31/01/08

Sobre o espírito liberal

O comércio é talvez a actividade que fundamenta o espírito liberal europeu. Antes da emergência da indústria moderna, são os mercadores que lançam o alicerce onde a ideologia liberal ganhou fundamento. Mas o prestígio da actividade é, na história do Ocidente, muito recente. Se se olhar para o espelho da religião, descobre-se, com facilidade, a raiz do velho espírito antiburguês e antiliberal ocidental.

Quem não conhece a história dos vendilhões do templo corridos a chicote por Cristo. Mas este espírito não sopra apenas da vertente judaico-cristã da nossa cultura. Também da vertente greco-latina sopra um espírito pouco simpático para o comércio. Hermes, Mercúrio na versão romana, era ao mesmo tempo o deus do mercado, protector dos comerciantes e dos ladrões. Nada destas coisas acontecem por acaso e são reveladores de um determinado espírito.

O que eu acho mais curioso é certa combinação, numa mesma individualidade, de um espírito liberal e de um espírito tradicionalista, como se ambas as coisas se pudessem casar. Se se atentar na blogosfera nacional, descobrimos um exército dedicado de liberais, a maior parte tradicionalistas e monárquicos, sempre prontos a denunciar o espírito antiliberal dos que vivem ajoujados à ideologia do socialismo. Eu que não vivo tal ajoujamento, fico espantado com tão grande limitação do conhecimento histórico.

As ideologias socialistas (falo no plural, pois elas são múltiplas) são apenas a espuma de uma atitude histórica muito anterior ao nascimento do liberalismo e do socialismo. Essa atitude é inerente aos fundamentos da nossa cultura e liga-se a uma crítica cerrada ao espírito burguês. Esta crítica pode ter uma origem aristocrática, ou sacerdotal, ou proletária, mas o motivo é sempre o mesmo: o egoísmo que superintende à mentalidade liberal-burguesa. O conflito centra-se entre um ideal de serviço (presente no 1.º, 2.º e 4.º estados) e o pragmatismo egoísta do 3.º estado.

Os liberais sofrem de um défice de compreensão histórica. A ideia de tábua-rasa, aplicada por John Locke à natureza da mente antes da experiência sensível nela inscrever as ideias, acabou por contaminar o espírito liberal. Faz-se tábua rasa de todo o passado histórico, como se o homem tivesse nascido com o Iluminismo. Não nasceu. Quando damos demasiada ênfase aos acontecimentos de momento, ficamos incapazes de perceber a raiz de muitas atitudes e a sabedoria que nelas se esconde.

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