Torne-se um pouco mais visível, neste blogue, a troca de ideias com o Zé Manel Pereira (ver
ali), do
Canhotices. Há um assunto que me interessa particularmente que é o da modernidade e do seu hipotético fim. O que quero eu dizer com isto? Que o processo civilizacional que começou no pós-renascimento, com a filosofia cartesiana e a ciência moderna, que ganhou substância no pensamento do iluminismo, nomeadamente com Kant, que encontrou na revolução industrial a sua energia, que supôs, tanto na versão liberal como na marxista, uma emancipação racional, ainda que diferenciada, do homem, pode ter chegado a um ocaso. Há sintomas desse ocaso? Há. Tanto o individualismo, nascido do subjectivismo cartesiano e do liberalismo empirista de Locke, como a ciência e a economia apresentam sinais de profundas contradições.
Por exemplo, o crescimento dos direitos e da afirmação dos indivíduos está a conduzir a situações em que os indivíduos libertados da tutela social se encontram agora abandonados e nesse sentimento de abandono cresce um outro sentimento: o de uma vida desprovida de sentido e, por isso, irracional.
Por seu turno, a economia nascida com a revolução industrial gerou um conjunto de contradições (não apenas as sociais e económicas analisadas por Marx), nomeadamente uma contradição naquilo que foi considerado como um stock de matérias-primas para o homem, isto é, a natureza. O desenvolvimento indefinido da economia implica a existência de um stock infinito sempre disponível. Ora a natureza, esse fundamento material da economia, nem é infinita, nem parece disposta a aceitar sem vingança a sua redução a um mero stock à disposição do capricho do homem.
Por fim, a própria ciência apresenta também contradições interessantes. A ciência é uma actividade de investigação racional da realidade. No entanto, a sua afirmação e expansão foi feita sempre na base de um programa ideológico: a ciência seria um auxiliar libertador e emancipador do homem das tutelas que a ignorância e a servidão à natureza impunham. Ora as ciências empírico-analíticas, como por exemplo a Física, a Química e a Biologia, libertaram um conhecimento tal que ele pôs à disposição um poder que, a cada momento, parece querer abater-se e esmagar o próprio homem. Mas não são apenas as ciências empírico-analíticas que levantam este problema. Também as ciências humanas e sociais, nomeadamente a sociologia e a psicologia, têm contribuído para o crescimento das formas de dominação e de esmagamento do homem. O carácter emancipatório que alimentou a legitimação da actividade científica é hoje absolutamente problemático.
Em todos estes processos, todos de carácter racional, há uma coisa em comum: a razão a dado momento do devir dos processos mostra um fundo irracional. Esta irracionalidade não é a mesma que habitaria os sentimentos de fé medievais ou outro tipo de superstições. É uma irracionalidade gerada pelos próprios mecanismos da razão, de uma razão que, ao mesmo tempo, se fragmenta (razão científica, razão económica, razão social, razão psicológica) e se absolutiza. As contradições apontadas atrás, são apenas encarnações de uma contradição que habita os processos racionais e a própria razão.
Vale ainda a pena olhar para o fenómeno no âmbito da política. A experiência do socialismo, já consumada, mostrou o mesmo fenómeno: a emancipação do homem gerou sociedades onde a liberdade foi aniquilada, como se a emancipação não implicasse, na sua natureza, a própria liberdade. Mas a experiência pela qual agora passamos, a do liberalismo, não é diferente da do socialismo real: a consideração liberal de que todos os homens são seres racionais e se movem por interesses racionais está a mostrar também os seus limites extremos: o interesse racional de alguns é que outros não sejam considerados homens, isto é, que sejam escravos e logo não possuam interesses racionais. Assim como a lógica emancipatória do socialismo acabou, ao eliminar a liberdade, na contradição consigo mesma, também a lógica do liberalismo, ao não limitar o interesse, está a criar condições para uma efectiva eliminação da liberdade e uma desrealização do homem enquanto ser racional(aliás, muito desta análise foi feita por Marx).
Para concluir, o conjunto de contradições que foram geradas pelos tempos modernos, contradições que se agudizam continuamente, apontam claramente para o ocaso da modernidade. Também os conceitos que utilizámos para viver e pensar essa realidade ainda viva estão moribundos. Penso que o conceito de socialismo está morto e o mesmo começa a passar-se com o de liberalismo. Aquilo que talvez seja o mais difícil é a criação de novos conceitos, não conceitos que expliquem o que se passou, mas conceitos que captem o caminho a seguir, que lancem as bases do que se há-de desenvolver. Por exemplo, como pensar a política após a morte do socialismo e do liberalismo? Como conjugar o ideal de liberdade, da tradição liberal, com o ideal de justiça social, da tradição socialista? Neste âmbito, a minha perspectiva é a do abandono da submissão da política à economia, submissão presente tanto nos liberais como em Marx. Há que fazer implodir o conceito de economia-política. Avanço uma tese, provavelmente sem qualquer originalidade: o carácter distópico do socialismo real e do liberalismo reside na submissão dos imperativos políticos aos imperativos económicos. Mas isto é ainda e só uma tese sobre o passado histórico. Não é o conceito vivo que permite pensar aquilo que, por não ter sido pensado, dá que pensar.
Enfim, entusiasmei-me e isto já vai demasiado longo para um blogue.