04/07/08

Exodus - XI

Lançando vos lançarei daqui, do lugar o mais desordenado,
das praças maculadas pela impiedade das ervas,
das amplas ruas tão fechadas ao trânsito cego com
que um deus compõe, ao dedilhar as contas,
a cidade. Um tumulto de flores ainda trazem pela
cercadura dos braços, mas já a luz se entrega, ainda
pela manhã, a uma agonia de velas arvoradas, como
se tudo não passasse de um mar de algas e rochas,
batido pelo vento que espalha, sob a copa das árvores,
florestas de incêndios, bosques de luz, fogos tão
húmidos que logo trazes e te cobres nesse guarda-chuva
com marcas de silicone e um anúncio de máquinas
fotográficas. Aí se escondem as sobras que sobram
da memória, imóvel e já devorada pelo punhal do dia.

Lançando vos lançarei uma praga de palavras, a contaminação
das páginas do rio, o funesto desejo de a tudo perceber.
Circulam na imóvel eternidade filas de carros e nas lojas
há mulheres desfiadas a escorrer pela seda, outras
leves como o pesado veludo, que cobre a porta onde,
era um sábado de neve azul, alguém por ti chamou.
Não penses que te deslocas pela cambraia das horas e assim
da morte te escondes, como se fosses um universal vazio,
o conceito amplo que a tudo, em seu seio, recolhe.
O lápis, aquele de assimétrico bico quebrado, é o último
reduto. De lá partem mísseis contra os inimigos
escondidos na larga calçada da praia, sem barcos
nem pássaros nem peixes; apenas filas árduas de carros
em combustão se entregam à maresia do combate.

Lançando vos lançarei naturezas mortas, pintadas
pelo sangue que corre das mães inanimadas
por tantas palavras saídas de sua boca, naqueles dias
em que os cães saíam para a rua e latiam tardes fora,
a chamar, em desespero, os seus deuses, estátuas disformes,
corpos avaros, luz alguma os teria, na sombra da roseira, tocado.
As janelas fechavam-se e na oclusão da casa habitavam
os moradores. Humedeciam os lábios e cruzavam as mãos
antes da noite cair. Os joelhos flectiam quando os músculos
ao peso do aroma da terra cediam e um grito desenhava-se
na madeira lavrada por mãos solitárias, azuis
e suavemente ritmadas, balançando até pelo silêncio
se suspenderem e na ondulada respiração adormecerem,
para nunca mais irromperem pela manhã.

Lançando vos lançarei pelas faces as pétalas apodrecidas
no hálito dos pomares de ozono, estâncias primaveris
que cobrem o tecto do tecto da cidade. Engavinhados, os viajantes
pedalam, na surpresa da tarde, bicicletas de granito
untadas pelo óleo de girassol. Fulguram no fim
da estrada, se os olham dentro dos olhos; amadurecem,
se os esquecem e logo se inclinam para a terra
como pétalas puras, ao febril êxtase da queda se dão.
Mais tarde, quando o ano for um imenso verão de incêndios
haverá uma súbita ordem de fuga. Na debandada da
noite, os que viajam esperam inquietos no ocre
das estações de serviço e se lhes oferecem um quarto
de hotel, recusam com as mãos vazias e os lábios
roxos pelo sono, a noite o esconde na agonia do regaço.

Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.

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