16/01/08

O Papa, os cientistas e os pobres homens

O Papa tinha sido convidado para participar na abertura do ano lectivo da Universidade romana La Sapienze (cf. Público). Gerou-se de imediato um clima de contestação, com um grupo de professores a dizer que a visita papal os humilha e ofende. Tudo porque há 20 anos o Cardeal Ratzinger terá citado, segundo uns, um filósofo austríaco que terá dito que o julgamento de Galileu foi racional e justo, ou, segundo outros, ter-se-á mostrado favorável ao julgamento de Galileu por heresia. O grupo de professores afirmou mesmo que Bento XVI é “um teólogo retrógrado que põe a religião à frente da ciência”. Resultado do charivari: o Papa desconvidou-se da cerimónia. Este é um episódio gratificante e de forte pendor didáctico. Vejamos:

1. Ratzinger tem uma propensão significativa para as citações, nomeadamente para aquelas que dizem coisas que os outros não gostam de ouvir. Umas vezes são filósofos, outras vezes são imperadores; umas vezes aborrece os cientistas, outras os muçulmanos. Seja como for, a citação matreira lá vai saindo.

2. Esta ambiguidade, que parece muito característica de Bento XVI, deixa as pessoas perplexas e desconfiadas. Que pensará efectivamente sobre o julgamento de Galileu? Recorde-se que Galileu foi absolvido, pela Igreja Romana, em 1999 das acusações de heresia, absolvição que deverá ter tido a mão de Ratzinger, devido ao papel que ele tinha, na altura, na Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Inquisição). Seja como for, o que ressalta é ainda a tensão entre religião e ciência. E muitos de nós, onde me incluo, têm uma desconfiança acentuada sobre o que pensa da ciência muita gente ligada à Igreja. Dito de forma mais clara: haverá muita gente que gostaria de rasurar o conhecimento científico que, por exemplo, negasse o significado literal dos textos sagrados: conhecimentos de cosmologia e da evolução das espécies, por exemplo. Em todas as religiões há uma reserva de fundamentalismo que, havendo condições, explodirá.

3. Do lado da ciência, o panorama não é muito melhor. Quando os professores universitários proclamam que Bento XVI é “um teólogo retrógrado que põe a religião à frente da ciência”, o que quereriam eles? Que um Papa achasse a ciência mais importante do que a religião? Queriam que aquilo que diz respeito ao estudo da natureza fosse, para ele, mais importante do que o culto divino?

4. Mas esta atitude dos professores italianos evidencia uma outra coisa. A ciência é uma actividade racional de investigação. No entanto, o culto da ciência tem aspectos irracionais que não diferem do fundamentalismo religioso. A forma como o próprio Galileu é apresentado faz dele uma espécie de santo e mártir de uma religião. Aliás, é uma figura muito curiosa e muito próxima, por exemplo, de Che Guevara. Mas os dois decalcam, na retórica dos cultuantes, a figura desse mártir por excelência que é o Cristo.

5. O que nós, cidadãos deste conturbado mundo, poderemos desejar não será a vitória de um dos campos. O importante é que estes jogos entre as várias linguagens de poder que povoam o mundo (política, religião, ciência, economia) se equilibrem, se anulem no anseio fundamentalista, e permitam assim a existência de uma clareira onde os pobres homens comuns possam existir livremente.

1 comentário:

maria correia disse...

Essa tensão faz parte da dialéctica, tese e antítese, de que é composta a «matéria» do mundo em que vivemos...É através dessa tensão que nos vamos libertando, nós, os pobres homens...