22/07/08

Perante o espelho

R. Magritte - The Art of Living


Estou sentado, num quarto de hotel, diante de um espelho. Escrevo enquanto me olho. Os cabelos que ainda restam estão já bastante brancos, a barba também. Não é um exercício de narcisismo. Como seria possível? Nem, tão pouco, de nostalgia, embora ainda há tão pouco fosse incapaz de pensar-me assim. O efeito do espelho perturba-me. Nunca escrevi diante de espelhos e aquilo que vejo são os despojos da vida. Iludimo-nos, quando somos novos, pensando que o corpo é um princípio de afirmação, mas agora o espelho revela a verdade, o corpo é o que fica daquilo que foi consumido. Da vida apenas se tem direito a ver o que resta. Oiço o concerto em C minor, BWV 1060, de Bach, num estranho arranjo, e é isso que me permite escrever perante a imagem que o maldito objecto insiste em devolver-me. Fecho os olhos e a música continua, arrasta-me. Sigo-a e esqueço-me, perdido na exactidão matemática que se desprende do que oiço. De facto, é verdade que Deus muito deve a Bach.

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