Sobre a magna questão de vivermos em «fascismo»
Num «post» de Nuno Castro, no O Blogue Qualquer, já com alguns dias, há uma reflexão sobre artigos de Vasco Graça Moura, António Barreto e Baptista Bastos, sobre a lei do tabaco e as actividades da ASAE. Há uma demarcação das posições desses autores, nomeadamente da ideia de que «vivemos em fascismo». Não é bem isso o que me interessa. O que me interessa é o seguinte:
«A minha opinião [de Nuno Castro] é que caminhamos para um fascismo “doce”, suave, mas não pelo governo Sócrates; antes é a sociedade portuguesa que paulatinamente envereda por aquilo que Boaventura designou de fascismo societal. É importante ter isto em mente, porque a desculpa mais fácil e mais confortável é assacar as responsabilidades deste “fascismo doce” ao governo Sócrates. A meu ver, não cabe a este as culpas de uma tal situação; ou pelo menos é absurdo atribuir-lhe a causa de uma noção totalizante como é a de fascismo. A haver causas encontram-se na sociedade portuguesa, resultado de uma multiplicidade de factores, que estão, a meu ver, ainda por descortinar e expor.»
Se de facto não vivemos em fascismo, também não me parece que caminhemos para um fascismo “doce” ou para um fascismo societal (palavra horrível). A utilização de um conceito como fascismo pode ter uma repercussão afectiva, mas não ajuda a pensar a realidade. Se há uma coisa que marca o fascismo (ou os fascismos) é o seu carácter político revolucionário (veja-se os vários tipos de “camisas” que se ligam ao fenómeno). Mas este carácter revolucionário visava o futuro de uma forma enviesada: através da restauração de certos valores provenientes de um passado mítico (veja-se a cenografia dos fascismos italiano e alemão, ou mesmo da trupe de Primo de Rivera, aqui ao lado). Diria que os regimes totalitários, neles incluindo, ainda que de forma diferenciada, o comunismo, são estranhos regimes que combinam as aquisições da técnica e da estética modernas com uma ideologia restauracionista pré-moderna e pré-iluminista. O que torna estes regimes totalitários é a necessidade de metamorfose orgânica: metamorfosear o corpo moderno num corpo não moderno.
É evidente que não caminhamos, em Portugal, para nenhuma forma de fascismo, seja doce, seja amargo. Nenhum projecto revolucionário existe, nem tão pouco qualquer ânsia de retorno a um passado mítico pré-moderno. O regime é reformista e visa a modernização contínua da sociedade, a sua submissão aos mecanismos sociais herdados do iluminismo, na sua versão liberal. Relativamente à sociedade portuguesa também me parece deslocado o conceito de fascismo societal. Em 50 anos, a sociedade portuguesa passou pela experiência de um regime político autoritário, pela experiência revolucionária da segunda metade da década de 70, pela experiência de uma União Europeia que já não é a actual, ainda marcada pelo pacto social-democrata e, por fim, pela experiência de uma sociedade globalizada e economicamente liberal. Pessoas com 50 anos viveram intensamente todas estas experiências.
É provável que certas manifestações de conformismo social, alguma incapacidade da sociedade fazer frente aos desígnios das elites, alguma incapacidade crítica, sejam um reflexo de uma experiência tão multifacetada e, pela sua complexidade e intensidade, geradora de atordoamento proveniente de orientações sociais tão contraditórias. Utilizar o termo fascismo não ajuda a perceber o fenómeno e induz em erro. Porque aquilo que está em jogo é a recepção pelos portugueses dos imperativos da modernidade, num momento em que esta parece despedir-se da cena do mundo. É provável que a forma como os portugueses estejam a lidar com os processos sociais em curso seja diferente da dos nossos parceiros europeus, mas esses processos são idênticos e a impotência que se sente em Portugal é, certamente, sentida por muitos europeus não portugueses. É no jogo entre a força abstracta e destituída de rosto que impõe sem alternativas o curso do mundo e a impotência sentida pelos homens que reside o problema que dá que pensar. Mas utilizar um conceito como o de fascismo contribui muito pouco para esclarecer o que se passa. Há quem utilize o conceito de «barbárie doce», mas também este é pouco pregnante. Porquê? Porque o que está em jogo não é a barbárie mas a civilização. Porquê o nosso desgosto perante o avanço ininterrupto das forças civilizadoras? Eis o que dá que pensar.
«A minha opinião [de Nuno Castro] é que caminhamos para um fascismo “doce”, suave, mas não pelo governo Sócrates; antes é a sociedade portuguesa que paulatinamente envereda por aquilo que Boaventura designou de fascismo societal. É importante ter isto em mente, porque a desculpa mais fácil e mais confortável é assacar as responsabilidades deste “fascismo doce” ao governo Sócrates. A meu ver, não cabe a este as culpas de uma tal situação; ou pelo menos é absurdo atribuir-lhe a causa de uma noção totalizante como é a de fascismo. A haver causas encontram-se na sociedade portuguesa, resultado de uma multiplicidade de factores, que estão, a meu ver, ainda por descortinar e expor.»
Se de facto não vivemos em fascismo, também não me parece que caminhemos para um fascismo “doce” ou para um fascismo societal (palavra horrível). A utilização de um conceito como fascismo pode ter uma repercussão afectiva, mas não ajuda a pensar a realidade. Se há uma coisa que marca o fascismo (ou os fascismos) é o seu carácter político revolucionário (veja-se os vários tipos de “camisas” que se ligam ao fenómeno). Mas este carácter revolucionário visava o futuro de uma forma enviesada: através da restauração de certos valores provenientes de um passado mítico (veja-se a cenografia dos fascismos italiano e alemão, ou mesmo da trupe de Primo de Rivera, aqui ao lado). Diria que os regimes totalitários, neles incluindo, ainda que de forma diferenciada, o comunismo, são estranhos regimes que combinam as aquisições da técnica e da estética modernas com uma ideologia restauracionista pré-moderna e pré-iluminista. O que torna estes regimes totalitários é a necessidade de metamorfose orgânica: metamorfosear o corpo moderno num corpo não moderno.
É evidente que não caminhamos, em Portugal, para nenhuma forma de fascismo, seja doce, seja amargo. Nenhum projecto revolucionário existe, nem tão pouco qualquer ânsia de retorno a um passado mítico pré-moderno. O regime é reformista e visa a modernização contínua da sociedade, a sua submissão aos mecanismos sociais herdados do iluminismo, na sua versão liberal. Relativamente à sociedade portuguesa também me parece deslocado o conceito de fascismo societal. Em 50 anos, a sociedade portuguesa passou pela experiência de um regime político autoritário, pela experiência revolucionária da segunda metade da década de 70, pela experiência de uma União Europeia que já não é a actual, ainda marcada pelo pacto social-democrata e, por fim, pela experiência de uma sociedade globalizada e economicamente liberal. Pessoas com 50 anos viveram intensamente todas estas experiências.
É provável que certas manifestações de conformismo social, alguma incapacidade da sociedade fazer frente aos desígnios das elites, alguma incapacidade crítica, sejam um reflexo de uma experiência tão multifacetada e, pela sua complexidade e intensidade, geradora de atordoamento proveniente de orientações sociais tão contraditórias. Utilizar o termo fascismo não ajuda a perceber o fenómeno e induz em erro. Porque aquilo que está em jogo é a recepção pelos portugueses dos imperativos da modernidade, num momento em que esta parece despedir-se da cena do mundo. É provável que a forma como os portugueses estejam a lidar com os processos sociais em curso seja diferente da dos nossos parceiros europeus, mas esses processos são idênticos e a impotência que se sente em Portugal é, certamente, sentida por muitos europeus não portugueses. É no jogo entre a força abstracta e destituída de rosto que impõe sem alternativas o curso do mundo e a impotência sentida pelos homens que reside o problema que dá que pensar. Mas utilizar um conceito como o de fascismo contribui muito pouco para esclarecer o que se passa. Há quem utilize o conceito de «barbárie doce», mas também este é pouco pregnante. Porquê? Porque o que está em jogo não é a barbárie mas a civilização. Porquê o nosso desgosto perante o avanço ininterrupto das forças civilizadoras? Eis o que dá que pensar.
3 comentários:
Concordo que o abuso da expressão "fascismo" é incorrecto - porque estamos de facto longe de um regime fascista. Abusar da expressão é banalizá-la e então sim, abrir caminho a tentãções...
Mas não se pode negar e ignorar que vivemos sob um Estado Absolutamente Autoritário, sustentado pelos principais grupos econónicos, que se verga a esses grupos, um Estado que se demite das suas obrigações sociais ( curiosamente em nome da "liberdade" e da "modernidade")e um abuso de medidas e de legislação Administrativista, sob a capa de uma falso "reformismo", "regulação" e "regulamentação" que mais não visam limitar Liberdades Individuais e Grupais, com o apoio burocrático no centrão partidário.
Cumprimentos,
Não partilho também da ideia de vivermos num "Estado absolutamente autoritário", e eu já vivi, durante 17 anos num estado autoritário, embora não em absoluto e, felizmente, este não se compara. Confesso que tenho dificuldade em encontrar uma rede conceptual para definir a situação que vivemos. É possível fazer descrições empíricas da situação (clivagens sociais acentudas e crescentes, diminuição do peso político efectivo das classes populares, emergência da casta dos gestores, submissão do político ao económico, eliminação de alternativas de organização da vida económica e social,recuo dos direitos sociais,proliferaçõesde forma de cultura abastardadoras do espírito, etc.) mas isto não é inteiramente novo. Talvez o cansaço que toca os povos ocidentais seja um dado novo, mas o que há de mais novo é o temor do progresso. Explico-me: a ideia de progresso continha a ideia de um progresso moral e de um progresso material e social da humanidade. Hoje, porém, quando ouvimos falar de modernização e de progresso já sabemos o que significa: aumentos das desigualdades sociais, o triunfo do egoísmo moral,o advento de certas conquistas técnicas não ancoradas num avanço moral. Palavras como progresso, civilização, modernização e reforma tornaram-se senhas que indicam que alguém vai ser esmagado. Talvez isto seja novo: os grandes slogans do iluminismo perderam o seu conteúdo emancipador e, pelo contrário, tornaram-se uma ameaça.Também talvez seja novo uma estranha comunhão entre os adeptos da reacção (refiro-me à reacção aristocrática contra a burguesia iluminista) e os da emancipação: ambos foram derrotados pela burguesia liberal. Também novo é a redução do liberalismo burguês a um puro liberalismo económico-político, com o consequente desaparecimento de uma certa forma liberal de estar na vida: o gentleman mostra a sua face de ave de rapina. Depois, há ainda a emergência dos novos actores mundiais e as questões ecológicas e as demográficas. É esta trama de causas que ainda é difícil conceptualizar, o que significa que elas ainda estão em acção (o velho Hegel sabia muito disto). Seja como for, os conceitos que herdámos do passado parecem-me impotentes para dar conta da realidade que se abate sobre nós. Seja como for, vale a pena pensá-las.
Cumprimentos.
Não tenho infelizmente a sua capacidade de reflexão filosófica. Mas venho ao debate. Peço desculpa.
Penso que o problema não está na essância das coisas, mas nome que as coisas tomam. Concordo que palavras como Progresso;Reformismo e Civilização significam que alguém vai ser esmagado - mas sempre terá sido assim e já estamos a bater à porta de Marx com a luta de classes no devir da história.
É este o ponto preciso que em Janeiro de 2008 importa tentar perceber o que significam o Progresso (ai Comte, Comte) e a Reforma:
A burguesia liberal utiliza o reformismo como um conservador "back to basics" do sistema capitalista traduzido em efectiva desregulação. Será uma espécie de reformismo social conservador.
A ideia de um progresso social (podemos chamar-lhe socialismo?) associado a uma sociedade mais igualitária é hoje reaccionariamente revolucionária- estranho paradoxo, de facto. Mas talvez seja esta a ideia que aponta para o futuro.
Cumprimentos,
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