09/02/08

Vasco Pulido Valente - Onde nós chegámos

O arcebispo de Cantuária, Rowan Williams, primeiro dignitário da Igreja de Inglaterra, de que a rainha é o chefe supremo, declarou anteontem que, tarde ou cedo, a Inglaterra tem de "incorporar" a lei islâmica, a Sharia, porque os muçulmanos não se reconhecem na lei em vigor, evidentemente de origem cristã. Isto implica que passaria a existir uma lei para cada religião e que ficaria ao arbítrio de qualquer um escolher a mais favorável ao seu caso ou mais conforme às suas convicções de momento. E presume também que a tradição jurídica anglo-saxónica se tornaria um resíduo, só aplicável a um pequeno grupo de anglicanos, se eles por acaso quisessem. O arcebispo de Cantuária não falou nisso, mas com certeza que, estabelecida a Sharia, os católicos não prescindiriam de uma lei católica, como os judeus de uma lei judaica e a menor seita, por esotérica que fosse, das suas próprias regras, cuja igualdade e dignidade não se poderiam negar.

Se Rowan Williams estivesse comprovadamente louco, o episódio não merecia uma linha. Sucede que não está. Pior ainda, o que ele veio dizer é um desenvolvimento inevitável e lógico da doutrina do multiculturalismo. De facto, se em toda a parte e em todo o tempo, uma cultura vale em teoria outra cultura, e todas devem conviver em paz, não há razão para que uma defina e domine a ordem jurídica do Estado. O arcebispo sempre vai avisando que não gostaria de importar certas versões, quanto a ele excessivamente radicais, da Sharia. Em Cantuária e em Liverpool, talvez não caísse bem o apedrejamento da mulher adúltera, o uso obrigatório do véu ou a taxativa proibição do divórcio. Não se percebe esta reserva do reverendo Williams. Quem aceita e recomenda a Sharia, aceita e recomenda a Sharia na forma e na interpretação que os muçulmanos lhe entenderem dar. Não cabe, como é óbvio, a um arcebispo herege meter o seu irrelevante bedelho no assunto.

Por absurdo que pareça, Rowan Williams espera da próxima vigência da Sharia uma Inglaterra mais "coesa". Não lhe ocorreu que tolerar a tolerância leva à intolerância absoluta. O que não admira, porque, no admirável mundo da "correcção", a tolerância acabou muitas vezes por impor uma autoridade que roça o terrorismo moral, ideológico e político. Sendo uma aberração do século, o arcebispo de Cantuária não se distingue no essencial dos mil censores da nossa consciência e dos nossos costumes. A liberdade, para ele, não conta.
[Vasco Pulido Valente, Público, 9/02/08]

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