Das Märchen, de Emmanuel Nunes
Assisti, ontem, no Cine Teatro Virgínia, de Torres Novas, à estreia da ópera de Emmanuel Nunes. Sobre a leitura da obra remeto para o Letra de Forma, de Augusto M. Seabra (aqui e aqui), embora não partilhe de todos os pontos de vista apresentados pelo autor, nomeadamente no que se refere à dimensão cénica. Mas posso estar completamente equivocado devido ao desvio introduzido pela filmagem. Quem esteve no S. Carlos esteve no espaço teatral, quem esteve numa sala de cinema esteve a ver televisão num ecrã gigante.
Julgo que há um ponto que merece reflexão e que é colocado por Seabra: o da relação da obra de arte, nomeadamente a musical, com a recepção pública, ou melhor, o carácter dialógico da obra de arte. O risco de muitas obras de arte de vanguarda é o de cortarem a relação com o receptor, ensimesmando-se num solipsismo exacerbado e pleno de hubris, que por vezes apenas esconde novas formas de academismo. Como não possuo formação musical, não emito opinião sobre a matéria musical da ópera.
Parece-me, no entanto, que a experiência da temporalidade proposta na obra é problemática. O tratamento narrativo funciona ao contrário da economia narrativa. Esta contrai o tempo real num tempo da história. O tratamento dado ao tempo, por E. Nunes, entenda-se tempo mediado pela matéria musical, foi o de amplificar o tempo de leitura (a «história» que suporta a ópera é «O Conto da Serpente Verde», de Goethe, e possui cerca de 50 páginas, na edição portuguesa das obras escolhidas de Goethe, da Relógio de Água), como se a consciência se absorvesse na temporalidade e, na captação em «câmara lenta» da história que se expõe na musicalidade que dela emana, chegasse a uma consciência de si. Esta consciência de si resulta duma metamorfose a que o espectador está sujeito pela visão/audição da obra. Há metáforas fortes que remetem para a dimensão temporal: o rio e a serpente. Isto significa que o acesso à consciência de si, através da consciência do tempo, dificilmente se poderá fazer pela luz da razão. É então a faculdade da imaginação que é posta como dínamo da metamorfose, aliás o que é anunciado no prólogo. O rio, a serpente, a música, eis o tempo que passa. A consciência apossa-se de si pela dilação do tempo, mas essa dilação é obra da imaginação, que suspende o tempo de acção humana e natural e instaura um tempo lento, tão lento quanto a consciência necessita para se reconhecer.
Porque tudo isto é problemático? É problemático porque desafia o espectador/auditor para um jogo tão tenso que este corre o risco de naufragar no rio e não encontrar a ponte que liga as margens, isto é, que liga a razão e a imaginação, deixando-o vogar à deriva ou, muitas vezes, com pouca vontade de fazer a viagem: sentar-se e deixar-se arrebatar pela aventura.
Por fim, uma palavra para a iniciativa de ver ópera transmitida via satélite, com o fim de divulgar o género musical. Eu fiquei grato por ter o Virgínia à disposição e também pela qualidade da transmissão. O problema centra-se no conflito que se desenha entra a política «dinamização» de novos públicos e os efeitos negativos que isso pode ter. Na primeira parte, estariam mais de 100 ou 150 pessoas. Na segunda parte, restavam talvez umas 20. As pessoas deveriam perceber a priori o tipo de espectáculo com que se iriam confrontar. A obra exige que o espectador tenha sido «preparado» por um longo treino na audição da vanguarda musical.
Julgo que há um ponto que merece reflexão e que é colocado por Seabra: o da relação da obra de arte, nomeadamente a musical, com a recepção pública, ou melhor, o carácter dialógico da obra de arte. O risco de muitas obras de arte de vanguarda é o de cortarem a relação com o receptor, ensimesmando-se num solipsismo exacerbado e pleno de hubris, que por vezes apenas esconde novas formas de academismo. Como não possuo formação musical, não emito opinião sobre a matéria musical da ópera.
Parece-me, no entanto, que a experiência da temporalidade proposta na obra é problemática. O tratamento narrativo funciona ao contrário da economia narrativa. Esta contrai o tempo real num tempo da história. O tratamento dado ao tempo, por E. Nunes, entenda-se tempo mediado pela matéria musical, foi o de amplificar o tempo de leitura (a «história» que suporta a ópera é «O Conto da Serpente Verde», de Goethe, e possui cerca de 50 páginas, na edição portuguesa das obras escolhidas de Goethe, da Relógio de Água), como se a consciência se absorvesse na temporalidade e, na captação em «câmara lenta» da história que se expõe na musicalidade que dela emana, chegasse a uma consciência de si. Esta consciência de si resulta duma metamorfose a que o espectador está sujeito pela visão/audição da obra. Há metáforas fortes que remetem para a dimensão temporal: o rio e a serpente. Isto significa que o acesso à consciência de si, através da consciência do tempo, dificilmente se poderá fazer pela luz da razão. É então a faculdade da imaginação que é posta como dínamo da metamorfose, aliás o que é anunciado no prólogo. O rio, a serpente, a música, eis o tempo que passa. A consciência apossa-se de si pela dilação do tempo, mas essa dilação é obra da imaginação, que suspende o tempo de acção humana e natural e instaura um tempo lento, tão lento quanto a consciência necessita para se reconhecer.
Porque tudo isto é problemático? É problemático porque desafia o espectador/auditor para um jogo tão tenso que este corre o risco de naufragar no rio e não encontrar a ponte que liga as margens, isto é, que liga a razão e a imaginação, deixando-o vogar à deriva ou, muitas vezes, com pouca vontade de fazer a viagem: sentar-se e deixar-se arrebatar pela aventura.
Por fim, uma palavra para a iniciativa de ver ópera transmitida via satélite, com o fim de divulgar o género musical. Eu fiquei grato por ter o Virgínia à disposição e também pela qualidade da transmissão. O problema centra-se no conflito que se desenha entra a política «dinamização» de novos públicos e os efeitos negativos que isso pode ter. Na primeira parte, estariam mais de 100 ou 150 pessoas. Na segunda parte, restavam talvez umas 20. As pessoas deveriam perceber a priori o tipo de espectáculo com que se iriam confrontar. A obra exige que o espectador tenha sido «preparado» por um longo treino na audição da vanguarda musical.
5 comentários:
Não vi ainda Das Marchen, excepto numa ligeira apresentação da ópera no telejornal. Fiquei, de imediato, deslumbrada com o pouco que ouvi e com o pouco que vi da encenação...a crítica de Seabra é quase demolidora...Mas será assim tão mau? E as cento e cinquenta pessoas que se encontravam em Torres Novas não estavam preparadas para o que iriam ver? Ou ficaram também decepcionadas? Não é toda a gente que vai assistir a uma ópera, ainda por cima de Emmanuel Nunes, apesar do velho conceito de a ópera ser para o povo...Não se estará a cair, mais uma vez, ao ataque ao que é «novo» e «diferente»? Quantos compositores não sofreram já este género de ataques?
Bom, presumo que a única coisa que terei a fazer é: VER e OUVIR...
Li em vários antigos a tradução de Das Marchen para «o conto»... Marchen, em alemão, significa conto de fadas...
Li, para além da crítica de A. M. Seabra, as do Público e do Diário de Notícias, de hoje. São também negativas. Não sou especialista em ópera, nem em teatro. A minha opinião é uma opinião de amador. No entanto, as quatro horas, mais o intervalo de uma hora, não me foram penosas. Pelo contrário. Como escrevi no post, eu vi «televisão», não estive na ópera. Por isso e pela minha diletância, agradou-me a encenação. Soluções que são criticadas, como a da duplicação de certas personagens pela sua sombra, parecem-me interessantes (mas teria de ver novamente a ópera nesta encenação).A introdução da sombra significa a introdução de uma duplicidade imagética na personagem.
Há na obra uma certa continuidade (o A.M. Seabra refere-a), na temática "maravilhosa" com a Flauta Mágica, do Mozart, e da Mulher sem Sombra, do R. Strauss. O que se pode questionar é se a matéria musical se presta, pela seu construtivismo denso, aos jogos de imaginação que estão presentes nos libretos deste tipo de óperas. Mas aqui, julgo, há um longo caminho a fazer. A música de vanguarda corresponde a um gosto «incomum» e acaba por exigir, do espectador não especialista, o treino do ouvido, o treino da recepção. Por exemplo, quantas pessoas, das que foram ao S. Carlos, já terão escutado, por exemplo, o Quodlibet, de E. Nunes?
Como se nota no meu post, interessou-me, particularmente, a forma como a temporalidade é tratada, devido à minha formação em filosofia. Interessou-me também a matéria musical. Surpreendeu-me e muitas vezes levou-me a interrogar como é que um poema poderia, por exemplo, ser construído, tal como E.Nunes construira a sua partitura.
O problema é que todas estas reflexões são de alguém que tem um certo tipo de formação, que se interessa por reflexão estética para enquandrar os fenómenos artísticos. Mas aqueles, em geral, a quem uma obra de arte se dirige encontrarão um caminho de acesso? Isso passou-se com muitas obras. Depois, o gosto do público foi reconfigurado e adaptou-se às novas linguagens, que já não eram tão novas. Será o caso desta?
Agora, julgo que esta obra (até pela recepção que teve no S. Carlos. Parece que metade do público abandonou a ópera a meio)não é o melhor caminho para atrair novos públicos. Se as pessoas não conhecem a Flauta Mágica, não têm a mínima noção do que distingue a ópera italiana da ópera alemã, como poderão entender a música da vanguarda? Julgo que este trabalho de divulgação é útil. Não partilho da atitude de «escárnio» do blogue Portugal dos Pequeninos. As pessoas começam a sentir necessidade de algo mais do que a banalidade. Não por acaso foram aos sítios onde a ópera estava a ser retransmitida. Mas há que «oferecer» algo que as pessoas possam digerir. Se isso vier a ser feito, nada há a dizer desta transmissão.
Não assisti à obra em causa. Talvez também não tenha preparação para enfrentar Emanuel Nunes. Como não consigo enfrentar Jorge Peisxinho, por exemplo. Nem Bela Bartok.
Ou até Lopes Graça (excepto a música coral)...
Defeitos meus, que procuro corrigir.
Não sei os motivos reais para estarem 150 pessoas ao inicio e terminar com 20 pessoas. Mas desconfio que um pequeno charme provinciano que consiste em ser visto no hall do teatro antes e ao intervalo. Música clássica? ainda se fosse o Richard Clayderman...
Não é o caso. As pessoas chegaram em cima da hora, praticamente não tiveram tempo de ser vistas. A percepção que eu tenho de umas 100 a 150 pessoas é do interior da sala. Tudo muito discreto. Depois, veio o intervalo de uma hora e quando voltei para a segunda parte a sala estava quase vazia. Mas o mesmo aconteceu no S. Carlos e, supostamente, quem foi ao S. Carlos deveria ter alguma percepção do que iria encontrar.
Creio que a melhor maneira de se preparar as pessoas para a música de vanguarda é dar-lhes a possibilidade de a ouvir e, nisso, a divulgação feita a Das Marchen é exemplar. Creio também que talvez uma boa parte dessas pessoas que saíram a meio da ópera, no S. Carlos e em Torres NOvas--e, especialmente, no caso do S. Carlos, ouve Mahler e gosta de Mahler e já se esqueceu que o compositor, no seu tempo, foi vaiado...Se me permite, acho de uma profunda falta de tudo sair-se a meio de um espectáculo...mas enfim...Não sou, de modo algum ,perita em música para poder avaliar se a obra Das Marchen tem ou não a necessária qualidade musical exigida para um compositor como Emmanuel Nunes...mas, sair a meio???Por que razão? Enfadonho demais? Tremendo fracasso musical e cénico? Não me parece...O problema é a tal preparação...mas como preparar alguém que sai a meio?
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