03/10/07

A expulsão do poeta

Os chamados Antigos Mestres serviram sempre só o Estado ou a Igreja, o que vem a dar no mesmo, diz Reger com frequência, um im­perador ou um papa, um duque ou um arcebispo. Assim como o chamado homem livre é uma utopia, o chamado artista livre foi também sempre uma utopia, um dislate, diz Reger muitas vezes. Os artistas, os chamados grandes artistas, diz Reger, penso eu, são, além disso, as pessoas com menos escrúpulos, são ainda muito menos escrupulosos que os políticos. Os ar­tistas são os mais hipócritas, ainda muito mais hipócritas que os políticos, isto é, os artistas da arte são ainda muito mais hipócritas que os artistas do Estado, oiço eu agora Reger dizer de novo. Esta arte vira-se sempre para o Todo-poderoso e para os poderosos e afasta-se do mundo, diz Reger muitas vezes, é esta a sua infâmia. É mesquinha esta arte, mais nada, oiço eu agora Reger dizer ontem, enquanto hoje o observo da Sala Sebastiano. Porque é que realmente os pintores pintam, quando existe a natureza? perguntou ontem Reger uma vez mais a si próprio. Até a obra de arte mais extraordinária constitui ape­nas um esforço mesquinho, inteiramente absurdo e inútil, para imitar e mesmo macaquear a natureza, disse ele. O que é o rosto pintado por Rembrandt da sua mãe em comparação com o rosto real da minha mãe? perguntou ele de novo. O que são as margens do Danúbio, por onde eu posso andar enquanto as posso ver, em comparação com as pintadas? disse ele. Não há nada mais asqueroso para mim, disse ele ontem, que o poder pintado. Pintura do poder, mais nada, disse ele. Fixar, dizem as pessoas, documentar, mas o certo é que, como nós sabemos, tudo isso é mentido, falso, só a falsidade e a mentira é que são fixadas e documentadas, a posteridade só tem falsi­dade e mentira penduradas nas paredes, só falsidade e mentira se encontram nos livros que os chamados grandes escritores nos legaram, só falsidade e mentira nos quadros que estão pendurados aqui nestas paredes. [Thomas Bernhard, Antigos Mestres - comédia. Tradução de José Palma Caetano, Assírio & Alvim]

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Li esta passagem de Bernhard logo a seguir a ter lido o comentário do Zé Ricardo ao post sobre o blogue de Rodrigo Constantino. O Zé refere a expulsão, por Platão, do poeta, isto é, do artista em geral, da cidade. Há uma tensão curiosa entre o texto platónico e o de Bernhard. Em ambos existe a denúncia da mentira da arte, da falsificação da realidade. Mas Bernhard talvez nos permita perceber melhor Platão. Por que razão se deverá expulsar o artista da cidade? Porque ele reforça o poder, a dominação fundada na falsificação, através da ficcionalização. Em última análise, o artista, como encenador do poder, robustece a tirania. O artista emerge então como inimigo da liberdade.

Por aqui talvez possamos pensar mais fecundamente a questão da liberdade a partir de Platão. Talvez Platão, ao contrário do que pensa Popper, se preocupe, em tudo o que pensa, apenas e só com a questão da liberdade, com a euleutéria, o estado do homem livre. Acredito mesmo que, para pensar a liberdade, Platão seja muito mais fundamental do que Popper e os liberais. Mas sou suspeito, Platão é, para mim, o maior dos sóis que habitam a galáxia dos filósofos e dos artistas.

Por outro lado, há mais uma coisa que aproxima Bernhard e Platão: são ambos grandes romancistas, quero dizer: produtores de ficções, poetas, em última análise. Nietzsche tem razão, o diálogo platónico é a antecâmara de Cervantes. A expulsão, suprema ironia, vira-se contra eles, Bernhard e Platão. Há, no espírito sisudo dos grandes filósofos, uma forte e quase sempre não notada ironia. Platão que se expulsa a si mesmo da cidade, fingindo que o filósofo não é poeta, que não compõe ficções, coisa que ele fez durante toda a vida; Hegel, por exemplo, fazendo crer que Deus, o Absoluto falava pela sua boca, isto é, pela sua Lógica. O que coloca a questão: como ler estes refinados ficcionistas, estes supremos ironizadores?

É verdade que prefiro viver sob Guterres ou Cavaco do que sob Salazar, mas isso não me permite estabelecer uma analogia dizendo que a “Sociedade Aberta” de Popper me instrui melhor sobre a liberdade e a defende melhor do que a República platónica. Estou convencido do contrário.

6 comentários:

Anónimo disse...

Eu não acho que a grande preocupação de Platão seja a liberdade. A sua grande preocupação é a felicidade. E estou profundamente convencido que essa preocupação será genuína.

Nós lemos o Górgias e percebe-se perfeitamente que Platão, ao projectar a sociedade ideal a partir de conceitos como "proporção", "simetria", "medida" e isto numa discussão com quem defende o poder do mais forte sobre o mais fraco, está, na verdade, empenhadíssimo num projecto social que envolve a felicidade dos cidadãos.

Ora, na República, ele vai mais longe. Tal como Sebastião José no dia 2 de Novembro de 1755, arregaça as mangas, pega num lápis e em folhas de papel, e começa a projectar a sociedade ideal.
Pois, aqui começa o problema da Filosofia quando quer passar por engenharia. Os filósofos não são engenheiros. E esse é também o problema de Hegel, esse é também o problema de Marx.

No referido livro III da República há uma frase espantosa de Sócrates, perante uma pergunta que lhe é colocada: " Ainda não sei ao certo; mas por onde a razão, como uma brisa, nos levar, é por aí que devemos ir".

Ora, eu imagimo o Kant da Crítica da Razão Pura a ler isto, e não posso deixar de sorrir. Ser levado pela razão como uma brisa.

Eu fecho os olhos e vejo uma folha de jornal a ser levada pela brisa. Para onde? Para todo o lado, sem qualquer limitação dos possíveis.

Esta razão levada pela brisa, frase de poeta, de escritor, é verdade, pode ser a fonte de todos os totalitarismos.

A expulsão dos artistas da cidade não é outra coisa senão a expulsão de quem sopra no sentido contrário da brisa. Os filósofos, mal entram num gabinete, dão-nos a verdade, a fórmula da felicidade, a chave da justiça. Os artistas, pelo contrário, são uma gente degenerada que nos quer enganar e perverter as almas. O Goebbels que o diga.
Será isto bonito? Não me parece.

Por isso continuo a preferir o Platão do Górgias do que o da República. É aí que continuo a encontrar o verdadeiro Sócrates.

JR

Jorge Carreira Maia disse...

Aparentemente não está tematizada a questão da liberdade em Platão. A liberdade é introduzida pelo cristianismo, mas só na aparência. Em Platão, a liberdade é um transcendental, uma condição de possibilidade da própria felicidade. O Kant deve muito a Platão: o objectivo da razão não é a felicidade mas a produção de uma boa-vontade e esta conduz-nos à questão da liberdade, e só esta torna os homens dignos de serem felizes. Platão não põe a questão assim, mas ela já lá está. Toda a filosofia platónica é uma filosofia da libertação. Libertação das ilusões e das paixões. E só libertando-me é que poderei aceder à felicidade. Julgo que toda a filosofia platónica se resume à defesa do homem livre.

Também não acompanho a leitura que é feita sobre a República e sobre a cidade. É muito curioso que Platão na República, como em outras obras, chama atenção para os limites do que está a dizer, mas ninguém lhe passa cartão. A tradição das leituras canónicas é mais forte que o texto. Como é introduzida a cidade ideal que faz o horror dos popperianos?

Como analogia. Ela é uma espécie de lupa que ao aumentar a realidade do indivíduo permite perceber melhor este, e não a cidade. A finalidade é tomar partido sobre o problema do que é melhor: ser o indivíduo justo ou injusto. Não é a República que está em jogo, mas o cidadão. Tudo o que é dito sobre o funcionamento interno da República deve ser entendido no âmbito do indivíduo. O que é discutível não é a cidade totalitária, mas a legitimidade da analogia estabelecida. Será que aquela cidade me permite compreender melhor o «funcionamento» do indivíduo?

Também não partilho da tua ideia de engenharia dos filósofos. Comecemos por Platão. Ele não projectou a cidade ideal a regra e compasso para o impor como cidade real. No final do livro IX, é dito explicitamente e de forma notável, mas que Popper não leu ou não percebeu: « - Compreendo. Referes-te à cidade que edificámos há pouco na nossa exposição, àquela que está fundada só em palavras (sic), pois creio bem que não se encontra em parte alguma da terra. / - Mas talvez haja um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e, contemplando-a, fundar uma para si mesmo. De resto, nada importa que a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas suas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele (sic) pautará o seu comportamento.»

Um modelo para quem quiser (sic) contemplar. Não importa a realidade, mas que eu, enquanto indivíduo, me paute pelas suas normas [ó como Kant aprendeu com Platão]. A cidade ideal é o resultado do livre jogo da imaginação, mas não se destina a ser imposta aos outros, mas tornar-se uma ideia da razão para mim, se eu quiser. Não há engenharia social. Há preocupação com a questão nunca dita: como posso ser um homem livre? Que modelo devo seguir, o do justo ou o do injusto, do que se liberta das paixões e assim não tiraniza os outros, ou daquele que segue as suas paixões e sendo escravo delas escraviza os outros?

Ainda sobre a engenharia. Em Marx há engenharia, ou pelo menos a possibilidade de haver engenharia, o que aliás foi realizado com os resultados conhecidos. Mas acusar Hegel é injusto. Como sabes, para Hegel a filosofia é como a ave de Minerva. Levanta voo ao anoitecer. Esta metafórica mostra que Hegel entendia a filosofia como uma resultante, o fim, como aquilo que vem demasiado tarde, o lugar onde o conceito completa um devir ao conferir sentido. Portanto, a filosofia não é programa e muito menos projecto. Não havendo projecto, não há engenharia, nem arquitectura, há apenas começo livre, mas contendo aquilo que foi realizado e que se libertou do factum ao transformar-se em conceptum, que, curiosamente, em latim significa feto, o que remete para uma área de determinações a fazer, portanto um recomeço, mas não do mesmo.

Relativamente à bela frase que citas, não podes esquecer que o Kant não é apenas o das críticas da Razão, pura e prática. Mas também o da faculdade de julgar e este, por certo, reconheceria a frase sem sorriso, não foi ele que falou num certo livre jogo das faculdades? É preciso ver que Platão não está a desenhar uma constituição de uma cidade real, mas a produzir uma ficção para compreender o indivíduo. Até nisto, Kant deve muito a Platão. Não creio que ele tenha sorrido, a não ser por pura gratidão. Mas, mais uma vez, a metáfora remete para uma ideia de liberdade. Kant percebeu-o. Arendt também, ao fazer do juízo reflexionante o juízo político por excelência.

Não sei se os artistas são uns degenerados, mas a interpretação que um artista (Bernhard) fornece, é interessante. São degenerados, pois suportam e sustentam o poder, a tirania e duvido que os filósofos dêem alguma coisa. Os textos são tão complexos que estão abertos ao conflito das interpretações e aquilo que eles «dão» pode ser tão diferente, quão diferentes forem os intérpretes. Vê o nosso caso e a relação de Platão com a liberdade.

Espero que isto não vácom muitos erros. Não reli.

JCM

Anónimo disse...

Nós lemos o Fédon e depois lemos a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e, de facto, é possível fazer uma leitura platónica da moral kantiana enquanto libertação das paixões e determinação das acções através de princípios formais e inteligíveis. Certo.
Mas vejamos o seguinte. Kant escreve a primeira crítica para quê? Para fazer a distinção entre juízos sintéticos e analíticos e, a partir daqui, explicar a noção de a priori. As suas possibilidades mas também as suas limitações.
Conceitos com intuições dão-nos um conhecimento possível. Conceitos sem intuições, um conhecimento impossível. Quem mais do que Kant impôs limitações a uma Razão que se aventura na imensidão do oceano sem uma bússola no bolso?
Claro que, de um ponto de vista moral, a coisa muda de figura. Já não se trata de conhecer o mundo, os objectos sensíveis, mas de agir nele. E aí a Razão já não precisa de bússola pois o oceano onde navega transformou-se nela própria. Armando-me um pouco em Gabriel Alves: é como se jogasse em casa.
Até aqui nada de anormal. Só que, e digo isto com a perfeita consciência de quem pode estar a dizer um grande disparate (a minha profissão obriga-me a passar mais tempo a fazer planificações e a pensar em projectos do que a ler filosofia), em Kant, podemos estabelecer uma distinção entre o domínio moral e o domínio político.
Quero, com isto, dizer o seguinte: nós lemos os textos de Kant onde é fundamentada a moral e, tanto o seu conteúdo como a sua forma, são diferentes do conteúdo e da forma que encontramos nos “textos políticos” ou “textos jurídicos”.
Quer dizer, uma coisa é a história do merceeiro que, por dever, não rouba no peso, outra coisa são aspectos programáticos concretos. É o próprio Kant que, na Paz Perpétua, diz que o Estado deve basear-se em princípios empíricos. Ou seja, uma coisa é o merceeiro, que deve basear-se em princípios formais, outra coisa o Estado, baseado em princípios empíricos.
Ora, é aqui que consigo vislumbrar uma grande diferença entre Platão e Kant. Ou entre um putativo totalitarismo platónico e um putativo liberalismo Kantiano. Na cidade platónica, a existência individual e moral acaba por coincidir com a existência do Estado ( Hallo, Georg Willelm, wie gehts?). Em Kant, não.
Eu leio a Paz Perpétua e não me sinto esmagado. Vejo ali a existência de Estados enquanto entidades jurídico-formais mas não vejo o merceeiro. O merceeiro é outra coisa. Outra coisa, ainda que seja um merceeiro que pudesse aparecer avant la lettre no Fédon oferecendo um galo (certamente caseiro!) a Asclépio.
Mesmo ao ler os Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito não me sinta esmagado. Ou melhor, sinto-me esmagado apenas na medida em que a simples existência de um Estado de Direito implica uma dimensão coerciva. Mas isto não é “política”: é Direito. Não é um esmagamento metafísico mas antes umas pisadelas no pé para não nos esquecermos que vivemos em comunidade e os contratos são mesmo para se cumprir.
É por tudo isto que, quando me lembras isto: « - Compreendo. Referes-te à cidade que edificámos há pouco na nossa exposição, àquela que está fundada só em palavras (sic), pois creio bem que não se encontra em parte alguma da terra. / - Mas talvez haja um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e, contemplando-a, fundar uma para si mesmo. De resto, nada importa que a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas suas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele (sic) pautará o seu comportamento.», eu imagino o Kant a sorrir. Digo sorrir pois, como se sabe, o homem não era dado a excessos.
As normas pelas quais o merceeiro de Kant se deverá pautar não são propriamente as normas que eu encontro na República. Pronto, pronto, poder-se-á sempre dizer que, em última instância, a República é um tratado de moral. Mas isso é fazer um pouco de batota. Aliás, quem mais do que os grandes ditadores tentaram fazer coincidir a moral com os altos interesses do Estado? Pois, em Kant, não vejo nada disso.
Ou estou a ler mal, ou esta história do “modelo do céu” faz-me lembrar aquela célebre da omoleta invisível. Quando o modelo está no céu, não há ovos que cheguem. E ainda que possamos dizer que o projecto kantiano da paz perpétua e dos ideais republicanos, na época, pudessem ter o seu cheirinho de utopia (ok, ainda hoje também), não é bem a mesma coisa. Não se trata de uma razão que nos faz voar como a brisa faz voar a folha de jornal.
Quanto a Hegel, se calhar passa-se um pouco o mesmo que em relação a Platão. Uma coisa é o Platão da Apologia, do Hípias Maior, do Laques ou do Eutifron. Outra coisa, o Platão da República ou das Leis. Também se calhar uma coisa é o Hegel que está a acabar de escrever a Fenomenologia, e em cujo prefácio diz que “ O verdadeiro é o todo”, outra coisa é o Hegel de Berlim. Digo “ se calhar” pois não passa de uma intuição. Uma coisa é falar de holismo de um ponto de vista da experiência da consciência, outra coisa, um holismo político que nos diz “Foste criado em função do todo e não o todo em função de ti” (Estou com o Popper aberto em cima da secretária).
Mas pronto, estou a dizer isto agora só por dizer. Provavelmente estou a ver mal, precisava de estar uns dias a ler sobre isto e não tenho tempo nem cabeça para isso.
Também estou cheio de dúvidas relativamente à questão de levar o juízo reflexionante para a República. O optimismo antropológico que resulta do juízo reflexionante é estético, ainda que possa funcionar como um espelho da nossa liberdade e, sendo assim, é muito mais do que estético.
Mas confesso as minhas francas dificuldades em acompanhar-te na projecção daquele conceito num possível jogo das faculdades na República. De facto, há ali um trabalho da imaginação. Mas será a mesma imaginação que encontramos nos tais textos jurídicos e políticos de kant?
A imaginação que deu à luz a cidade ideal de Platão não é uma livre imaginação. Não passa de uma metáfora para dar cor a um projecto político metafisicamente fundado. Da família da alegoria da caverna, que nos fica tão bem dar a ler. Mas que está cheia de veneno. Estás a ver o prisioneiro que se liberta e se mete a esfregar os olhos para ver o Sol? O rei-filósofo, não é verdade?
Não sei porquê, veio-me à cabeça aquela história do Sol da Terra. Eu sei que a psicanálise já passou de moda. Mas, provavelmente, há associações livres que continuam a fazer sentido.

Jorge Carreira Maia disse...

Retomemos o diálogo, mas de forma fraccionada. Deixemos, por ora, Kant, aliás de Kant estou em geral de acordo com a leitura feita, embora sublinhe a dívida imensa de Kant a Platão, e Hegel de lado.

A questão de a República ser um tratado moral ou um tratado político é interessante. A leitura que a tradição fez é a que privilegia a dimensão política do tratado. O que Platão diz, porém, é outra coisa. O livro I é uma discussão inconclusiva sobre a definição de uma das virtudes cardinais, a justiça. É aqui que emerge o destino que se pegou à leitura da República. A justiça é uma virtude equívoca. A coragem, a piedade e a temperança são virtudes claramente individuais. Sou corajoso ou cobarde, ímpio ou piedoso, temperante ou desregrado. Mas sou eu.

A justiça, porém, implica de forma mais determinada a minha relação com o outro. Por outro lado, a conexão da justiça do indivíduo com a justiça das instituições sociais é uma fonte de confusão que permite passar com demasiada facilidade do plano ético-moral para o plano político. Ora, o 1.º livro da República é inconclusivo, uma espécie de diálogo aporético, onde se sublinha a dificuldade da coisa. Mas não podemos esquecer que o que está em questão é a virtude ética de justiça. O livro primeiro acaba com estas palavras «… de tal maneira que daí resultou agora para mim que nada fiquei a saber com esta discussão. Desde que não sei o que é a justiça, menos ainda saberei se se dá o caso de ela ser uma virtude ou não, e se quem a possui é ou não feliz (356 b, c).»

Não é fazer batota recolocar o texto platónico nos trilhos determinados pela obra, limpá-lo da ganga das leituras posteriores. Isto mesmo é confirmado no 2.º livro. É curioso que a cidade (a República) seja introduzida por uma metáfora óptica. O problema é do indivíduo justo. O texto diz o seguinte: «Disse-lhes então qual era o meu parecer, que a pesquisa que íamos empreender não era coisa fácil, mas exigia, a meu ver, acuidade de visão (sic). Ora, uma vez que nós não somos especialistas (sic), entendo – prossegui – que devemos conduzir a investigação da mesma forma que o faríamos, se alguém mandasse ler de longe letras pequenas a pessoas de vista fraca, e então uma delas desse conta de que existiam as mesmas letras em qualquer outra parte, em tamanho maior e numa escala mais ampla. Parecer-lhes-ia, penso eu, um autêntico achado que, depois de lerem primeiro estas, pudessem então observar as menores, a ver se eram a mesma coisa (368 c, d).» E em 368 e – 369 a: «Portanto, talvez exista uma justiça numa escala mais ampla, e mais fácil de apreender. Se quiserdes então, investiguemos primeiro qual a sua natureza nas cidades. Quando tivermos feito essa indagação, executá-la-emos em relação ao indivíduo, observando a semelhança com o maior na forma do menor». É este o horizonte da obra. Toda a descrição da cidade se deve entender, na minha óptica, dentro destes limites. É o microscópio que me permite ver melhor o indivíduo. Não é fazer batota, é aceitar o jogo proposto pela obra.

A obra diz coisas que ninguém quer ler. Não são especialistas – portanto, a sua opinião é opinião e não ciência. [Os textos platónicos estão cheios destas ressalvas, mas ninguém as lê. No Fédon, por exemplo, são inúmeras, mas o que se sublinha é a dogmática da imortalidade da alma, alicerçada na explicação lógica. Enquanto o texto diz expressamente que talvez (sic) as coisas sejam assim. Esta tensão entre a demonstração epistémica e os comentários que a relativizam mereceria um amplo estudo, para o qual me falece talento, interesse e paciência.] Na República, há a confissão de que os que estão a dialogar vêm mal. Mas se vêem mal o pequeno, também verão mal o grande, apesar de o verem melhor do que o pequeno. Eu estou particularmente atento a estes «truques» romanescos do senhor Platão. Talvez porque já não queira de lá tirar ensinamento, mas divertimento. [Outro exemplo de gozo de Platão: no Protágoras, no debate sobre se a virtude é ensinável, Sócrates e Protágoras enfrentam-se. A ironia está presente desde o momento em que Sócrates é acordado por um jovem que quer conhecer Protágoras, passa pela descrição do movimento do séquito que acompanhava a prelecção do sofista e consuma-se no diálogo. Sócrates e Protágoras partem de posições opostas e acabam em posições opostas. Mas só que as posições foram trocadas. Cada um convenceu o outro, mas por isso mesmo abandonou a sua posição original. Notável truque ficcional.]

A cidade descrita é opressiva. Talvez. Mas ela é a obra ficcional (cidade de palavras, em 369 c diz-se: «Ora vamos lá! – disse eu –. Fundemos em imaginação uma cidade.») de não especialistas, de gente que confessadamente vê mal. Platão não proclama aquela cidade o fruto da razão, do logos e da sabedoria. Diz claramente que é fruto da imaginação, de gente que vê mal, que não é especialista. Aquilo não é para levar a sério. Se alguém o levar a sério, seja o Morus, seja o Popper, seja eu, a culpa não é do autor. Ele avisou. Pôs tabuleta. É por tudo isto que não acompanho Popper e os liberais, e também não me sinto oprimido, como o Zé Ricardo, perante a cidade platónica. Faço como o próprio autor, não a levo a sério. Ela é um meio para um outro fim, uma ficção para me estudar a mim mesmo.

Já, agora, sublinho alguns pressupostos da minha leitura de Platão:

1. Estou-me nas tintas para a magna questão de saber em que diálogos Sócrates é Sócrates e em que diálogos Sócrates é o porta-voz de Platão. Sócrates é sempre Platão, mas também Símias e Cebes são Platão, também Protágoras é Platão. Todas as figuras centrais dos diálogos são Platão. Esta é a minha leitura. Platão expõe dialecticamente o pensamento, e todos os momentos dessa dialéctica são essenciais ao pensamento que se expõe.

2. Os diálogos platónicos são ficções. Neles combina-se o poeta (negado por Sócrates) e o romancista (entrevisto por Nietzsche). Mesmo a questão da verdade não deixa de ser uma questão ficcional. Platão é artista e é poeta e sabe-o muito bem. A ironia é ele expulsar-se a si mesmo da cidade, enquanto artista, ao mesmo tempo que se atribui o lugar de Rei, enquanto filósofo. [Cá para mim o tipo divertia-se à brava enquanto escrevia os diálogos.] Enquanto artista que obra de arte compõe ele? O romance, a narrativa, de um pensamento que flui, ao mesmo tempo que ironiza e limita esse mesmo pensamento. É por isso que não atribuo qualquer crédito à leitura política de Popper. Fazer de Platão uma espécie de pai do totalitarismo, de um inimigo da sociedade aberta, até parece uma partida de Platão.

3. Dir-me-ão que o Platão não era irónico, provavelmente seria um chato. Talvez, mas recordo aquela passagem no Fédon, escrito por Platão, em que Fédon enumera quem esteve presente no último dia da vida de Sócrates e assistiu ao diálogo então travado e concluiu assim essa listagem: «Platão, creio que se encontrava doente.» Então o autor não sabia se estava doente ou não? Truque romanesco e suprema ironia.

Anónimo disse...

Antes de mostrar ao que venho, e venho com uma bandeira branca para levantar e mostrar toda a minha boa vontade em relação a Platão, trago uma pequena picuinhice. Ou talvez não.
Tu dizes que, em Platão, não se pode confundir a piedade ou a temperança com a justiça. Eu não sei se te referes especificamente à República ou a Platão. Se for em relação a Platão, peço-te o seguinte. Se tiveres vagar e paciência vai aí à estante e tira de lá o Górgias.
Embora aparentemente o tema principal seja a retórica, esta, de imediato, passa para um segundo plano. Para mim, o Górgias só começa mesmo a sério quando é colocada a seguinte questão: será preferível praticar uma injustiça ou ser vítima de uma injustiça? A partir daqui temos um texto sobre a justiça. Já não aporético mas no qual ficamos claramente a entender o que é a justiça.

Há várias passagens graças às quais podemos facilmente perceber que Platão as coloca num mesmo plano ontológico. Refiro apenas duas. Em 507 b, diz Sócrates: “ De maneira que é absolutamente necessário, Cálicles, que o homem sábio, sendo, como nós o demonstrámos, justo, corajoso e piedoso, seja também um homem perfeitamente bom; que o homem bom faça em tudo o que é bem e belo; e que, agindo bem e como deve, não possa deixar de obter o sucesso e a felicidade, enquanto o mau, agindo mal, seja desgraçado: ora, este mau é precisamente o oposto do sábio, do temperante, é o homem intemperante e desregrado de que louvavas a felicidade.

Em 507 d: “ É preciso que cada um dirija todas as forças, as próprias e as do Estado, para este fim, a aquisição da justiça e da temperança como condição da felicidade e a isso ajuste todos os seus actos; que não se permita às paixões reinarem sem medida e que não se consinta em levar uma vida de malfeitor para satisfazer a sua avidez insaciável”.

Pronto, pelo menos no Górgias, ser justo e temperante é precisamente a mesma coisa. Arquelau é o que é, porque é injusto e intemperante. Ou seja, a temperança platónica não se esgota no Fédon, enquanto domínio sobre si próprio, desligado de qualquer relação social.

Durante os vários anos em que leccionei o Górgias, eu lia a obra como se tivesse sido eu a tê-la escrito. Ainda agora, ao espreitá-la, sinto isso. Também aqui podemos pôr o olho no microscópio e ver o indivíduo, tirá-lo, e ampliar a nossa visão para o todo. Indivíduos justos farão uma sociedade justa. Uma sociedade justa é uma sociedade de indivíduos justos.
Mas não é a ideia de totalidade que me preocupa. Prefiro a totalidade platónica ao ressentimento de Rousseau. Já agora, prefiro o Rousseau do Contrato Social ao Rousseau dos Devaneios, apesar de, em grande parte, eu também me rever aqui. Mas fosse eu filósofo e fazia assim: escrevia o Contrato enquanto filósofo. Os devaneios ficariam para um diário ou um blogue.
Dizia eu que não é a totalidade que me preocupa. Não sou um individualista, nem estou rendido ao perfume liberal. Prefiro Rawls a Nozick apesar de, cá no íntimo, até entender o ponto de vista deste. O que me deixa preocupado na República é o livro de receitas. Os ingredientes que são dados para comer o bolo com a naturalidade com que se diz que a árvore é verde. Leio, e não me sinto bem ali.

Mas provavelmente sou eu que não fui capaz de entender essa faceta pessoana, borgesiana e irónica de Platão. Ou até quixotesca. No D. Quixote, Cervantes mete o cavaleiro da triste figura a falar sobre o próprio D. Quixote. Quer dizer, D. Quixote encontra um tipo que acabou de ler a primeira parte do próprio D. Quixote. E há referências de Cervantes a si próprio no decorrer da obra. Pois, eu nunca li Platão desta maneira, ou por incapacidade, ou por nunca me terem ensinado.

Será absurdo dizer que gosto de Platão. Será sempre redundante alguém da Filosofia dizer que gosta de Platão pois Platão é a Filosofia. Até Nietzsche gostava de Platão. O seu ódio não é outra coisa senão uma declaração de amor. Eu não vou dizer que somos anões e Platão o gigante para cujos ombros saltamos para podermos ver mais longe. É muito mais do que isso. É um avô em cujo colo todos nós vamos sentar e do qual nunca nos havemos de libertar.

Jorge Carreira Maia disse...

Relativamente à justiça, aquilo que refiro não é a posição de Platão, mas o facto deser uma virtude que permite muito rapidamente a transição da temática da ética para a da política, através da questão da justiça social. É isso que enviesa a leitura canónica da República.

Confesso, porém, que há muito que abandonei a leitura dos filósofos como filósofos, e olhos-os, à maneira do Borges, como ficcionistas. A coisa é muito mais divertida. E como deixei de acreditar na possibilidade do homem chegar à verdade, seja lá o que isto for, a filosofia tornou-se um campo literário, ao lado da lírica, da épica, do romance, do teatro. Mistura teatro, poesia e narrativa. Poesia pois a filosofia é uma produção, uma poiesis, narrativa, pois conta a história do pensar, mas uma história que é encenada, veja-se a encenação geométrica do Spinoza ou do discurso do método, do Descartes. A representação filosófica está dentro de um cenário, é puro teatro.

Sobre a bandeira branca: enfim, este tipo de "conflito" faz-nos bem. Ainda mostra que a escola não nos matou por completo apesar de tentar até mais não poder. Haver professores de filosofia que se interessam por filosofia, ou de literatura que amem a literatura, ou de história que vibrem com a história, vai sendo raro. Esta nossa discussão é um acto de resistência à depressão cultural que os governos impõem às nossas escolas e aos professores.

Em breve chegará a hora que os professores serão castigados por quererem saber. Agora são apenas desprezados, amanhã será o castigo, talvez a expulsão da escola. Não estou a brincar.

Um abraço,
JCM