15/07/08

Sobre a impetuosidade e a mobilização

As editoras Círculo de Leitores e Temas & Debates organizaram uma colecção denominada Clássicos da Política. A última obra editada – a terceira da colecção – é O Príncipe de Maquiavel, numa nova tradução de Diogo Pires Aurélio, que assina também uma introdução extensa, documentada e orientadora informada da leitura do texto.

Foi com esta nova edição que retornei ao extraordinário texto de Maquiavel. Quem quiser meditar a natureza dos homens pode começar por aqui e talvez em poucos outros lugares encontrará lição mais adequada. Mas deixemos de lado essa meditação sobre o vício e a virtude da vontade humana.

O texto do florentino é o ponto de partida daquilo que hoje se chama ciência política, uma reflexão sobre o que é a política e não sobre aquilo que deveria ser. Deste ponto de vista, O Príncipe é um dos textos que inauguram a modernidade, sob cuja sombra ainda hoje, cerca de cinco séculos depois, vivemos.

Maquiavel olha para os homens, neste caso os príncipes, como dotados de uma certa natureza petrificada. Os espíritos impetuosos ou cautelosos triunfam se os tempos estiverem adequados à sua índole. Mudando-se, todavia, os tempos, a vontade individual permanece presa à sua inclinação e ao seu modo de ser o que os arrastará para a ruína: «Concluo, pois, que, modificando a fortuna os tempos e estando os homens obstinados nos seus modos, são bem-sucedidos enquanto estes e aqueles concordam e mal-sucedidos quando eles discordam (Maquiavel, O Príncipe: pp. 234).» Hoje, porém, a ideia moderna de homem diz-nos que este é completamente plástico e como tal moldável às múltiplas situações da vida. É isto que, por exemplo, se pensa em conceitos como os da flexibilidade no trabalho ou da multifuncionalidade. A pergunta que poderia colocar-se seria, então, a seguinte: o que é que na modernidade permite fazer esta transição entre uma concepção ontológica do homem visto como carácter permanente e a actual concepção de uma flexibilidade manejável até ao infinito?

Quem quiser encontrar a resposta não precisa de sair do próprio Maquiavel: «Eu julgo realmente isto, que seja melhor ser impetuoso que cauteloso, porque a fortuna é mulher e é necessário, querendo-a ter debaixo, vergá-la e acometê-la (idem).» É no conceito de impetuosidade que se deixa perceber uma das categorias centrais da modernidade, aquela que faz a transição entre duas visões de homem: a da mobilização (Peter Sloterdijk). Perante os caprichos da fortuna só a mobilização contínua, o exercício infindável do arrebatamento, é a resposta possível. Já no século catorze, Jean Buridan, no campo da física, lançava uma teoria do ímpeto que dava uma explicação para o movimento de projécteis e objectos em queda livre e preparava o caminho para Galileu e Newton (para haver movimento deve haver uma força; o movimento persiste porque essa força se incorpora ao corpo, e vai se consumindo até acabar).

No cruzamento do conceito psicológico de impetuosidade, entendido como carácter arrebatado, com o conceito físico de ímpeto nasce então o ideal da mobilização infinita que já não se aplica apenas ao político (príncipe), mas que se vai democratizando e anulando as diferenças que separam os homens. Hoje todos temos o dever de estar mobilizados, isto é, devemos pelo arrebatamento e pelo ímpeto fazer frente aos caprichos da fortuna para evitar não a ruína do principado, mas a própria ruína pessoal. Mas esse conceito de mobilização é aquele que exige de nós não um carácter rígido, mas impetuosamente moldável às situações da vida. É por isso que Sócrates corre, as empresas fazem formação do pessoal, as escolas nomeiam professores coordenadores. Tudo na esperança de que o arrebatamento e o ímpeto não desfaleçam e nos mantenhamos mobilizados na prossecução eterna, e em cada momento diferenciada e sempre nova, do movimento. Como se a morte não existisse e um requiem eterno não fosse o destino único da impetuosa mobilização.

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