar o caos nas escolas. Já não seria mau que se conseguisse um currículo decente e trazer a ideia de disciplina para as escolas.
Bom resto de fim-de-semana.
jcm
Eu acredito que o combate à indisciplina passa obrigatoriamente pela mediação da leitura e pelo ensinar a pensar sobre as coisas, despertando para os saberes. Talvez assim não levássemos jovens amorfos a visitar museus.
Votos também de uma boa continuação de Domingo
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