08/02/10

Uma deriva na discussão sobre a regionalização


A discussão com o meu caro amigo JTM sobre regionalização mudou de agulha, parece que caiu para a questão da democracia e da liberdade. Quando li o texto do JTM, no Terra Nossa, fiquei a pensar que ele estava a brincar comigo, somando equívocos sobre equívocos para chegar ao absurdo. Vamos pensar ingenuamente, porém, que não, que ele estaria de boa-fé. Só para a conversa poder continuar.

Diz JTM que “um dos principais objectivos de Oliveira Salazar era, precisamente, segundo o próprio, democratizar o regime”. Depois cita um ensaio, de José Manuel Quintas, estruturado, tanto quanto me pareceu sobre a publicação, por Manuel Braga da Cruz, de um conjunto de textos inéditos e dispersos de Salazar publicados entre 1908 e 1928. JTM joga na ambiguidade da expressão “democratizar o regime”. Qual? Os amores democrata-cristãos de Salazar estão relacionados, fundamentalmente, com o combate do simpatizante monárquico e católico, ao que consta e a influência de Maurras não desmente, contra a I República jacobina. Trinta e seis anos de presidência do conselho julgo que são tempo suficiente para mostrar o amor do professor Salazar pelo democracia representativa, pela liberdade de expressão, o seu amor ao multipartidarismo. Preocupou-se em acabar com a censura, a polícia política, as perseguições aos adversários? Que Salazar possa ter tido uma paixão democrática, anglófila, na juventude, compreende-se. Compreende-se até que escreva a favor de uma democratização da I República, regime herdeiro da odiada Revolução Francesa e inimigo do seu sentimento monárquico e católico. Pena é que nunca tivesse tentado democratizar a ditadura que instaurou. Não faltaram poder nem oportunidades.

Sob a autonomia das colónias, entendida esta como independência nacional, também é evidente que nunca esteve em cima da mesa, a não ser na parte final do regime essa possibilidade. E mesmo aí não foi em cima da mesa nem sequer debaixo dela. Talvez estivesse atrás da porta, e isso era já um pensamento demasiado liberal. Penso que treze anos de guerra colonial são tempo suficiente para a acção exprimir um pensamento efectivo. São uma evidência desse pensamento. Sobre a “revelação” de Kaulza da Arriaga há uma coisa que é evidente. O dr. Salazar, de facto, ponderou as várias possibilidades, porque é isso que um político deve fazer. Daí a dizer que o próprio Salazar era uma espécie de independentista anti-colonial encapotado («Afinal, segundo esta inconfidência de Kaulza de Arriaga, até Salazar admitia a autodeterminação, que poderia mesmo desembocar na separação total, mas desde que não se soubesse e ficasse no segredo dos deuses!») faz-me lembrar o livro do Chesterton, O Homem que era Quinta-feira.

Uma organização anarquista-terrorista, daquelas que punham bombas e matavam pessoas, tinha um comité central com sete membros. Cada um deles era designado por um dia da semana. Tendo vagado, talvez por morte, o lugar do Quinta-feira, a polícia, que estava infiltrada na organização, conseguiu manobrar de tal maneira que o lugar foi preenchido por um polícia. O mais interessante é que esse polícia, o Quinta-feira, descobriu que os outros membros do comité central eram também eles polícias infiltrados, e que o próprio Domingo, o chefe do bando terrorista, era nem mais nem menos o chefe da polícia. Assim, também o dr. Salazar era um combatente anti-colonial infiltrado no Estado Português para facilitar, em segredo, claro, a libertação das colónias e a respectiva independência.

Sobre a questão do marxismo-leninismo e a questão da liberdade. A citação que JTM faz de Engels precisa de uma outra interpretação. “É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade”. O conceito de liberdade usado por Engels nada a tem a ver com a liberdade tal como nós a conhecemos nos regimes de democracia representativa. Nessa citação “liberdade” é um conceito filosófico herdado do idealismo alemão, fundamentalmente de Kant, e deve ser entendido em contraposição, como o Engels o faz, com necessidade. Através do desenvolvimento de novas socialiadades, o homem libertar-se-ia das suas necessidades naturais (aquelas que o submetem à mecanicidade e determinismo da natureza) e tornar-se-ia assim livre. Seria a realização material da liberdade moral kantiana. Mas liberdade aqui não significa a liberdade política. O que Engels visa é a destruição de toda a instituição política, instituição essa que provém do reino da necessidade. E não era disto que estávamos a falar, bem como não era da democracia tal como Lenine ou as ditas democracias populares a entendiam. Pelo menos eu, estava a falar da liberdade e da democracia tal como são entendidas no mundo político ocidental. Utilizar a polissemia da linguagem não vale como argumento. Manobra de advogado.

A proclamação da defesa incondicional da democracia também a subscrevo. É uma coisa que não custa nada. Mas não é por causa da bondade da minha intenção que a democracia vai funcionar no Iraque. Eu teria muito prazer nisso, mas a realidade é a que é. Voltando à regionalização. Portugal não tem regiões a que lhes falte democracia. Toda a vida política portuguesa é, formalmente, democrática. Tem umas comissões de coordenação regional que são órgãos administrativos e que, como muitos outros órgãos existentes no país, as suas direcções dependem dos órgãos democraticamente eleitos. Não há uma região de Lisboa e Vale do Tejo, nem uma região Centro, nem mesmo uma Região Alentejo, etc., com especificidades tais que exijam um reconhecimento diferente daquele que existe. No dia em que essas super-autarquias forem criadas, começamos um novo caminho de criação de identidades inexistentes, de elites exigindo maior autonomia, começamos a criar artificialmente diferenciações que o país nunca conheceu. Queremos isso? Quais as consequências?

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