02/03/09

Arte e guerra


Em 1871, Friedrich Nietzsche ainda frequentava o casal Wagner e via no compositor, Richard Wagner, o símbolo de uma nova era. Por isso, escreve nos finais daquele ano, um prefácio dedicado a Richard Wagner que antepõe à sua primeira grande obra, Origem da Tragédia. Os anos de 1870 e 1871 foram, na Alemanha, anos de intenso fervor patriótico. Uma guerra franco-prussiana terminou com a vitória do lado germânico, com enormes perdas territoriais por parte da França, para além de elevadas indemnizações a pagar por esta à Alemanha.

No prefácio em causa, Nietzsche refere os horrores da guerra e a exaltação patriótica, mas fá-lo para dizer que a problemática da sua obra é, de facto, tão ou mais importante para o destino da Alemanha do que os acontecimentos que a História dera a viver naqueles dois anos. E que tipo de problema subjaz a essa obra? Um problema estético.

Em plena euforia nacionalista, Nietzsche vem dizer que a questão fundamental que se coloca à Alemanha é uma questão artística. Todas as vezes que lecciono essa obra começo pela justificação que Nietzsche dá para semelhante tese: "proclamo a minha convicção profunda de que a arte é a missão suprema e a actividade essencialmente metafísica da vida humana".

Dito de outra maneira, o sentido da vida dos homens não é dado nem pela História, nem pela Religião, nem pela Ciência ou tão pouco pela Filosofia. É na arte que se consuma a essência do homem e é ela que o leva para além das aparências. A obra é um longo argumentário que pretende mostrar que na Alemanha estava a nascer uma nova civilização trágica, a partir do espírito da música, um espírito que ia de Bach a Wagner, passando por Beethoven.

A ilusão nietzschiana reside menos na leitura que faz da tragédia grega de Ésquilo e de Sófocles, do que na esperança de ser possível restaurar o velho espírito trágico dos gregos, antes deste ter sido contaminado pelo optimismo "científico" de Sócrates. Mas esta história de uma grande ilusão só fica completa se se souber que, por um lado, Wagner acabou por não se reconhecer no papel que Nietzsche lhe atribuía e que, por outro, a Alemanha acabou sempre por optar pelo poderio militar em vez da arte.

Se houve tragédia, não foi a da ressurreição do espírito da música, não foi o artifício de uma combinação estética entre espírito apolíneo e espírito dionisíaco, mas o barulho dos exércitos a desfilar, das bombas a rebentar, enfim, a tragédia de duas guerras mundiais, onde o estético cedeu lugar ao assassínio em massa.

No entanto, talvez haja neste obra de Nietzsche qualquer coisa de premonitório. O horror e o pessimismo dos estados dionisíacos mais violentos encarnaram na dança dos exércitos. Os bacantes entregavam-se ao fervor do sangue, esse filtro estranho mais poderoso do que o álcool, as drogas ou o sexo. Por duas vezes, no século passado, Diónisos é retalhado nos campos de batalha. Não houve véu apolíneo que ocultasse tamanho horror.

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