25/02/10

Previsibilidades e revoluções


Afinal aquela velha história de Kant, provavelmente um mito urbano da Konigsberg do século XVIII, que contava que as donas de casa acertavam o relógio pela passagem do filósofo, pois ele fazia sempre o mesmo passeio à mesma hora, não é assim tão extraordinária. Pelo contrário. Um estudo na revista Science prova que 93% das movimentações humanas no espaço são previsíveis. Sejam pessoas que fazem centenas de quilómetros diários, sejam aquelas que apenas percorrem algumas centenas de metros, todas têm em comum o facto dos seus percursos serem previsíveis.

Este estudo, que pretende ter pertinência para a gestão dos fluxos do tráfego nas cidades, deixa perceber uma coisa bem interessante que não é comentada no jornal nem, provavelmente, foi tematizada pelos cientistas. Os seres humanos são por essência conservadores. Uma parte muito substancial das suas deslocações no espaço obedece a padrões normalizados (a nível pessoal, entenda-se). As rotinas tornam-se hábitos, e estes, como ensinou há muito Aristóteles, são uma segunda natureza. A repetição, a rotina, o hábito são a casa onde os seres humanos se aconchegam para poder viver. A previsibilidade mostra uma certa eficiência na gestão da relação com o mundo. Diminui a angústia do próprio e a desconfiança dos outros. Foi devido à previsibilidade, e concomitantemente à natureza conservadora dos hábitos, que a espécie humana pôde resistir e permanecer no mundo. Foi ela que fundou a política, a economia, a cultura.

A espontaneidade, a imprevisibilidade, a capacidade de inovação, etc. sempre foram vistas como excepção, e como tal repelidas ou santificadas. Por santificação da excepção quero dizer que o excepcional era reconhecido como tal, atribuía-se-lhe mérito, premiava-se, mitificava-se, mas ninguém pensava que a vida normal pudesse ser composta por estados e por actos excepcionais. Por exemplo, ninguém acha que não ter o dom de Cristiano Ronaldo para jogar futebol seja um problema. Ele é uma excepção, mas a vida deve decorrer segundo um princípio da não excepção.

A derrota dos projectos revolucionários em política funda-se sempre no conflito entre a natureza humana, previsível e rotineira, e o estado de excepção que uma Revolução política implica. Por exemplo, a derrota do comunismo não se deve tanto à excelência do mundo capitalista ocidental, mas ao carácter inumano do próprio comunismo. Aqui inumano não se refere apenas ao exercício continuado da violência, sempre necessária para assegurar o percurso político da excepção, mas ao facto de que a revolução tem um carácter que choca com a necessidade dos seres humanos se instalarem no previsível, na rotina, no hábito. Quando há revoluções políticas, seja qual for a sua cor, os homens são expulsos, pelos acontecimentos, da sua própria casa. É assim que se sentem.

Já que se falou no comunismo, poder-se-á salientar que o pensamento revolucionário mais consequente se encontra no conceito de Revolução permanente, criado por Léon Trotsky, um dos chefes da Revolução bolchevique de 1917, na Rússia. Uma revolução, enquanto tal, só o é se permanentemente estiver a revolucionar o mundo, a modificar as instituições, a alterar métodos e modelos de acção, a refazer os caminhos que o homem possui para viver em sociedade.

Esta ideia de revolução permanente, porém, não é apenas central no comunismo. Ela é a essência das sociedades capitalistas. O capitalismo, fundado na natureza agónica do mercado, exige uma revolução permanente na sociedade e no modo de vida dos indivíduos, bem como na forma como estes trabalham. O capitalismo, bem como as ideologias totalitárias modernas (fascismo, comunismo, nazismo, anarquismo), assenta na contínua destruição dos hábitos, das rotinas, daquilo que há de previsível no ser humano. Mas a inumanidade do modo de vida capitalista é mais fina e assenta numa contradição.

Por um lado e segundo a retórica em vigor, os indivíduos enquanto produtores e consumidores devem ser espontâneos, abrirem-se para o inédito, para a inovação, fazer formação ao longo da vida, etc. Devem ser revolucionários, numa palavra. O mundo do trabalho e o mundo do consumo, parte substancial da vida humana, estão submetidos a uma revolução permanente. Por outro lado, porém, as mesmas pessoas, enquanto cidadãos, devem ser absolutamente previsíveis, rotineiras, fundadas em hábitos sociais que possam ser facilmente controlados.

Aquilo que diz respeito ao privado, à casa do homem (o trabalho, a satisfação das necessidades, a própria família), deve estar em mutação contínua (novas formas de trabalhar, novos objectos para consumir, novas formas, sempre moles, de família), enquanto a vida pública deve ser perfeitamente conformista e estereotipada. A inumanidade das sociedades capitalistas assenta neste antagonismo esquizofrénico entre o público e o privado. Mas ainda não é tudo. Esta esquizofrenia social está assente na expulsão do homem da sua casa, ao nível da vida privada (vida familiar, de trabalho e de consumo em permanente revolução), e a única casa que agora encontra é a da exposição no espaço público (é isto que se chama sociedade do espectáculo) onde, de forma conformada, se atém a rotinas e hábitos que permitem aos poderes dormir tranquilos. Tudo está sob vigilância. Que os indivíduos, numa parte do seu dia, tenham de ser revolucionários e inovadores e, na outra parte, gente cordata e absolutamente previsível explica o crescimento exponencial das patologias ligadas ao comportamento. Um inesgotável filão para psicanalistas, psicólogos, psiquiatras e outros técnicos do género.

3 comentários:

maria correia disse...

Bem, vou ser previsível e deixar aqui mais um comentário, apesar de a minha natureza ser por excelência revolucionária, no sentido da revolução permanente de Trostsky e não no sentido «revolucionário»--não concordo com o termo para este caso--das sociedades capitalistas. O que o capitalismo quer não são seres revolucionários, estes dão-se todos mal com o capitalismo, ou são mortos por ele ou se tornam outsiders.O que o capitalismo quer são seres adptáveis, isso sim, por necessiddade, às regras soberanas do mercado.O revolucionário é um ser pensante e ao capitalismo só interessa que se pense até ao ponto em que o pensamento pode servir a capitalização de pessoas e bens. Se o pensamento pode originar mais capital, é bem vindo. Se o pensamento contesta a forma como esse capital é criado e adquirido,então o pensamento que fique quieto pois corre risco de prisão. Kant terá tido comportamentos previsíveis em Konisberg, mas abriu mais portas ao pensamento. O facto de gostar de tomar café às duas da tarde, não significa que enquanto tomo o café não esteja a criar universos, a contestar o que se passa ou a magicar uma revolução. O capitalismo é um totalitarismo disfarçado de coisa boa. É a sociedade do faz de conta. E, nos tempos que correm, cada vez os homens são criados, «formados», formatados para o servir. A isso se chama capitalismo académico.

jotabil disse...

Concordo de um modo geral, com o comentário da maria correia.

cumps

Miguel e Rita Clara disse...

Pois bem este é um tema central cá em casa: a rotina Vs a excepção.
E como da minha casa penso o mundo, atrevo-me a abrir algumas janelas.
Questiono se será o conservadorismo humano que levará as gentes a deslocarem-se em hordas até à praia, no Verão, e aos espaços comerciais em dias de chuva?
E depois deixo impressões: o capitalismo vende a ideia de aquisição do estatuto de excepção através da simples aquisição de objectos / serviços. Ninguém quer a rotina, aliás uns senhores em 68 do século XX, fizeram questão de o afirmar!!! Supostamente a rotina mataria a excepção...
Pois bem a angústia mata a revolução, transforma todos os dias em revoltas inférteis.
A previsibilidade cria espaço e tempo limpo, branco, daquele que é bom para aninhar a revolução até que ela possa sair!!!
Há alguns anos conseguia fazer a minha rotina em contraciclo, ou seja andar ao contrário dos fluxos, hoje já não consigo, creio que existe menos previsibilidade nos fluxos (horários, rotinas...)
Termino com uma história, um Inglês realizador de publicidade, nos anos 90, vivia entre Londres, o Rio de Janeiro e Portugal, dizia ele que quando chegava a Lisboa sabia sempre se era 2ª feira, se fosse haveria roupa estendida em todas as casas...
O abismo da não rotina esgota a excepção!