30/11/07

A Cidade Flutuante - 25. Uma rosa

Uma rosa,
uma violeta,
a erva rasa,
a tudo cobria,
e as pedras
da muralha
carcomidas pelo sol
a suster trepadeiras,
a lançar pragas,
no sítio onde cantavas
ao som dos primeiros acordes,
o dia avaro
então tos trazia.

Se as flores feneceram
e a erva secou,
foi a tua voz,
sob as pedras da muralha,
há muito se calou.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Vila Real - um novo caso Esmeralda

Tenho formação racional, ensino aos meus alunos a crença básica no livre-arbítrio, desdigo as crenças ingénuas no destino, no fado ou no karma, mas… Há crianças que parece trazerem um karma tão pesado que, ainda pequenas, já toda a sua vida está revolvida e um destino inelutável abate-se sobre elas. Depois do caso Esmeralda, é uma criança de Vila Real que vive há seis anos, desde os 25 dias de vida, com uma família de acolhimento, de onde o tribunal de Vila Real a manda retirar para a entregar à mãe biológica (ver Público). O que se passa com a lei, os juízes, os tribunais? Má sorte ter nascido em dia aziago, num país azedo que aposta em encenar na vida real as ficções de Kafka.

Jornal Torrejano, 30 de Novembro de 2007

Lá chegou, dentro do tempo aprazado, a nova edição do Jornal Torrejano. E o que trouxe ela consigo? Na primeira página, traz a ponderação da Câmara Municipal de Torres Novas. E o que de tão ponderoso pondera ela? Aderir, até final do ano, às Águas do Ribatejo. Uff! Ainda bem que o Presidente se chama António Rodrigues e não António Silva, pois aí a Câmara aderiria às Águas do Cartaxo, o que, tendo em conta a franca melhoria daquelas águas, não era má ideia. Bom, deixemo-nos de piadas secas. Ainda na primeira página, referência para a música para bebés dada pelo Phydellius, no projecto (que raio de palavra) Alibebé. A não esquecer também a notícia Torres Novas já tem uma "estratégia", o que nos deixa a todos mais tranquilos. Como se vê Torres Novas está na vanguarda, ele são projectos, ele são estratégias, até parece uma recomendação do Ministério da Educação.
Isto hoje está com demasiada conversa, verve a mais do blogger. Vamos então à opinião. Para começar, Hélder Dias e o seu cartoon banqueiro. José Ricardo Costa entrega-se a considerações sobre o fetichismo em Chechés. Miguel Sentieiro escreve Pai Amigo, Carlos Nuno fala sobre Esmeralda, Carlos Henriques, 87 minutos e este blogger escreve sobre O partido empresa, uma pessoa tem de escrever sobre qualquer coisa, não é?
E assim chegámos ao fim do post. Estas palavras são para esticar o assunto e ocupar o espaço gentilmente cedido pela Google. Então, até para a semana, se tudo correr como se espera.

Pink Floyd - Another Brick in the Wall

Pink Floyd - Another Brick In The Wall Colocado por djoik

Faz hoje 28 anos que foi editado The Wall, um dos maiores êxitos dos Pink Floyd, numa altura em que o grupo perdera já o vigor dos primeiros tempos. Mais do que o disco ou a música dos Pink Floyd, o que merece atenção e meditação é o êxito de Another Brick in the Wall. Estamos em 1979 e começava a dissolver-se a repercussão dos ideais de 60, nomeadamente daqueles que vieram na sequência das crises universitárias, sendo a mais conhecida a de Maio de 68, em França. Muitos dessas crises acabaram em práticas folclóricas, outras no terrorismo, outras ainda na integração na insípida e inodora vida burguesa, motivo maior da contestação dos jovens filhos família.

A canção Another Brick in the Wall tornou-se então profética. Basta ver o vídeo para perceber o que estaria já a germinar e que permitiu tamanho acolhimento do álbum dos Floyd. A imagem do professor dada pelo vídeo, apesar de caricatural, retrata já a forma como era compreendida a educação e o papel dos professores no mundo ocidental.

Se olharmos para a letra o que descobrimos de essencial? A escola como lugar de opressão (controlo de pensamento) e depois, um pouco como os jovens filhos família de 68, o grito programático pela libertação: não precisamos de educação, de controlo de pensamento, de humor negro. Professores deixem as crianças em paz. A alteração essencial é que, agora, já não são os jovens adultos com problemas hormonais que se revoltam, mas a instigação da revolta em crianças e adolescentes. Não é a Universidade e a sua relação com a vida que está em causa, mas a escola e o papel desta na formação da comunidade e o papel do professor na formação do consenso social que permite aos membros de uma dada comunidade política quererem viver uns com os outros. O ataque é à escola, ao professor, mas acima de tudo o ataque é àquilo que o professor representa nas sociedades modernas: o formador da comunidade política. O ataque é à própria comunidade política.

O interessante é que esta ideologia entrou na esfera da governação e nos últimos vinte a vinte e cinco anos tem sido o pano de fundo de muitas políticas educativas no Ocidente em geral e em Portugal, a partir da estapafúrdia reforma de Roberto Carneiro e Cavaco Silva, em particular. Subjacente às medidas políticas educativas, nomeadamente às do actual governo, há a convicção de que os professores não passam de uns sádicos incompetentes, uns incapazes que sublimam a sua puerilidade e impotência na castração violenta das crianças. É aqui, no sadismo castrador, que os governantes colocam, por exemplo, os «chumbos» dos alunos. Concomitante a esta visão sulfurosa dos professores existe a visão idílica dos alunos, crianças e jovens que não aprendem apenas porque, à sua frente, encontram aquela gente destituída de qualquer traço de humanidade.

É curioso olhar para a forma como o actual governo vê a educação. Aparentemente oposta à dos Pink Floyd. Mas só na aparência. A escola a tempo inteiro, estatutos de alunos e professores, as regras práticas de vivência dentro das escolas têm apenas uma finalidade: não que o professor ensine e os alunos aprendam, mas que o professor, essa besta infernal de outros tempos, seja agora, devido à alquimia imposta pelo novo Estatuto, não um professor mas um gestor e um libertador da criançada, um emancipador que faça felizes os jovens, que se ponha à sua frente e cante com eles, ao som dos Pink Floyd: We don't need no education / We dont need no thought control / No dark sarcasm in the classroom / Teachers leave them kids alone / Hey! Teachers! Leave them kids alone! É talvez por isto que a senhora ministra, ao contrário do Procurador-Geral da República, não acha muito preocupante a violência contra professores.

O preocupante não é apenas o papel dissolutório da escola e a imbecilização acentuada das novas gerações, o preocupante é que estas políticas se inscrevem numa estratégia de destruição dos Estados a partir de dentro. O que está em causa é muito mais do que a educação, o que está em causa é a destruição das condições que possibilitam a existência de comunidades políticas nacionais. O que está em causa é a existência de um pseudo-cosmopolitismo disfarçado que visa destruir as comunidades nacionais para que alguns grupos possam dominar sem esses empecilhos que são os Estados. Em tudo isto não há inocência e, muitas vezes, o que parece oposto está muito longe de o ser.

Já a noite partiu

Já a noite partiu, mas o dia ainda não chegou com toda a sua claridade. Neblinas tecem um manto tão leve como se a cidade fosse um pássaro de asas de seda. Bom dia.

Árvores V

29/11/07

A Cidade Flutuante - 24. Não é uma cidade marítima

Não é uma cidade marítima,
nem há portos fluviais,
nem barcos,
nem velas,
nem cais.

Há um rio frágil
que caminha
entre ruas e quintais
e lá mais à frente desagua
num outro,
para o mar vai.

Uma cidade assim
adormece sossegada
quando a noite vem
e logo se levanta
se o Sol espreita
no velo da madrugada.

Tão lenta é a cidade,
nela caminham
homens e animais,
cães que uivam na noite,
gatos bravios sobre os telhados,
gente que chora
se a vida desaba
na água do rio,
para outro vai,
antes de se perder,
a vida e a água,
longe da terra
na névoa do mar.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Messias Martinho Oliveira

Mais um dos professores marcantes da Escola Secundária Maria Lamas que se reformou. Foi hoje o seu jantar de «despedida» da vida lectiva. Com ele estiveram muitos dos que o acompanharam ao longo de muitos e muitos anos. Um espírito aberto, tolerante e conciliador, um homem marcado pelos valores humanistas, pela tradição dos clássicos e uma alma generosa a quem muito devem os alunos de condição social mais frágil. Ensinou Português, mas formou homens e cidadãos. Homem comprometido com a vida comunitária, foi vereador da Câmara Municipal e exerceu múltiplos cargos no seu partido, o PSD. Mas o que mais me marca na sua pessoa é a sua atitude de abertura e de conciliação. Um homem da Beira, da mais alta aldeia portuguesa, que veio para Torres Novas e cá ficou a semear amizades e a merecer o reconhecimento da comunidade.

Chet Baker - My Funny Valentine


Chet Baker - My Funny Valentine
Colocado por socisum

A lei dos vínculos à função pública

A lei dos vínculos à função pública é tão retorcida que até o Presidente da República torceu o nariz e a mandou para o Tribunal Constitucional. O grau de degradação do Partido Socialista no governo é tal que consegue que os sindicatos e os partidos à sua esquerda aplaudam as decisões de Cavaco Silva.

Dissipam-se as neblinas

Dissipam-se as neblinas da manhã e o Sol ergue-se nas planícies do céu. Nas árvores, as folhas amarelas agarram-se, em desespero, aos ramos, como se o Inverno nunca chegasse. Bom dia.

Árvores IV

28/11/07

A Cidade Flutuante - 23. Adormeceram os heróis

Adormeceram os heróis
no frio da rua
e ali ficaram
sob o manto das folhas
que caíam,
quando a árvore
delas se despedia
para entrar na noite,
branca e nua.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Em torno do caso Luísa Mesquita

Duas reflexões sobre o “caso” Luísa Mesquita: 1. Em quem votam os portugueses quando votam para a Assembleia da República? Votam nos partidos políticos e não em pessoas. De certa forma os lugares pertencem aos partidos e qualquer elemento da lista partidária sufragada tem legitimidade política para exercer o cargo; 2. O que este caso veio trazer à luz foi, mais uma vez, o conflito entre a lógica do grupo e a lógica do indivíduo. O princípio que rege o grupo é a obediência. Luísa Mesquita foi expulsa não por divergência ideológica mas por desobediência ao grupo. A lição, mais uma vez, é clara: os partidos políticos não são lugares privilegiados para o exercício da individualidade. Dentro dos partidos, e o PCP não difere dos outros, o indivíduo só existe na sua especificidade enquanto o grupo achar que é útil.

O que se poderá pensar a partir daqueles dois pontos? O que é curioso e digno de ser pensado não é a legitimidade política, ou mesmo moral, do Partido Comunista, mas o princípio filosófico que subjaz à gestão das pessoas pelo partido. O que importa é a maximização da satisfação do interesse do grupo mesmo que isso implique o sacrifício da satisfação de alguns. Este princípio é utilitarista. Não é que, neste caso, o PCP seja diferente dos outros partidos ou de grupos como a Igreja Católica. O que pode parecer surpreendente é o facto do PCP actuar segundo um princípio moral proveniente de uma área claramente não marxista, a da filosofia utilitarista de Stuart Mill, Francis Hutcheson ou mesmo de David Hume.

O que este caso talvez demonstre é a existência de uma lógica própria dos grupos, comum a todos eles e que se rege pelo princípio de utilidade, onde a obediência é exigida em nome da maximização da satisfação dos interesses gerais do grupo. Lógica essa a que nem os partidos de esquerda nem as religiões de carácter soteriológico conseguem escapar.

Por outro lado, permite abrir uma possibilidade teórica para compreender a falência das experiências socialistas e comunistas: essa falência não residirá apenas, como pretende o pensamento liberal, no carácter marxista dos regimes, mas também na sua praxis utilitarista. Foi o princípio de utilidade que justificou a eliminação da liberdade de alguns em nome do bem-estar da maioria. O que talvez valesse a pena estudar seria aquilo que no chamado «materialismo dialéctico» se abre à contaminação pelo princípio de utilidade e que o transforma não numa teoria da libertação, mas numa teoria da justificação da eliminação da liberdade.

Edith Piaf - Non je ne Regrette Rien


Edith Piaf - Non je ne Regrette Rien
Colocado por INDIEN94

Eis a hora

Eis a hora em que o Sol se ergue na linha do horizonte. Um império de luz e calor vem ao mundo e um poder sem limites cai sobre os mortais. Bom dia.

Árvores III

27/11/07

A Cidade Flutuante - 22. Contei todas as janelas que havia

Contei todas as janelas que havia
naquelas ruas por onde passava
e assim tracei rotas,
descobri caminhos,
um mapa veio-me pelos dedos.

Já não passo nas ruas que me viam passar.
Salitradas, as paredes caíram
e nos escombros há gatos fanados,
papéis ardidos
e um rumor de anjos
e de fantasmas que choram,
como se fossem vento
ou o leve bater das penas ao cair.

Se conto,
conto só os dias que passaram
desde que contava as janelas que havia
nas ruas por onde passava.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

John Ford - The man who shot Liberty Valance

Claro que o castelhano estraga um pouco a sequência, mas John Wayne e James Stewart estão acima da confusão das línguas.

A situação em França

A situação em França, nomeadamente nos arredores de Paris, continua explosiva. A paz pública é tão frágil que um acidente lamentável pode dar azo a grandes distúrbios. Estamos perante duas culturas. Mas que culturas serão essas? A francesa e a dos imigrantes? Ou a dos jovens e a dos adultos? Ou a dos ricos e a dos pobres? Ou a mistura explosiva das várias possibilidades?

A expulsão de Luísa Mesquita

A expulsão de Luísa Mesquita do PCP pouco me comove. Ninguém é obrigado a pertencer ao clube, mas quem pertence deve saber onde está e que terrenos pisa. Curioso é que Luísa Mesquita passa, em pouco tempo, de bestial a besta, até parece um treinador de futebol campeão há duas épocas e agora chicoteado. Seja como for, a coisa é irrelevante. Um caso destes, há muitos anos atrás, seria um castigo duro e um drama pessoal para a pessoa expulsa, hoje não passa de um aviso para dentro do grupo. No fundo, ninguém sai honrado.

Minisciente de Luís Carmelo

Nesta deambulação semanal pela blogosfera vamos hoje visitar o blogue de Luís Carmelo, Minisciente. Para começar diga-se que é um blogue voltado para a literatura e que possui um projecto de pré-publicações com uma série de editoras: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Cotovia, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.

Quando cheguei hoje ao blogue, encontrava-se lá um post de pré-publicação de um livro de A Esfera das Letras, A cozinha italiana de Augusto Gemelli, da autoria do próprio Gemelli. Estes posts apresentam, em pré-publicação, um pequeno excerto do livro. Logo a seguir deparamo-nos com outra rubrica habitual do blogue, Cerveja e Literatura e vemos uma fotografia do Alexandre O’Neill a encimar um poema do seu livro De Ombro na Ombreira. Para além de outros textos do autor do blogue, descobrimos as suas crónicas no Expresso online, na rubrica Episódios e Meteoros. Tudo isto e ainda mais no Minisciente, de Luís Carmelo.

Passam os carros

Passam os carros ainda tímidos, presos aos espectros que a noite consigo sempre traz. No céu, um primeiro alvor, uma ameaça de luz a incendiar o reino das trevas. Tudo está já decidido: a manhã triunfará. Bom dia.

Árvores II

26/11/07

A Cidade Flutuante - 21. Desavindo de mim

Desavindo de mim
sento-me num banco verde
daqueles que há
perdidos pelo jardim.

Não procuro o sossego
nem oiço da rua o tumulto,
é apenas um castanheiro
que ergue os ramos
e fala.
Fala dos deuses
que aqui estiveram
e dos peixes do rio
e dos barcos
que um dia vieram
e partiram
para nunca mais
se ouvir a restolhada
dos remos sobre as águas.

Sentado num banco de jardim,
daqueles pintados de verde,
oiço-me cansado
e desavindo de mim.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Arvo Part - Du Credo (ext.) - Hélène Grimaud

Arvo Part. Ext. Du Credo.


Helene Grimaud
Colocado por MELMOTH

O Dr. Soares e o viranço à esquerda

O Dr. Mário Soares deu uma entrevista e, entre as várias coisas que disse, sugeriu que o governo do Engenheiro Sócrates deveria governar um pouco mais à esquerda. Nem me apetece comentar. Prefiro estes versos de Rainer Maria Rilke:

Tu és o pobre, aquele que não tem nada,
tu és a pedra que não tem repouso,
tu és o leproso por todos repudiado,
vagueando em torno da cidade com o chocalho.

Porque nada é teu, como o que é do vento,
e a tua glória mal cobre a nudez;
a roupa usada por um órfão consegue
ser mais deslumbrante e ao menos é sua.

Apuleio - O burro de ouro

A Livros Cotovia continua a sua excepcional colecção de traduções de clássicos da literatura greco-latina. Depois de Homero (Ilíada e Odisseia), de Ovídio (Arte de Amar, Amores e Metamorfoses), de uma colectânea de Poesia Grega e de Petrónio (Satyricon), chegou a vez de Apuleio e o seu O burro de ouro.

O tradutor é Delfim Leão, autor da excelente tradução do Satyricon, que assina também a introdução. Estas duas obras, Satyricon e O burro de ouro, são aquelas que, no âmbito da literatura clássica, mais se aproximam do chamado romance moderno, isto é, do romance que descende do D. Quixote de Cervantes.

O melhor será acompanhar a estranha metamorfose do jovem Lúcio e as suas múltiplas aventura. Entre o erotismo e um certo gnosticismo, o livro parece adequar-se perfeitamente ao gosto contemporâneo, tão interessado em sexo e viagens iniciáticas. A edição, aliás como a das outras obras, é esmerada e o livro acaba por ser, para além de uma magnífica obra, um belo objecto.

Tudo é já tão claro

Tudo é já tão claro, as ruas, os carros que passam, as pessoas que chegam. A tudo um Sol violento acorda e ilumina, a tudo o Sol queima. De tão secas, as terras rosnam pela manhã. Bom dia.

Árvores I

25/11/07

A Cidade Flutuante - 20. Tudo se desvanece

Tudo se desvanece
se quero recordar.

Vêm trevas,
ruas cariadas,
desejos esquecidos.
Vem a tua mão
de dedos brancos
para mim estendidos.

Vem tudo o que não quero,
o sol da tarde,
a luz que cega,
a pedra que mata,
e o rio que passa
entre margens de erva
e ruas de prata.

Só não vem
o fulgor do coração
num sangue que arda.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Grande e velho Bernardino Soares

Querem uma prova do grau de degradação a que chegou o ensino em Portugal? Então, leia-se com atenção e proveito esta notícia da Lusa. O jovem centrista (quer dizer, militante da Juventude Centrista, organização do CDS dedicada à puerícia) veio “apontar (nunca ensinaram o menino que não se aponta, que é feio) com frontalidade” aqueles que no período revolucionário andaram metidos em “sequestros e incêndios às sedes do CDS-PP logo após a revolução de Abril de 1974 e que continuam hoje no activo”.

Entre os malvados e para além das FP 25 de Abril que não existiam na altura, encontrar-se-ia o chefe do grupo parlamentar comunista, Bernardino Soares, na altura com 4 anos. O jovem chefe da secção de puericultura do PP ou conhece pouco a história política de 3.ª República ou não sabe fazer contas, aliás o mais provável tendo em conta a incapacidade genética dos portugueses para a Matemática. Incapacidade essa que não discrimina ninguém em função da cor política ou da origem de classe, para falar de forma mais marxiana.

Confesso, porém, que estou do lado do jovem Pedro Moutinho, o chefe da tal secção de puerícia do Dr. Portas e frontal emissor de tamanha idiotice. Bernardino Soares mesmo quando jovem pareceu-me sempre um velho. Portanto, não será de estranhar que com 4 anos já aparentasse a idade de 36 que deve ter agora. Sendo assim, é muito natural que o menino Bernardino andasse a brincar com o fogo e a prender crianças centristas na casa de banho do infantário. Mas mal saía do infantário, ia logo sequestrar democratas-cristãos e incendiar sedes do CDS (o PP também não existia, ao contrário do que dá a entender o nosso pequeno condottiero). Era o tempo da revolução e o pessoal tinha de se divertir com alguma coisa, e o melhor era mesmo fazer uns sequestros e incendiar umas sedes...

25 de Novembro

Faz hoje 32 anos que acabaram as ilusões revolucionárias. O 25 de Novembro de 1975 orientou “definitivamente” o país para o Ocidente e para a democracia representativa. Para mim, naquela altura, foram dias de desesperança revolucionária. Ainda não tinha vinte anos e julgava, pelos 19 meses de revolução, que tudo era possível e que esse possível era o melhor que poderia acontecer. Não, não era tudo possível. Tão pouco o possível que eu queria era grande coisa, como, pouco depois da ressaca, iria descobrir. Das cinzas da ilusão revolucionária, nasceu uma nova ilusão, a de nos tornarmos europeus e ricos e civilizados. E agora, que ilusão ilumina o caminho dos portugueses?

A tarde chegou

A tarde chegou envolta no sol que anuncia o Inverno. São assim os domingos, tristes domingos num país tão triste, tão cansado, tão chroso da partida... Seja como for, boa tarde que é como se se dissesse bom dia.

Da luz e das trevas VII

23/11/07

A Cidade Flutuante - 19. Não sou livre na minha cidade

Não sou livre na minha cidade,
os olhos estão presos ao chão
e os passos pesados
deixam marcas de ferro
em ruas negras de alcatrão.

O vento açoita-me as faces
e tudo em mim é silêncio,
breve memória,
um gosto de dor,
uma ferida a sangrar,
o prazer d’abrir discórdia.

Não sei o nome que deram ao rio,
mas ele aqui passa,
tranquilo e lento
como se sorrisse
e assim um adeus
lhe nascesse nos braços.

Rumorejam as tardes na minha cidade
e eu sonho com Ítaca rodeada de mar,
as brancas mãos de Penélope
que tecem,
tecem o manto
onde a noite me irá amortalhar.

Não sou livre na minha cidade.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Jornal Torrejano, 23 de Novembro de 2007

Ooops! Quase que me esquecia da edição do Jornal Torrejano. A coisa não anda lá muito católica. Na primeira página da edição online, temos a proposta do Bloco para uma derrama diferente. É uma linguagem esotérica, mas depois percebe-se. A Golegã cria grupo de precenção e defesa do Rio Almonda e, ainda, a apresentação pelo PS do "plano Mateus".
No domínio da doxa, que é como quem diz da opinião, as hostilidades são abertas pelo icárico cartoon de Hélder Dias. José Ricardo Costa, certamente afectado por uma semana de aulas, traz a Dulcineia (quando se chega ao D. Quixote é porque a coisa está desesperante), Miguel Sentieiro, outro afectado por mais uma semana de escola, traz A Percentagem Média Europeia, Santana-Maia Leonardo, que já se livrou há um ano da escola, escreve sobre A OTA e os otários, Carlos Henriques, Arménios ingénuos. Este blogger,´que já não diz coisa com coisa, escreve O mordomo e os criados de quarto.
Bom, acabe-se o post antes que se faça noite cerrada. Para semana haverá mais, se nada em contrário o contrariar.

A inveja e o Dr. José Miguel Júdice

Segundo consta, o Tribunal de Contas considerou milionários os vencimentos dos gestores de empresas públicas dos Açores, vencimentos esses que não chegam aos 5000 euros mensais. Na realidade, uma sovinice da Região Autónoma. As considerações do Tribunal deram origem a uma notícia no Diário de Notícias e a um comentário de José Miguel Júdice no Público, de hoje. O Dr. Júdice não se coibiu de referir a proverbial inveja portuguesa, no naco de prosa que se transcreve: «A minha revolta vai para uma cultura insuportavelmente demagógica, irrealista, arcaica e absurda, que caracteriza com profundidade a alma portuguesa e que, no fundo, tem na inveja a sua origem genética.» Este comentário surge como reacção à consideração pateta daqueles honorários como milionários. Não hesita mesmo em comparar a situação nacional ao igualitarismo totalitário da China de Mao.

De facto, tudo uma pelintrice e um mundo de invejosos e eu sinto um enorme enlevo com a revolta do comentador com a nossa cultura demagógica, irrealista, arcaica e absurda, cuja origem genética está na inveja. Seguindo a lição do Professor Gil, o ilustre causídico, como se diria de forma arcaica, ergue a sua voz contra a inveja nacional, mas esquece-se de esclarecer se a inveja portuguesa é genética, isto é, está inscrita nos nossos genes ou se, em alternativa, foi a própria sociedade que gerou uma cultura de inveja.

Esclarecer este pormenor não é despiciendo. Porque se a inveja faz parte do ADN luso, então não há nada a fazer, nem vale a pena bramar contra ela, nem aqueles que bramam, Dr. Júdice incluído, são, por isso, menos invejosos que os outros. Neste caso, o Dr. Júdice deveria estar calado, pois não teria autoridade, nem, tão pouco, valeria a pena estar a perder tempo e latim a combater ideologicamente um defeito genético. Deveria, pelo contrário, investir na descodificação do genoma do homo lusus, digamos assim, para o tratar da avaria genética.

Mas se o caso da inveja nacional não for genético, mas adquirido, o problema então será outro. Em vez de bramar contra essa arcaica e demagógica inveja, o nobre cavaleiro deveria perguntar: por que razão os portugueses são, ou se tornaram, invejosos? Eu sei, até o professor Gil se esqueceu da questão. Mas a questão não deixa de ser pertinente. Não assentará a inveja nacional num sentimento de impotência perante injustiças arcaicas e absurdas? Não terão sido a distribuição dos bens sociais e do reconhecimento entre portugueses, desde sempre, injustos? A inveja não será o sintoma tenebroso de uma prática social não menos tenebrosa, onde uns poucos acabam por se apropriar do contributo de muitos?

Acusar os portugueses de invejosos e justificar essa característica num qualquer desejo igualitário é uma forma de distorcer o problema. Não foram longos séculos de submissão dos fracos aos fortes, de uma impiedosa distribuição dos bens, de uma prática sistemática de protecção de alguns e desprotecção de muitos, que gerou a inveja, gerou a inveja mais reles e rasteira? A inveja, contrariamente ao que o Dr. Júdice parece pensar, não é uma característica lusitana pelo facto de sermos lusitanos. A inveja é o sintoma aparente de uma história prolongada de injustiças sociais, é a dor que revela o cancro. É feia esteticamente? É. É dolorosa? É. Mas o cancro que a gerou é muito mais feio, perigoso e doloroso.

Jacques Brel - Les Bourgeois

Jacques Brel Les Bourgeois 1962 engl.sub
Colocado por lightning49

Um súbito nevoeiro

Um súbito nevoeiro caiu na limpidez da manhã. Tudo é agora uma fantasmagoria, as casas, os carros, os sonhos que os mortais ainda sonham. Bom dia.

Da luz e das trevas VI

22/11/07

A Cidade Flutuante - 18. Olho a cidade

Olho a cidade
e vejo sombras,
mas logo partem;

são assim,
tão breves,
tão suaves,
tão assustadas,
as sombras;

pesam como pedras cansadas.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Que raio de juízes os do Tribunal de Contas

Uma das fábulas correntes é a da superioridade da gestão privada sobre a gestão pública. Parece que o Tribunal de Contas está pouco actualizado sobre o moderno pensamento económico (ver SIC). Então, não veio agora dizer que a gestão privada dos hospitais contribuiu mais para o défice da Saúde do que a gestão pública. Mas estes juízes vivem em que mundo? Mesmo sendo verdade, não o deviam dizer. Os privados são melhores em tudo e quem disser o contrário é um idiota chapado. Os senhores juízes do Tribunal de Contas façam o favor de ler o Milton Friedman e o Frederich Hayek, para além do Professor Espada e do José Manuel Fernandes, claro.

Bolero de Ravel no filme «Les uns et les autres»

Na morte de Maurice Béjart.

Bolero 2
Colocado por audiodelux

Versão artística do "¿Por qué no te callas?"

Notável combinação artística. Via gattopardo.

Vida Breve - Quase ao lado.

Mário Soares tem mais inteligência política no dedo mindinho do pé esquerdo do que José Manuel Fernandes em toda a importante extensão da sua ociosa massa cinzenta. Ainda hoje, octogenário, trôpego e patareco, bastam a Soares duas ou três larachas para fazer mais pela Galp e por Portugal do que o director do Público fez em décadas de sonhos delirantes de esplendor neorepublicano.

Isto, e também as pequenas diferenças de análise quanto à guerra no Iraque, seriam suficientes para que uma pessoa normal agradecesse a agudeza que ainda resta ao nosso ex-presidente da república, lhe pedisse desculpas pelo incómodo e o deixasse em paz. Mas José Manuel Fernandes não é uma pessoa normal.

A inveja, o ressentimento e a má-fé fazem parte do caldo de cultura maoísta em que se movem alguns dos nossos líderes de opinião.


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Não resisti a este post do Vida Breve. Pode clicar aqui para continuar a ler o resto. Claro e instrutivo.

Estou com Scolari

Se achei absolutamente inaceitável aquela história do soco que parece que foi mas não foi, agora estou do lado do seleccionador nacional. Esta qualificação foi um verdadeiro feito. As pessoas esquecem-se de que já não há Figo, Rui Costa, Pauleta, Fernando Couto, etc. Só há dois jogadores excelentes, Cristiano Ronaldo e Deco. Um não joga e outro está longe da melhor forma. O resto são bons jogadores, mas como eles há muitos por essa Europa fora. O que seria expectável, tendo em atenção o nosso valor e a nossa história futebolística, era a não qualificação. Esta qualificação deve-se ao talento de Scolari. O resto é a habitual visão hipertrófica das virtudes futebolísticas pátrias.

Tempo húmido

Tempo húmido envolto em véus matinais de nevoeiro. As luzes da rua apagaram-se e tudo se tornou difuso, um mescla cinzenta a invadir a cidade, a entranhar-se na carne, a dilacerar os cérebros ensonados, ainda mal convencidos de que o dia chegou.Bom dia.

Da luz e das trevas V

21/11/07

A Cidade Flutuante - 17. Se Dezembro vier

Se Dezembro vier,
entre sol e nuvens,
a cidade grita
e logo se cala.

Na casa que foi tua,
a porta fechou-se
e a janela caiu,
enquanto o sol espreitava
e a noite descia.

Era manto de cristal,
era pedra de ardósia,
era o teu nome,
em mim já não floria.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Jean Ferrat - Potemkine

Enfim, um vídeo que é uma espécie de espelho anacrónico da França em combate contra o Zeitgeist. Veremos que tempo é o tempo que sairá vitorioso lá pelas terras de Jean Ferrat.


Ferrat Jean - Potemkine
Colocado por Salut-les-copains

O Procurador-Geral e a Ministra da Educação

Segundo a Lusa, o Procurador-Geral, Pinto Monteiro, terá acusado a ministra da Educação de “minimizar a dimensão da violência nas escolas”. Para Pinto Monteiro a violência escolar é prioritária. Cite-se o que escreve a Lusa: «O PGR garante mesmo que vai preocupar-se com “cada caso de um miúdo que dê um pontapé num professor ou lhe risque o carro”, por não querer que haja “um sentimento de impunidade” nas escolas, nem que “esse miúdo se torne um ídolo para os colegas”. “Quanto à escola, ao nível penal, deve existir tolerância zero. Mesmo que seja um miúdo de 13 anos, há medidas de admoestação a tomar. Se soubessem a quantidade de faxes que eu recebo de professores a relatarem agressões...”

Não é por acaso que surge o conflito entre estas duas personagens. Pinto Monteiro percebeu claramente onde está o perigo, percebeu que é preciso não pactuar com a indisciplina, percebeu que é necessário dar um forte sinal para a sociedade, onde se incluem os alunos e as suas famílias. Pinto Monteiro parte de uma análise desapaixonada da realidade e não tem ilusões sobre a putativa inocência dos jovens.

A ministra da Educação parte de outros pressupostos, os mesmo que a levaram a degradar a imagem dos professores, os mesmos que conduziram a um Estatuto absolutamente persecutória dos docentes, os mesmos que suportam um estatuto do aluno fundado na irresponsabilidade deste. O pensamento objectivo do Ministério da Educação é claro, se os alunos não querem aprender, se não são disciplinados, se não lhes apetece ir às aulas, se são violentos, em última análise terão as suas razões, sendo a primeira e mais fundamental os professores. A minimização sistemática da indisciplina e da violência dentro das escolas por parte da ministra e de outros agentes faz parte de um discurso coerente que vê o aluno como uma vítima do despotismo, da incompetência e da incapacidade de motivar dos professores.

Pinto Monteiro percebe que há um problema (os exemplos no estrangeiros são tantos) e quer atalhá-lo. A senhora ministra nega-o, como nega a responsabilidade dos alunos na aprendizagem e das famílias na conduta dos seus filhos. Essa negação faz parte da sua estratégia para justificar o desprezo com que tem tratado os seus colegas de profissão (embora de um nível absolutamente inferior, não se pense que…) e as medidas que tem tomado que acabam, na prática, por favorecer os comportamentos irresponsáveis e uma cultura adversa à aprendizagem. Uns querem apagar os fogos, outros parecem ter prazer em ateá-los.

A névoa envolve a cidade

A névoa envolve a cidade, esconde os céus, quebra a luz dos candeeiros. É como se o mundo, envolvido na sonolência da manhã, se recusasse a acordar e mostrar a verdade do que aí vem. Bom dia.

Da luz e das trevas IV

20/11/07

A Cidade Flutuante - 16. Uma tremura de vento

Uma tremura de vento
e tudo baloiça e se desprende.

Nos troncos há musgos
e palavras gravadas
e corações,
onde o amor
eterno se tornou.

Se fora apenas vento,
não haveria ramos ou folhas
onde do amor
restasse frágil um lamento.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Eugénia Melo e Castro / Adriana Calcanhoto - Bem querer/ Futuros amantes

POPortugal, um blogue de Eugénia Melo e Castro

Eu sei que sou suspeito. Sempre gostei de Eugénia Melo e Castro. Não sei se gosto mais da voz, da forma de cantar, daquilo que canta ou do ar de quem canta. As aparências frágeis sempre me tornaram volúvel e torceram-me as capacidades de avaliação. Admitida a parcialidade, considere-se que talvez seja a combinação de tudo aquilo que me inclina para a ouvir e gostar de a ouvir. Ela também sabe que é assim que cativa o auditório e joga com isso na relação que entretece, na lonjura e no desconhecimento, com aqueles que a ouvem. Tudo isto vem a propósito do POPortugal, um blogue de Eugénia Melo e Castro. O que há por lá que mereça visita? Há fotografias, vídeos, referências aos discos, restos da vida vivida, a relação com o Brasil e, acima de tudo, um ar feminino onde todas essas coisas desaguam e ganham sentido, um ar que parece a emanação do desejo de cantar. Uma visita ao POPortugal, um blogue de Eugénia Melo e Castro, é sempre um prazer.

Derrama-se pela terra

Derrama-se pela terra a água vinda dos céus. Enquanto os mortais dormem, os deuses velam para que depois do seco venha o húmido, do quente venha o frio, das trevas venha a luz. Amanhecerá dentro em breve. Bom dia.

Da luz e das trevas III

19/11/07

A Cidade Flutuante - 15. Tílias, castanheiros

Tílias, castanheiros,
oliveiras sem fim.

Quando vou pela cidade,
escuto rumores,
pequenas palavras vêm
poisar-me no corpo
e eu mal as oiço.

São ervas ou flores ou árvores;
ao morrer, chamam por mim.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Colleen - Video at brainwashed

Manuel António Pina - Interesse público

Nunca serão suficientemente louvadas as pinças deontológicas com que jornais e TV pegam em casos criminais que envolvem muitos zeros. E seria tema interessante para uma tese a volubilidade de conceitos jornalísticos como o de "interesse público", que este fim-de-semana fez com que tantos jornalistas corressem para a porta de um tribunal onde eram interrogados uns árbitros e uns dirigentes do futebol regional, suspeitos de câmbio de 500 euros pelo resultado de um jogo (neste momento, já todos os portugueses estão informados sobre o nome, idade, estado, profissão e morada de cada um deles) e ninguém se tenha interessado minimamente por saber quais são as "grandes empresas" que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais acusou de estarem envolvidas em crimes de fraude fiscal, provavelmente de valor superior (digo eu, que tenho uma imaginação perversa) a 500 euros. Bem tentou o secretário de Estado espicaçar a curiosidade de jornais e jornalistas com a lista das "1000 maiores empresas portuguesas" e bem o presidente da CIP deixou cair, como as senhoras pudicas de antigamente deixavam cair o lenço, a pista das construtoras civis. Em vão. O "interesse público" da semana era o Lamego-Cinfães. E a notícia que o resultado foi, mais euro menos euro, 2-2. [Manuel António Pina, Interesse público, Jornal de Notícias, 19/11/2007]

O massacre falhado

A polícia alemã conseguiu evitar um novo massacre numa escola. Dois jovens alunos planeavam para amanhã uma encenação germânica de uma peça que parece ter êxito nos EUA, mas, agora, também na Europa. Um dos jovens, ao ser descoberto, suicidou-se. Alegavam uma qualquer frustração como motivo do seu acto.

O que merece ser pensado não são os casos pessoais, a natureza psicopatológica dos comportamentos individuais, mas o tipo de sociedade que permite e, segundo tudo leva a crer, incentiva este tipo de comportamentos. Quando me refiro à sociedade não me reporto apenas às suas dimensões política, social e económica. Reporto-me também à esfera ideológica, ao tipo de senso comum que cresceu à luz da divulgação do conhecimento científico, nomeadamente da psicologia e da sociologia, acompanhado pela proliferação de produtos da indústria cultural.

Subitamente, parece que nada funciona no maravilhoso mundo novo das sociedades liberais. Uma pergunta, para finalizar: Por que motivo é a escola escolhida para este tipo de encenações?

A moda dos assaltos

Hoje houve duas tentativas de assalto a dependências bancárias. Os roubos das caixas Multibanco tornaram-se um desporto sem controlo. Lentamente, está a criar-se a sensação de que estes assaltos são possíveis e realizáveis com elevada expectativa de êxito. É com estes “pequenos” nadas que o ambiente de uma democracia se corrompe. Esta vaga de assaltos que quererá ela dizer da situação social do país? E da Justiça? E do sentimento de segurança das populações? Há, entre a classe política, a convicção de que a pertença à União Europeia impede qualquer sonho autoritário, mas isso será verdade?

Vem a manhã

Vem a manhã carregada de cinza, nuvens a esconder o Sol, a desmaiar a luz. O chão das ruas está molhado, sinais de chuva a fazer renascer a esperança da terra. Bom dia.

Da luz e das trevas II

18/11/07

A Cidade Flutuante - 14. Vem pelo mês de Março

Vem pelo mês de Março
um vento sombrio,
a chuva cai em bátegas de pedra
sobre a cal das paredes
e a água desliza em turbilhão,
o rio a sustém.

Ouve-se sirenes
e uma agitação de homens e máquinas
cresce pelas ruas,
tinge o ar,
deixa pegadas no chão.

É uma cidade flutuante,
Março a traz no seio,
com cuidado a carrega,
e quando nasce
há metais em combustão,
um barulho de barcos
sob as pontes
e nas colinas, ao poente,
ocultam-se os deuses
na solidão.

Em silêncio, a cidade mergulha
e nas águas de Março,
tocada pelo vento,
ergue as asas e flutua.

[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]

Falácias educacionais – 4. O novo papel do professor

Um dos aspectos mais destacados no processo que está a destruir a escola pública ocidental prende-se com o chamado “novo papel dos professores”. Este novo papel é uma criação dos políticos e dos ideólogos provenientes de áreas como a psicologia ou as ditas ciências da educação. Para ilustrar o carácter falacioso deste pensamento, mobilizo algumas ideias retiradas da crónica do psiquiatra Daniel Sampaio, no Público (no suplemento Pública) de hoje.

A prosa de Sampaio é muito interessante pela forma como apresenta aquilo que são escolhas e decisões políticas como se fossem uma inevitabilidade da natureza, como se tudo decorresse de leis gerais que a ciência conhece, mas a que o homem terá de, como à lei da gravidade, se submeter. Há nesta prosa, como no discurso ideológico que a sustenta no sistema de ensino, uma evidente falsificação da realidade.

Diz Sampaio: «as mudanças sociais tendem a atribuir à escola um novo conjunto de funções». Esta asserção é falsa. Não são as mudanças sociais que tendem atribuir o quer que seja. As mudanças sociais ocorrem e mais nada, não têm vontade, nem capacidade para tomar decisões. O que se passa é que os políticos, certos grupos de psicólogos, “cientistas da educação”, etc., decidiram atribuir à escola um novo conjunto de funções e subverteram o papel da escola, que desde a Academia de Platão é o mesmo: instruir.

Diz Sampaio: «além de instruir, os professores são chamados a apoiar, socializar ou encaminhar para outros contextos alunos com histórias de vida, expectativas e capacidades muito diferentes». A construção da frase leva a pensar que é agora, e só agora, que os professores além de instruir, apoiam, socializam e encaminham alunos para outros contextos. Mais uma vez a ideia representa uma falsificação da realidade. Os professores sempre fizeram isso, uns melhor outros pior, no âmbito da sua missão de instruir. O que se passa é que, perante a constatação da falência de muitas famílias, o Estado e os ideólogos da educação pretendem, na prática, que o professor substitua a família e as estruturas sociais de apoio aos jovens, caso a família seja incapaz, e, em vez de instruir, faça aquilo que os outros não podem ou não querem. A realidade é que os agentes políticos nem querem responsabilizar as famílias pela educação das suas crianças, nem querem assumir esse papel de substituição pela criação de estruturas de enquadramento adequadas, nem querem apoiar as organizações da sociedade civil que as façam. A escola que o Professor Sampaio e a classe política projectam já não é uma escola, mas cada vez mais uma enorme instituição que combina as valências do hospital psiquiátrico, com terapias individuais e de grupo, o reformatório e a colónia balnear. Sublinhe-se, porém e ao contrário do que diz Daniel Sampaio, não são as mudanças sociais que estão a impor este tipo de instituição «escolar», mas homens e correntes de pensamento educacional concretos. Têm nomes. E esta deriva não é uma inevitabilidade da natureza, é uma opção deliberada.

Diz Sampaio: «Os próprios professores perderam o papel cultural de que outrora eram exemplo.» Quais os motivos? 1. «Ao não produzirem o conhecimento que são chamados a reproduzir»; 2. «e ao confrontarem-se com novas fontes de informação alternativas à escola (televisão, Internet, culturas juvenis)». Mais uma vez há falsificação da realidade. Os professores do ensino básico e secundário nunca foram produtores de conhecimento e sempre reproduziram conhecimento que outros produziam e ainda outros seleccionavam. Não é por isso que os professores perdem papel cultural. Também é falsa ideia de que só agora, com a televisão, Internet, culturas juvenis, existem fontes de informação alternativas à escola. Sempre houve. Mas o mais importante está noutro lado.

Se o professor Daniel Sampaio, apesar de ser professor, soubesse alguma coisa do que faz um professor nos ensinos básico e secundário não escreveria este pedaço de prosa, súmula preciosa de tudo o que há de ocioso na ideologia que domina actualmente a educação: «torna-se imperioso modificar o seu papel tradicional e abrir caminho a uma nova maneira de estar, muito mais coordenador de pesquisa e gestor de grupo de trabalho do que transmissor expositivo de manual para aluno médio». Para aprender a ler, escrever e contar, para apreender os conceitos estruturais das várias áreas disciplinares, para aprender a utilizar as capacidades racionais que a natureza pôs ao dispor do aluno, este não precisa de um “coordenador de pesquisa” nem de um “gestor de grupo de trabalho” (repare-se bem na concepção burocrática que emana do próprio discurso de Daniel Sampaio), mas de professores, que não sendo criadores de saber (como poderia, por exemplo, um professor do 1.º ciclo criar saberes para os seus alunos? Inventava um novo alfabeto? Propunha novas geometrias ou criava uma gramática alternativa?) tenham uma sólida formação científica, sejam dotados de capacidade de comunicação e de compreensão do outro. O professor terá de ser um mestre nas áreas que ensina, terá de estar tão à vontade nelas como o peixe na água, pois só assim será capaz de ter alguma paixão pelo seu trabalho e só assim a conseguirá transmitir aos seus alunos.

Mas quais as consequências sociais das proposta de Sampaio e do Ministério da Educação? São muito simples: os alunos da escola pública (gente remediada e pobre ou do interior do país) não têm direito a terem professores, mas “coordenadores” e “gestores”, não têm direito a aprender, não têm direito a tentar chegar às melhores universidades e aos melhores cargos na sociedade; os alunos de «boas» famílias das grandes cidades, esses pobres desgraçados, não têm, por seu turno, o direito a terem à sua frente “coordenadores” e “gestores” de aprendizagem e têm de suportar horríveis professores que ensinam e os obrigam a aprender de forma tradicional e, sendo assim, estão condenados, coitados, a reproduzir a situação da sua família: ir para as melhores universidades, ocupar os melhores cargos na sociedade, ter acesso ao reconhecimento político, social e económico devido aos cargos que desempenharão.

Veja-se como este discurso sobre a educação se constrói sobre premissas falsas, como todo ele é falacioso, como não resiste a qualquer análise que se faça, por mais simples que seja. E, no entanto, ele sai vitorioso, é extremamente agressivo. Mas isso não será o sinal da existência de grandes interesses por detrás dele?

O cinismo das elites sociais portuguesas, mesmo as de esquerda, é arrepiante.

Lá fora

Lá fora, suspeita-se um frio acerado protegido pela capa que, ao desprender-se do astro, cai, tão ao de leve, sobre os frágeis ombros da cidade. Ainda não foi agora que chegou a revolta dos meteoros. Bom dia.

Da luz e das trevas I

17/11/07

A Cidade Flutuante - 13. Porque caducam as folhas em teu coração?

Porque caducam as folhas em o teu coração?
Frágil esquadria a que desenhou
ruas e praças e te deu um nome
e a mim uma vontade de reter
as tuas em minhas mãos.

Ali vejo uma varanda de ferro
e a ferrugem pesa sobre quem passa
e não sente o tempo que vai,
e ele vai todo naquele pó que cai.

Abrem-se vidraças
e o vento toca as folhas
e tudo suspira na cidade,
fantasmas, almas perdidas,
gente sem corpo,
as esperanças corroídas.

Abro a minha vidraça
e há ferrugem em meu coração.
Se te vejo ao longe,
esqueço-me do teu nome
e nada em mim quer
a tua em minha mão.

[JCM. A Cidade Flutuante, 1993/2007]

O Abrupto, a Antena 2 e a ditadura do palavreado

José Pacheco Pereira, no Abrupto, faz um comentário ácido, «COISAS DA SÁBADO: TEMOS QUE SER 25% PORTUGUESES», ao sistema de quotas “nacionais” na cultura. Mas aquilo que agora me interessa é a asserção seguinte: «Na Antena 2, para encher os 25% lá terá que se intercalar, no meio do palavreado que caracteriza hoje a estação, Bach e Mahler com Joly Braga Santos e Luís de Freitas Branco.» Pior do que os 25% de música de Joly Braga Santos e de Luís de Freitas Branco, e a coisa não é exaltante, é o palavreado, a ditadura do palavreado. Já fui um indefectível da Antena 2, mas hoje sinto-me expulso da casa. Não há paciência para tanta conversa fiada. Quem frequenta a Antena 2 não precisa que o entretenham com conversa. Se quer informação sobre música, ou outra coisa qualquer, sabe onde a há-de ir buscar. Quer ouvir música sem ter de se levantar para mudar o CD, aceita que, quando liga o rádio, o guiem pelo universo da música erudita, dispensa, porém, palavras a não ser as cantadas e mesmo essas só com conta, peso e medida. Já há tempos, o poeta Joaquim Manuel Magalhães se queixava do mesmo na “Actual” do Expresso. Penso que são muitos os ouvintes tradicionais da Antena 2 que afinam por este diapasão. Era altura de acabar por lá a ditadura do palavreado.

Kathleen Battle - Herbert Von Karajan

Num dia outonal, oiçamos as vozes da Primavera, embora Karajan esteja já bastante adiantado na estação do ano.


Kathleen Battle - Herbert Von Karajan
Colocado por midu92

Johann Strauss Voices of Spring (Frühlingsstimmen). Kathleen Battle soprano américaine sous la baguette magique de Herbert Von Karajan

Um frio cortante

Um frio cortante, um Sol escondido atrás das nuvens, uma luz esbranquiçada e indecisa, tudo sinais do tempo a mudar, talvez de um Outono que mal chega se entrega nos braços do Inverno. Bom dia.

Caligrafias de pedra VI