Do mistério da Trindade
Este comentário do Zé Ricardo ao meu post sobre o direito à blasfémia merece mais do que uma mera resposta na caixa de comentários. Merece uma elucidação do que eu disse e uma argumentação sobre a minha posição.
Em primeiro lugar, eu não digo “que na Europa as igrejas se deverão voltar a encher”. É o Zé Ricardo que mo atribui, mas eu digo outra coisa. Digo que “julgo ser útil e necessária a presença do Cristianismo no tecido social da Europa”, e digo também que “A Europa necessita que as igrejas se voltem a encher e a prática da moral cristã, transmitida pelos evangelhos e pela tradição, ganhe preponderância. Temo que a Europa, enquanto lugar de liberdade e de razão, sem esses valores desapareça.” O verbo dever implica a ideia de um imperativo. Eu apenas refiro que seria útil e necessário para a preservação de uma certa Europa a presença do Cristianismo na sociedade e que as igrejas se voltassem a encher. Não digo que isso vá acontecer ou que tenha necessariamente de acontecer, por um decreto do destino ou da providência. Mas terá de acontecer para aquela Europa ser preservada.
Em segundo lugar, eu não preciso de ser crente católico para advogar essa necessidade. Posso ser ateu ou agnóstico, posso mesmo ser budista zen, e compreender e afirmar a necessidade dos valores cristãos para o funcionamento de uma certa ideia de Europa, ideia essa que foi formada por esses mesmos valores (aliás, os pais fundadores da União Europeia, na altura CEE, eram todos eles cristãos). É um exercício puramente intelectual. Por isso, e contrariamente ao que o Zé Ricardo afirma, eu mesmo não indo à missa em Santiago ou em S. Pedro (aliás, igrejas onde fui muitas vezes à missa até aos meus 14 ou 15 anos), tenho toda a legitimidade intelectual para fazer um juízo sobre o decurso da história, aliás um juízo meramente analítico, para utilizar a linguagem de Kant.
Em terceiro lugar, eu não afirmo que essa Europa da razão e da liberdade se vá salvar. Digo apenas que para se salvar é necessário que o Cristianismo retome a preponderância no tecido social. E deixo subentendido que se isso não acontecer, então essa Europa da razão e da liberdade perecerá. Esta é a tese problemática e não a minha incapacidade para crer no mistério da Trindade. Será possível construir uma civilização fundada na liberdade e na razão se evacuarmos o Cristianismo? Eu acho que não (o que só pode ser discutível). Porquê? Porque a razão é impotente por si só para o fazer. O que a experiência histórica tem mostrado desde o tempo do Iluminismo, nomeadamente desde o sonho kantiano da autonomia da razão, é que a razão se abisma e se mostra impotente quando desligada de uma justificação transcendente (veja-se o século XX, veja-se as experiências totalitárias). Em segundo lugar, porque a liberdade tal como a compreendemos é o fruto do Cristianismo. Isto significa que a ideia de Europa que está em jogo é aquela onde a razão se funda na liberdade, isto é, na essência do Cristianismo. Ao evacuarmos o Cristianismo, evacuamos a liberdade e deixamos a razão à deriva. Assim lançada aí, a razão não tardará a procurar âncora noutro porto. Se este porto não é o da liberdade, então só pode ser o da servidão.
Em quarto lugar, eu não digo que o destino da Europa não seja a servidão. Não sei, não sou profeta, o futuro é para mim um lugar impenetrável. O que vejo no presente não me tranquiliza. Gostaria que os meus filhos e netos, e por aí fora, vivessem num mundo livre, mas esse meu desejo não passa disso mesmo, um desejo. O Zé Ricardo já sabe que a Europa não vai tornar a ser cristã (“Pois, é este o destino da Europa. Os netos, ao contrário dos avós, já não conseguem acreditar que 2+2=5. No mundo islâmico ainda acreditam.”), eu não tenho, como já disse, o dom da profecia. Aparentemente as coisas são assim, mas será que são? Será que o jogo terminou e o resultado está feito? Acreditar na liberdade significa acreditar, apesar das evidências, num mundo em aberto. Sei que a crença na liberdade é tão inverosímil quanto a crença na Trindade, provavelmente são até a mesma crença, e descubro mesmo que os mais insuspeitos defensores da liberdade afinal crêem no destino.
Em primeiro lugar, eu não digo “que na Europa as igrejas se deverão voltar a encher”. É o Zé Ricardo que mo atribui, mas eu digo outra coisa. Digo que “julgo ser útil e necessária a presença do Cristianismo no tecido social da Europa”, e digo também que “A Europa necessita que as igrejas se voltem a encher e a prática da moral cristã, transmitida pelos evangelhos e pela tradição, ganhe preponderância. Temo que a Europa, enquanto lugar de liberdade e de razão, sem esses valores desapareça.” O verbo dever implica a ideia de um imperativo. Eu apenas refiro que seria útil e necessário para a preservação de uma certa Europa a presença do Cristianismo na sociedade e que as igrejas se voltassem a encher. Não digo que isso vá acontecer ou que tenha necessariamente de acontecer, por um decreto do destino ou da providência. Mas terá de acontecer para aquela Europa ser preservada.
Em segundo lugar, eu não preciso de ser crente católico para advogar essa necessidade. Posso ser ateu ou agnóstico, posso mesmo ser budista zen, e compreender e afirmar a necessidade dos valores cristãos para o funcionamento de uma certa ideia de Europa, ideia essa que foi formada por esses mesmos valores (aliás, os pais fundadores da União Europeia, na altura CEE, eram todos eles cristãos). É um exercício puramente intelectual. Por isso, e contrariamente ao que o Zé Ricardo afirma, eu mesmo não indo à missa em Santiago ou em S. Pedro (aliás, igrejas onde fui muitas vezes à missa até aos meus 14 ou 15 anos), tenho toda a legitimidade intelectual para fazer um juízo sobre o decurso da história, aliás um juízo meramente analítico, para utilizar a linguagem de Kant.
Em terceiro lugar, eu não afirmo que essa Europa da razão e da liberdade se vá salvar. Digo apenas que para se salvar é necessário que o Cristianismo retome a preponderância no tecido social. E deixo subentendido que se isso não acontecer, então essa Europa da razão e da liberdade perecerá. Esta é a tese problemática e não a minha incapacidade para crer no mistério da Trindade. Será possível construir uma civilização fundada na liberdade e na razão se evacuarmos o Cristianismo? Eu acho que não (o que só pode ser discutível). Porquê? Porque a razão é impotente por si só para o fazer. O que a experiência histórica tem mostrado desde o tempo do Iluminismo, nomeadamente desde o sonho kantiano da autonomia da razão, é que a razão se abisma e se mostra impotente quando desligada de uma justificação transcendente (veja-se o século XX, veja-se as experiências totalitárias). Em segundo lugar, porque a liberdade tal como a compreendemos é o fruto do Cristianismo. Isto significa que a ideia de Europa que está em jogo é aquela onde a razão se funda na liberdade, isto é, na essência do Cristianismo. Ao evacuarmos o Cristianismo, evacuamos a liberdade e deixamos a razão à deriva. Assim lançada aí, a razão não tardará a procurar âncora noutro porto. Se este porto não é o da liberdade, então só pode ser o da servidão.
Em quarto lugar, eu não digo que o destino da Europa não seja a servidão. Não sei, não sou profeta, o futuro é para mim um lugar impenetrável. O que vejo no presente não me tranquiliza. Gostaria que os meus filhos e netos, e por aí fora, vivessem num mundo livre, mas esse meu desejo não passa disso mesmo, um desejo. O Zé Ricardo já sabe que a Europa não vai tornar a ser cristã (“Pois, é este o destino da Europa. Os netos, ao contrário dos avós, já não conseguem acreditar que 2+2=5. No mundo islâmico ainda acreditam.”), eu não tenho, como já disse, o dom da profecia. Aparentemente as coisas são assim, mas será que são? Será que o jogo terminou e o resultado está feito? Acreditar na liberdade significa acreditar, apesar das evidências, num mundo em aberto. Sei que a crença na liberdade é tão inverosímil quanto a crença na Trindade, provavelmente são até a mesma crença, e descubro mesmo que os mais insuspeitos defensores da liberdade afinal crêem no destino.
6 comentários:
Os princípios da moral cristã são comuns a muitas religiões de diversas inspirações (inclusivamente algumas vertentes do islamismo) e movimentos espirituais contemporâneos, particulamrente os nascidos em finais do século XIX e retomados por muitos mestres mais ou menos contemporâneos: James Allen, Osho, Dalai Lama, E. Tolle, etc.
O ideário cristão não é da posse da igreja católica e muitos somos os que o comungamos sem pertencer a nenhuma igreja organizada.
Penso que só poderia nascer um homem melhor e uma melhor sociedade da vivência de valores do perdão (o mais difícil de conseguir), da entreajuda, da tentativa de um crescimento enquanto ser humano. Estes são valores partilhados por cristãos (católicos ou não) e não cristãos.
Obviamente há os que não partilham estes valores e sustentam uma vivência social baseada no "olho po olho", na supremacia de valores materiais e na primazia do crescimento social e profissional sobre o espiritual e pessoal.
De qualquer forma, ver as igrejas cheias seria um excelente sinal, se quem as enchesse fossem pessoas empenhadas na aplicação dos valores cristãos, não devendo estes ser confundidos com o percurso da igreja católica.
É verdade, Maria, que há princípios da moral cristã que são partilhados por diversas religiões. Mas aquilo que é especificamente produto do cristianismo é a liberdade, essa invenção que faz o trânsito do Antigo para o Novo Testamento.
Não creio, por outro lado, no nascimento de um homem melhor, se por homem se entender a humanidade. Os indivíduos podem tornar-se menos maus, e há diversos caminhos para isso, caminhos religiosos ou não, mas a humanidade permanecerá o que é e sempre foi.
Mas aquilo que é especificamente produto do cristianismo é a liberdade, e é essa que neste caso me interessa. A liberdade pode ser compatível com outras religiões. Não vejo, por exemplo, que o budismo não possa conviver com a liberdade. Mas há religiões que terão enorme dificuldade em fazê-lo.
Existem facções do islamismo que convivem e aceitam, inclusivamente, os cristão como irmãos. São, por tal, tidas como traidoras há fé por outras facções... mas esta é a história das religiões. Dentro do próprio cristianismo e até catolicismo existem diferentes interpretações... enfim, as religiões são baseadas em palavras (de Sidharta, Maomé, Deus, Jesus, etc. etc.) e, como convém ao homem, palavras interpretadas como lhe apraz e melhor o servem.
Em última análise, nenhuma religião é dona das palavras dos seus mestres. Seguir a interpretação pessoal ou a de uma religião organizada, é a liberdade de cada um.
Que seja a liberdade apanágio do cristianismo (tendo em conta as palavras do novo testamento) não me parece, pois considero algumas facções do budismo e da cabala muito mais livres que o cristianismo, se considerarmos a interpretação católica dos textos e excluirmos os evangelhos gnósticos.
Penso que qualquer religião que lança sobre o homem a responsabilidade do próprio destino é livre. Esta responsabilidade, que vem sob a forma de reencarnação ou karma (que muito dizem ter sido defendido por Jesus e excluído das escrituras para dar à Igreja o poder de administrar "céu" e "inferno") ou apenas a reflexão do que fazemos aos outros sobre nós próprios; para mim, estas são religiões mais livres, pois dão ao homem a possibilidade de construir o seu caminho. Mas enfim... sou apenas uma gnóstica, curiosa detes assuntos, ainda em crescimento e resolutamente afastada do espírito racionalista...
ps.: uma leitura que gostei muito (não pela escrita, mas pela capacidade informativa) sobre as questões do islamismo foi "A Fúria Divina", de J.R. dos Santos
Interessante.....
Pelo que fui aprendendo, julgo que a liberdade, aquela que o Caro atribui ao cristianismo, já tem fundamento em outros factos.
Desde que a divindade se interessou pelo homem...ou seja, desde que deixou de ser uma entidade cósmica que ela deu ao homem a liberdade de escolha entre um caminho do bem e um caminho do mal...desde Zaratustra...contemporâneo de Sócrates....que este profeta revolucionário trouxe a orientação da divindade para o homem no seu caminho de redenção. A partir dessa orientação o homem é livre de escolher.Antes os deuses eram apenas invocados....a partir daí existem orientações a optar.
O cristianismo deriva daí após o judaísmo.
No judaísmo a divindade aprensentou-se e embora se relacionasse com o homem, era mandona e transcendente.....no cristianismo a divindade aproximou-se mais do homem....tanto que num acto de amor...encarnou....ou seja assumiu a condição humana ....para melhor orientar homem no seu tempo de redenção.... pois.... a seguir veio o islamismo....a divindade aproxima-se ainda mais do homem.....integrando-o com a natureza, organicamente , na sua unidade absoluta e transcendente...Ala Akbar!!!ou seja...Alá é tudo.
A liberdade nasce da existência dessa opção de escolha entre o bem e o mal que é facultada ao homem.
Até Camus ou Nietszche não conseguiram ultrapassar este facto.....de resto ao negarem a metafísica....dão-lhe a consagração....perante a razão surpreendida e desamparada, face ao absurdo do universo.
cumps
Só duas notas de resposta aos último comentários.
A tematização da liberdade é um dos aspectos essenciais do cristianismo. Como em nenhuma outra religião, no cristianismo a liberdade tem um papel central. Paulo, na Carta aos Gálatas 5.1, diz "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou." Não foi para a servidão perante Deus ou perante a Lei, mas para a Liberdade.
A liberdade a nível político nasceu efectivamente nos países de tradição cristã. É um dado empírico. Tem tido aliás grande dificuldade em ser aceite nas zonas de influência de outras religiões. O Islão lida com muita dificuldade com o problema. A China, apesar de uma tradição confucionista profondamente racional, é o que se sabe. Na Índia e no Japão, a liberdade política é efectiva, mas nao resultou de uma evolução interna dessas civilizações, mas da presença de potências ocidentais de cultura cristã.
Isto não significa que as igrejas cristãs sempre se tivessem comportado como defensoras da liberdade. Pelo contrário, muitas vezes elas comportaram-se de modo anticristão e contra a liberdade, mas a semente encontrava-se lá e acabou por germinar.
jcm
A liberdade é apenas o que falta de caminho da razão, para verdade...isto é, a liberdade é infinita e indefinida...completa-se no absoluto do homem e traça um caminho de Sisifo....e Camus quer um Sísifo feliz.
A liberdade é o campo do absurdo que percorremos.
Também a é a esperança proclamada pelo Sócrates nesse último dia antes de beber a cicuta...nesse comovente livro Fédon de Platão...talvez onde São Paulo arranjou a inspiração para tornar mais brilhante a palavra de Cristo e onde se encontra consagrada a serenidade com que a Europa soube pensar seu tempo... mas uma certa Europa, não esta Europa da liga Hansiática...apenas mercantilsta e cheia de cobiça...uma Europa mais mediterrânica, com mais sol e mais humanidade.
A Europa de hoje é apenas um mito e um último estertor numa agonia já datada.
Liberdade é uma sem medida de humanidade e sem laivos de lucros e é um caminho sobre um ponto de apoio que construímos no absoluto de nós...homens com razão fundamentada na fé ou vice versa....
cumps
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