31/01/10

A comédia do insucesso escolar



O Público de hoje traz uma reportagem sobre o flop dos chamados planos de recuperação dos alunos. A reportagem merece ser lida, não tanto pelo que diz, mas por aquilo que deixa suspeitar. É evidente que os planos são burocráticos e que os professores não estão preparados para lidar com o assunto, pois essa preparação nunca lhes foi dada como deve ser. Também é verdade que não existe uma tipificação das dificuldades de aprendizagem, nem se conhece medidas testadas que permitam obviar a essas dificuldades. No entanto, tudo isso apenas pode servir para ocultar uma outra realidade.

Essa outra realidade surge claramente expressa no editorial do Público. Cito:

«Por muito que haja planos, professores destacados e escolas com computadores Magalhães, a luta a que a anterior ministra da Educação se propôs dificilmente dará grandes resultados enquanto os pais não encararem a escola como um activo imprescindível. Ou enquanto as reprovações não forem vistas como um anátema social que merece censura. Agora, que se prepara uma reflexão sobre o que correu mal, talvez valha a pena reflectir sobre se a prioridade dos planos está na escola ou no meio que a envolve.»

Se há cinco anos tivessem perguntado aos professores onde se encontra o problema essencial do insucesso escolar, eles teriam explicado que era aqui mesmo, na importância que, efectivamente, famílias e alunos dão à escola. Se essa pergunta tivesse sido feita há 10, 15 ou 20 anos, a resposta teria sido exactamente a mesma. Há muito que os professores sabem onde se encontra o problema. Há muito que o Ministério da Educação, cheio de preconceitos, acha que não deve escutar os professores e continuar a lutar contra moinhos de vento, inventar uma burocracia inenarrável, cuja finalidade prática é desmotivar os professores e condenar milhões de alunos ao insucesso escolar e na vida.

Se este Ministério da Educação continuar a acreditar que a parte de leão do problema está dentro das escolas e não fora delas, coisa que me parece ser o que vai acontecer, os professores só podem esperar o pior. Novas ondas de burocracia, novas ilusões e novas acusações. Por muito que contrarie o eduquês instalado, a burocracia ministerial e os interesses que colonizam as escolas, o que, em primeiro lugar, tem de mudar é a relação da sociedade e dos alunos com a escola. A partir daí, tudo começaria a fazer sentido. Mas quem quererá afrontar uma parte dos eleitores dizendo claramente que a sua atitude é irresponsável? É preferível que a comédia continue.

As minhas virtudes preconceituosas

(Imagem daqui)


Quando se é novo, e estamos convencidos de que não temos preconceitos, é a altura em que somos mais preconceituosos, pois julgamos os nossos preconceitos como se fossem evidências universais. Se temos a sorte de amadurecer, coisa que não acontece a muito boa gente, descobrimos que afinal essas evidências eram pouco evidentes e a sua universalidade, muito particular. Isto é meio caminho para eliminar um conjunto de preconceitos nefastos para a vida social e o respeito pelos outros, ao mesmo que tempo que se aprende a transformar outros preconceitos em virtudes individuais.


Ontem, por uma questão premente de horários, fui ver o filme de Michael Haneke, O Laço Branco, ao Corte Inglês. Quando vou ao cinema em Lisboa, por norma, vejo os filmes numa daquelas cadeias onde não existe possibilidade de comer pipocas. É um dos meus preconceitos virtuosos ou uma das minhas virtudes preconceituosas. Percebo que em muitos dos filmes que passam nas salas de cinema o melhor mesmo são as pipocas, mas o filme de Haneke não é entretenimento - horrível espanholismo -, mas um filme denso e duro, um filme que contrasta com a leveza das pipocas.


O que me surpreendeu ontem, eu que não estou habituado a salas com pop-corn, foi a idade dos pipoqueiros, gente que se aproxima perigosamente da minha idade. Não, não eram jovens modernos formatados na cultura americana. Era gente que estudou ainda no tempo em que a cultura francesa era o guia irremediável da nossa desgraça ou, quanto muito, a severa Inglaterra era o contraponto do acordeão parisiense. Como se vê, gente, ao contrário de mim, capaz de se adaptar aos novos tempos, gente despreconceituosa, capaz de aliar a leveza do que come ao peso do que vê. E eu saí do cinema, jurando que, fosse qual fosse o horário, não mais iria a uma sala pipoqueira. Por uma questão de preconceito estético.

30/01/10

Michael Haneke - O Laço Branco


Acabei de ver O Laço Branco (Das Weiss Band) do realizador Michael Haneke. Um filme magnífico situado nas vésperas da primeira Grande Guerra. O filme começa por ser uma exposição sobre o carácter precário da memória. O narrador, que participa de certa maneira da vida da comunidade onde os acontecimentos narrados se passam, reconhece, logo no início, que a memória dos factos, passados há muito, é imprecisa e que, apesar de sentir uma necessidade imperiosa de contar a história, o que sabe dela advém dessa memória vacilante e de "ouvir dizer".

Esta imprecisão memorial corresponde, porém, ao recalcamento de um conjunto de estranhos crimes ocorridos dentro de uma comunidade camponesa submetida quase feudalmente a um senhor. Esses crimes, nunca oficialmente desvendados, são obra de um conjunto de crianças. A subterrânea perversidade das crianças surge em contraponto com a subjectivação das normas morais dentro de uma comunidade protestante. O laço branco não é outra coisa senão o símbolo dessa subjectivação. No fundo, o filme trata do confronto entre a violência do bem, aquela que se exerce sobre as subjectividades infantis para a interiorização da norma moral, e a violência do mal que, dissimuladamente como os adultos, as crianças praticam.

Que o pastor, o mais zeloso dos moralistas, se recuse a encarar a perversidade dos próprios filhos, acaba por tornar evidente a cumplicidade entre a regulação protestante das consciências e o mal. Tudo isto, contudo, se dissolve na irrupção da guerra. Diria que se está perante um filme da contra-reforma, onde a subjectividade individual acaba por ser a fonte de uma perversidade oculta, mas que se manifesta continuamente. Essa falência da moral protestante perante a perversidade natural do homem fica em suspenso com o advento da Guerra de 1914-18. Nós que sabemos o que veio a seguir, percebemos como é que esse mal recalcado, na Alemanha, se veio a manifestar com o advento do nazismo. Um filme a ver.

29/01/10

A utopia conservadora


O Zé Ricardo faz uma citação de um belo texto de Michael Oakeshott sobre a natureza do ser conservador em política. No essencial, estou de acordo com a visão conservadora de Oakeshott. No fundo, ela não é mais do que a sábia prudência e a justa medida dos gregos. O curioso, porém, é que a crítica da utopia que está presente no texto e no pensar do filósofo anglo-saxónico não deixa de ser ela mesma utópica. Quando diz "Ser conservador, portanto, é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o experimentado ao não experimentado..." refere apenas um ideal. O grande problema é que, mesmo na política, há momentos em que o não familiar e o desconhecido se apresentam perante os homens. Nesses momentos, não há experiência que os valha. Terão, mesmo contra vontade, de trilhar o não-experimentado. Há em tudo o que é humano uma caducidade. Por isso, também as instituições se tornam obsoletas e dão lugar a outras, muitas vezes pelo amotinamento geral.

Faz sentido o pensamento conservador como desconstrução do desejo revolucionário, do querer revolucionar as instituições que ainda são sólidas e merecem conservação. Mas há um outro lado. As revoluções não nascem do desejo dos revolucionários. Elas são como um terramoto, uma espécie de acontecimento natural, onde o não familiar reclama o não-experimentado. A sua facticidade é ultrajante. Em primeiro lugar, ultraja os defensores da velha ordem (como foi possível 1789, ou como foi possível ou o 5 de Outubro, ou... ou...?). Mas ultraja, também, os supostos revolucionários. As revoluções, como muito bem viu de Maistre, conduzem mais os homens do que estes a elas. Nestes momentos, o ideal conservador é puramente utópico. É inútil, nesses momentos de excepção, tentar parar o carro (desejo conservador) ou conduzi-lo (desejo revolucionário).

Em certas alturas históricas que nunca escolhemos, só o não-conhecido possibilita encontrar um princípio de ordem para o caos natural que impera nas relações sociais. Será esse princípio de ordem totalmente desconhecido que acabará, com o tempo, por se tornar no familiar e no conhecido que vale a pena conservar.

Jornal Torrejano, 29 de Janeiro de 2010


Já está on-line a edição desta semana do Jornal Torrejano. Um clique aqui e aparece .

28/01/10

O livro do entardecer 30

uma cor de seda na voraz voz da verdade
animais sem eira pelas praças
carros suspensos a balançar ao vento
tudo crepita no teu olhar

deixas poisar cada pesadelo
no escuro da noite
paisagens azuis sulfurosas
brancas a arder no peito

as mãos entregam-se à urgência
na clareira onde tudo resplandece

frases desconexas o sangue exausto
a espádua rasgada da respiração crepita
como uma alma ressuscitada que desfalece

Diana Krall - Este seu Olhar

Humilhações


Falando em humilhações, tenho lido muitas coisas, li Platão e Aristóteles, li Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Nietzsche, Husserl e Heidegger, e mais não sei quantos grandes, pequenos e médios filósofos. Mas esta gente nunca me humilhou como o faz Herberto Helder. Na verdade, nunca me humilhou. Nem os poetas, nem os romancistas, por excessivos que sejam. Só há uma autora que me causava tamanha humilhação. Eu lia-a e, por vezes, ativarava com violência os livros contra a parede ou para o chão e calcava-os, depois pegava neles e retornava à leitura. Era uma leitura física. Deixei de a ler, não sei se retornarei. Porque a humilhação que nela se sente não é apenas a da escrita, da composição, a do excesso de bem escrever. É uma humilhação que ultrapassa o literário e até o social. É uma humilhação de natureza ontológica. O leitor é um verme e eu, enredado no jogo social daquelas narrativas, sentia-me um verme. O nome dela, Agustina Bessa-Luís. Peço desculpa ao Saramago e ao Lobo Antunes e a todos quanto..., mas literatura a sério é a da Senhora D. Agustina.

Exercícios penitenciais


Há dias que não temos nada para dizer. Esses, porém, não são os piores. Há outros dias que descobrimos que deveríamos estar calados. Talvez calar-me seja o maior exercício de respeito por mim e pelos outros. Seria, no mínimo, um exemplo. Tanto ruído. Mas esses dias ainda não são os piores de todos. Para mim, hoje, é um dos piores dias. Estive a ler Herberto Helder e, sempre que leio Herberto Helder, é um dia mau. Aquela poesia é tão boa, tão perfeita, tão exacta, que parece tudo ter ficado escrito para a eternidade. A poesia de Herberto Helder é perversa, esmaga-nos com o prazer que dá, esmaga-nos com a sua exactidão lexical. Na poesia de Herberto Helder, a gramatica é terrível, pois não admite excepções, mesmo que um miserável substantivo seja um advérbio. Ler Herberto Helder é um exercício feroz de humilhação. Não, não nos purifica, não nos lava a alma. Pelo contrário, aquela poesia rouba-nos a alma. Quando lemos Herberto Helder ficamos desalmados. Aquele bocadinho de alma que ainda tínhamos é desbaratado, queimado, nem o diabo a quer. Herberto Helder é um inimigo do diabo, pois desfaz as almas que o maligno queria acumular para o fogo eterno. Quando lemos Herberto Helder, e na humilhação de o lermos, ainda queremos ler mais e mais e sem parar. Há poetas, daqueles poetas verdadeiros, que se proíbem de ler Herberto Helder. Eu leio-o, pois eu não sou um poeta dos verdadeiros nem dos falsos. Mas esses dias de leitura são penitências sem fim. Quando leio "As crianças enlouquecem em coisas de poesia", eu sou essa criança a enlouquecer. Enlouquecer, nestes dias, é uma forma de penitência. O penitente tira sofrimento do prazer. O leitor de Herberto Helder não passa de um penitente, de um penitente que quer estar calado e não consegue.

27/01/10

O livro do entardecer 29 - comércio de afectos

olhei agora para as ruas da cidade
gatos e homens dormiam
pelos bancos
perdidos do mundo
esquecidos de si

são imagens de papel sem história
respiram a vida a que ninguém
os chamou
signos da ausência
a que o comércio de afectos
sempre os habituou

Joan Baez - Guantanamera

Aristóteles - Administrar uma casa


A pessoa que tiver intenção de administrar uma casa [hoje, pode entender-se por casa qualquer organização] de forma correcta tem de estar familiarizada com os lugares de que se vai ocupar, ser dotada, por natureza, de boas qualidades e de possuir, por vontade própria, sentido de trabalho e de justiça. Ora, se algum destes elementos lhe faltar, irá cometer erros frequentes na empresa a que meteu mãos. [Aristóteles, Os Económicos, 1345b7 - 11]
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Uma pequena lição de Aristóteles sobre a figura, para utilizar a linguagem actual, do gestor. Nesta pequena lição, pensa-se, porém, tudo o que é essencial. Em primeiro lugar, a vocação, isto é, o ser dotado por natureza de qualidades para o cargo que se desempenha. Vocação não significa aqui o mero desejo de ordenar e dominar os outros, mas a posse inata, nascida com a pessoa (por natureza), de qualidades que visam o bem da organização e a realização das finalidades a que esta se propõe. Não basta, todavia, a vocação, as boas qualidades naturais. São precisas mais duas coisas. Por um lado, o conhecimento (estar familiarizada com os lugares de que se vai ocupar). Como é peregrina a ideia de que um gestor gere bem qualquer coisa, desde uma empresa de sapatos até um hospital ou uma escola. Para administrar uma organização é preciso conhecê-la e aos fins a que ela se propõe. Mas qualidades naturais e conhecimento ainda não são suficientes, é preciso uma vontade boa. Como se manifesta esta vontade boa? Pela posse do sentido de trabalho e do sentido de justiça. Veja-se que não basta trabalhar muito e bem. É preciso ser justo no exercício do poder gestionário. A justiça implica o reconhecimento do contributo de todos os membros e a distribuição de encargos e recompensas de acordo com esse contributo. Se algum destes elementos faltar, então os erros na condução da organização serão frequentes. Ora, serão os nossos gestores, directores, administradores, públicos e privados, detentores de todas estas qualidades? Que importância darão eles, na prática e não na sua mera opinião, por exemplo, à justiça? A sociedade portuguesa está numa situação muito difícil. Parte substancial dessa dificuldade não advirá do facto dos nossos dirigentes não satisfazerem esta tabela de valores aristotélica? Não precisará o país de começar por reformar a sua classe dirigente a todos os níveis?

Finalmente

Não há nada a fazer, somos mesmo assim. Retorno à saga da busca do livro necessário. No dia 29 de Novembro, depois de percorrer as livrarias on-line portuguesas ou a operar em Portugal, encomendo numa delas, a única que fazia referência ao livro, uma obra que necessito para as minhas aulas deste segundo período. Pensei, ingenuamente, que uma encomenda feita no fim de Novembro chegaria a meados de Dezembro. Não chegou. Passou Dezembro com as festas, já Janeiro se ia adentrando pelo tempo fora, decido enviar um e-mail à tal livraria on-line. Não me responderam, como já aqui contei. A 12 de Janeiro, passados três ou quatro dias do envio do email, ligo para os serviços de atendimento ao cliente. A senhora que me atendeu foi bem simpática, disse que ia ligar para o armazém e ver o que se passava. Passado uma hora, ligou-me. Pedia muita desculpa, mas já não distribuíam os livros daquela editora. A simpatia da senhora não anula, porém, três coisas. Em primeiro lugar, o desfasamento do catálogo on-line com a realidade (uma coisa muito corrente nas livrarias on-line portuguesas ou a operar em Portugal). Em segundo lugar, o desprezo evidenciado pelo cliente e manifestado na ausência de resposta a um pedido. Em terceiro lugar, a ineficiência dos serviços. Mesmo que houvesse um desfasamento no catálogo on-line, um serviço eficiente informaria rapidamente o cliente do equívoco, pedir-lhe-ia desculpa e adiantaria que ao cartão de crédito não tinha sido debitada qualquer quantia.

Aproveitando a simpatia da senhora do atendimento, pedi-lhe a informação de quem era a edição do livro, pois não constava do catálogo on-line. Lá fui informado, coisa que me deixou eternamente grato. Era um centro de investigação de uma universidade portuguesa. Liguei de imediato, nesse dia 12 de Janeiro, para lá. Perguntei quem era o distribuidor actual dos livros que editavam. Ninguém, o próprio centro os vendia na sede ou enviava pelo correio. Então, disse, faço a encomenda de imediato por via telefónica. Não pode ser, responderam-me, tem de enviar um email para ficarmos com o registo. Muito bem. Posso pagar on-line? Não, enviamos os livros à cobrança (perante o catálogo, eu decidira comprar outras obras para além da que precisava). Doze de Janeiro era uma terça-feira, e eu, que nunca me curo da ingenuidade (ingenuidade acima dos 40 é burrice, como diz uma amiga), imaginei que lá para sexta-feira teria os livros, até porque explicava a minha urgência. A verdade, porém, é que só hoje, dia 27 de Janeiro, os tenho na mão.

No dia 20 de Janeiro, decidi comprar os Collected Poems, de Philip Larkin. Fi-lo no Reino Unido através da Amazon.co.uk. Ontem dia 26, já pude ler alguns poemas de Larkin. Há qualquer coisa que não funciona em Portugal. E isto não se refere apenas às instituições do Estado. A iniciativa privada é tão ineficiente quanto os serviços públicos. Neste caso até é bastante mais, pois a editora do livro nem está vocacionada para funcionar como editora ou como distribuidora e servir eficientemente, nesse âmbito, os clientes. Quando se fala em crise, estamos a falar disto, desta atitude, desta efectiva falta de competitividade. E o que é aqui a falta de competitividade? Não é outra coisa senão a falta de atenção e de respeito pelo outro, mesmo que este apareça na figura do cliente, isto é, daquele que paga para a empresa sobreviver. Tudo isto é também um problema ético. Para muitas das nossas empresas e instituições o outro não é a sua razão de ser.

26/01/10

O livro do entardecer 28 - as tuas mãos

olhava estradas e caminhos pela manhã
a quase dor a pairar silenciosa
pintada de água e sono
à luz sonâmbula das margens

pessoas animais promessas de vida
tudo a que nos convida a fatalidade da hora -
a camélia e o silêncio crescem
e um suspiro anuncia-lhes a morte
aberta sobre o meio-dia

pela primavera, quando as pétalas enlouqueciam
restos de inverno rescendiam a estátuas
o olhar de pedra sobre a boca
as tuas mãos – não mais as tomarei

Japanese Music: Song of the Wind (Kaze no Uta)

2. Arquétipos femininos e tragédias pessoais


Esta segunda nota de leitura sobre A Cidade e as Serras liga-se à imagem do feminino. De certa maneira, as personagens femininas da obra são pouco densas e a sua construção obedece à elaboração de estereótipos, cuja finalidade parece ser a de fornecer uma imagem arquetípica da mulher que se deve ter em consideração quando chegar a hora de formar família.

Jacinto não abandona, ao sair de Paris, apenas a civilização do saber e da técnica. Abandona também a vida social de uma certa alta sociedade e os seus jogos amorosos, onde brilham duquesas e cocottes, não se distinguindo umas das outras. A mulher, que Jacinto vai encontrar em Tormes, está longe deste jogo de sedução, seja esta motivada pela necessidade, seja pelo mero prazer e exercício de poder de casta. Joaninha, uma reminiscência de Garrett, acaba por ser, à imagem da sua, e também de Zé Fernandes, tia Vicência, a súmula das virtudes femininas que dão ânimo ao homem gasto pela experiência mundana. Joaninha é pura, fadada para a maternidade, uma dona de casa, cujos traços eróticos são, fora do segredo do lar, não reveláveis.

Esta deserotização da descrição de Joaninha não deve ser relacionada apenas com a mulher mundana da grande cidade. Ela aparece aqui em oposição a esse tipo de mulheres, mas nessa sua oposição ela representa uma forma de relacionamento muito específica com o masculino. Ela é a salvação para o homem português experiente e cansado dos jogos eróticos da vida em sociedade. Muitas vezes é-se tentado a ver este tipo de estereótipos, os quais chegaram até hoje, como produto do Estado Novo e da coligação moral entre o salazarismo e a Igreja Católica. O que se constata, porém, é que a ideologia do Estado Novo apenas reflecte e conserva modelos mais antigos, veiculados inclusive por pessoas tão insuspeitas como Eça de Queirós.

Esta imagem fictícia da virtuosa mulher portuguesa não deixa de ser o produto de um eros masculino temeroso perante o saber erótico da mulher e do poder que isso pode representar, como as mulheres de Agustina Bessa-Luís – mulheres da mesma proveniência geográfica e social – não deixam nunca de mostrar. São estes arquétipos do masculino e do feminino, presentes em A Cidade e as Serras, que acabam por gerar não apenas muitos dos equívocos que se estabelecem nas relações entre mulheres e homens, como criam as condições psicológicas de muitas tragédias pessoais.

25/01/10

O livro do entardecer 27

o excesso de azul no céu
fulgura a manhã que declina
e deixa que o brilho que te move
empalideça como a ilha de onde partimos
e a que não voltaremos

não preciso dessas confidências
basta-me estar sentado
e ver o tempo passar
no voo das gaivotas

cerra as pálpebras
há olhos a mais nos teus olhos
e eu já só sei as palavras
que me conduzem na cegueira

tudo se torna tão longe
a água que cai
a lua nova
o desejo que se esqueceu
de quanto desejou

Lila Downs - Agua de rosas

A festa do orçamento


O CDS vai abster-se, na votação do Orçamento de Estado, em nome do interesse nacional e da pátria. O PSD abster-se-á também, certamente em nome dos mesmos. Já o PCP deverá votar contra agastado com a obsessão do governo em endireitar as contas públicas (se ainda fosse ensquerdar) e por uma questão de fé. Também o BE deverá votar contra por causa dos desempregados e duma fé mais light, mas fé ainda. Votos contra, também, em nome do interesse nacional e da pátria, por certo. Estou convencidíssimo que o própria PS gostaria imenso de se abster ou mesmo votar contra o orçamento de estado, ainda em nome do interesse nacional e da pátria. No fundo, teria todas as razões. O orçamento é aquele que Bruxelas e o Euro impõem e que não agrada a ninguém e a que ninguém pode fazer frente. Se pudessem, o défice chegaria ao 10% ou 12%. Ficaríamos todos mais alegres, o povo pela diminuição do sacrifício, as elites políticas pela generosa dádiva paternal. Quando o barco se afundasse, logo se haveria de ver se os salva-vidas funcionavam.

24/01/10

O livro do entardecer 26 - alvo

de que boca bebo a água que mata
e me rouba as palavras
que tenho para dizer

não há inocência nesses lábios
nem sombras onde se oculte a voz –
é dessa cor a natureza que te coube
branca como a erva sob a geada
fria ao sol de agosto

sem casa ou bosque que te acolha
nem a flecha escura do desejo
de ti fará brando alvo

Palestrina - Stabat Mater

Gran'Gula em Coruche



Chega à pacata vila de Coruche, ali no vale do Sorraia, e apetece-lhe uma refeição tranquila, diferenciada, onde exista bom gosto e sobriedade, que não é outra coisa senão o sintoma desse bom gosto. Onde poderá encontrar isso, se é que pode? Pode. Encontra-o no Gran'Gula (se seguir o link, terá acesso à ementa e a uma panorâmica geral do restaurante).

O ambiente e a decoração são sóbrios e elegantes, o atendimento é gentil e com sábio equilíbrio entre a atenção necessária e distância certa. A comida, segundo a experiência que lá fizemos, é óptima, um sempre difícil equilíbrio entre a tradição portuguesa e a cozinha de autor. Começou-se com pão com manteiga, uma manteiga de ovelha de Azeitão, um jogo entre o sabor da manteiga e a evocação do queijo. Entre as entradas disponíveis, escolheu-se a farinheira preta com abacaxi, ambos grelhados. O abacaxi equilibra muito bem a farinheira preta, corta-lhe ameaças de indigestão, e joga como se fosse uma espécie de metáfora, embora comece a ser relativamente corrente, aproximando dois campos gustativos muito distantes. Resulta bem.

Filetes de linguado marinados com açorda de tomate e limão (não consta da lista do blogue linkado mais acima). Dos filetes nada há dizer, a não ser que se apresentaram como se esperava, bem temperados, sem oleosidades, sápidos, e muito bem acompanhados por uma açorda de gosto delicado e suave. Uma belíssima combinação. No prato de carne, experimentámos o folhado de perdiz. Também ele excelente. O folhado vinha coberto por uma redução de vinho tinto e chalota que lhe dava um toque de distinção e acompanhado por um gratinado de brócolos e arroz selvagem. Como sobremesa, preferiu-se o crumble de maçã e pêra, que igualou a qualidade de toda a refeição. Tudo isto foi acompanhado, como sempre fazemos, por um tinto da zona, um Vale das Lebres (2006). Não conhecíamos e foi uma nova e belíssima surpresa da enologia ribatejana. Vale a pena ir a Coruche.

Nada é para ser levado a sério


O artigo de Vasco Pulido Valente, no Público de hoje, sobre a grande burla, isto é, a educação (no caso, a educação superior, mas o problema é igual na outra), toca num tema essencial, o do total desprezo pelos resultados das políticas educativas. Faz-se e não se pensa nas consequências. Melhor, não se pensa pura e simplesmente. Apresentam-se álibis (por exemplo, o fosso que nos separa da UE ou da OCDE) para permitir aquilo que VPV sublinha enfaticamente, o desleixo, a corrupção e a militante estupidez. Dito de outra maneira, o grande problema da educação (semelhante ao dos outros sectores) é a atitude que os portugueses, e as presumidas elites políticas, colocam na coisa. No fundo, todos sabemos que nada é para ser levado a sério.

23/01/10

O livro do entardecer 25

pela sombria e táctil ilusão da infâmia
que glória desceu dos céus para te iluminar
que voz ecoou nos ermos campos da cidade

contra ti ergueu-se a espada em alvoroço
rasgou-te a carne e abocanhou a memória
para que entrasses vazia na noite

a reverberação que havias empalideceu
perdeste a certeza das rosas
e as asas caíram ao voares

contas agora nomes e crepúsculos
e um resíduo de dor é tudo
a que chamas alma

Edith Piaf - La Vie En Rose

E de súbito, deu-me vontade de ouvir isto.

Regina Spektor - Fidelity

Talvez gostem disto. Quem sabe?

Poderes concorrentes


Face a esta tendência de fundo, repetidamente renovada e reavivada, face, também, à crueza dos factos objectivos, fica, pois, em causa aquela idílica imagem de uma monarquia orgânica e corporativa, que se propunha e conseguia enquadrar harmoniosamente todos os corpos sociais do reino e, sobretudo, uma aristocracia sua pretensa aliada natural, por tantas vezes ser sangue do seu sangue. Esta verdadeira lenda, criada e difundida por uma certa historiografia tradicionalista, não resiste ao confronto com a documentação coeva e, muito menos, a uma interpretação crítica e não preconceituosa dos factos. E destes, vistos numa perspectiva que vá para além do caso isolado, o que ressalta é um longo e persistente fenómeno de tensão, de conflitualidade e de choque tendencial entre poderes concorrentes. [Bernardo Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 168]

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Esta análise de Vasconcelos e Sousa refere-se a um período que vai desde a fundação do reino até Afonso V. Aquilo que merece ser sublinhado é, em primeiro lugar, desmisticação das narrativas tradicionais que davam uma visão celestial da monarquia portuguesa, mostrando-a como orgânica e corporativa, integradora harmoniosa das diferenças. Essa narrativa ditirâmbica alimentou, por exemplo, a democracia orgânica do prof. Salazar. É curioso que, ainda que sem consciência disso, alimenta também a visão idílica da futura coexistência, num Portugal hipoteticamente regionalizado entre o poder central e as elites políticas regionais. O que a história mostra, porém, parece ser outra coisa, "um longo e persistente fenómeno de tensão, de conflitualidade e de choque tendencial entre poderes concorrentes".

A bondade das regiões


O Zé Manel Trincão Marques, no Terra Nossa, faz um post sobre as regiões na Europa (cf. também este post de JTM e discussão subsequente). A informação coligida é interessante e pertinente para o debate que parece adivinhar-se. No entanto, os argumento finais que parecem justificar a defesa da regionalização política de Portugal são perigosos: Independentemente da sua dimensão, os países europeus mais desenvolvidos são aqueles que possuem possuem administração regional intermédia descentralizada. A regionalização é um factor de desenvolvimento.

Com argumentos destes, em muitas das áreas da governação, temos conseguido fazer o pior. Esta argumentação, que repousa na suposição, difícil de demonstrar, que aquilo que é bom para os outros é bom para nós, acaba por fazer tábua rasa das condições concretas do nosso país. Abole a sua cultura atávica, ignora o tipo de povo que somos e a classe política que temos, escamoteia a sua tradição histórica.

Eu sei que quando se fala em desenvolvimento temos por hábito ficar extasiados, prontos para copiar um qualquer modelo mais ou menos original que nos salve e que abre o caminho marítimo para o desenvolvimento. O resultado é o triste impasse em que vivemos na actualidade, um país a empobrecer e que não pressente qualquer tipo de saída.

O atraso do nosso desenvolvimento não se deve à falta de regiões político-administrativas, mas à atitude que temos para com a vida, a sociedade, o trabalho, o saber, e a virtude cívica. E os outros países são desenvolvidos não por terem regiões mas pela sua atitude, a qual lhes permite ter regiões.

Em abstracto, eu compreendo os argumentos a favor da regionalização. Aliás, penso que é público (devo ter escrito um artigo no Jornal Torrejano, na altura), votei a favor das regiões no referendo de 1998. Hoje, tenho uma posição muito mais céptica sobre a bondade das regiões em Portugal. A racionalidade abstracta diz-me que sim, mas a razoabilidade prudencial aconselha-me que não. Começar a legitimar grupos organizados em torno de interesses específicos, tendo em conta o tipo de cultura que é a nossa, vai ser o primeiro passo para um enorme sarilho. Há coisas que são caricatas, mas que convém perceber do que são elas sintoma. Refiro-me, por exemplo, ao futebol e a tudo o que se passa em torno do conflito FC Porto e SL Benfica. Não sejamos ingénuos. Não se trata apenas de jogos de bola e de campeonatos que se ganham ou perdem. Aliás, a própria Justiça sabe-o muito bem, de tão enlameada que tem sido - por si mesma, diga-se - desde há muito, nesse conflito inqualificável. Percebe-se bem, por detrás dos clamores futebolísticos, ânsias que pouco têm a ver com a bola. Com grupos politicamente legitimados, a chantagem sobre o Estado-nação não ficaria atrás daquela a nos habituámos com a Madeira.

22/01/10

O livro do entardecer 24 - espera

sobre o sentimento
erguia madeixas de cabelos negros e frios
as mãos sujas suadas
sempre um ar de devastação

coleccionava naufrágios
havia neles uma beleza – dizia
e sentava-se olhando o poente
à espera que o inverno viesse
cobri-la com sal e solidão

Léo Ferré - La Solitude

Eis uma das canções da minha vida. Ferré diz, a determinado momento, isto: "Le désespoir est une forme supérieure de la critique." Deveria ser da idade e do espírito da época. Seja como for, continuo a gostar. Como dizia o meu antigo professor, Padre Cerqueira Gonçalves, somos sempre fiéis a nós próprios. Quem quiser ler o poema é só clicar aqui.

Uma violenta luta


No artigo de hoje, no ionline, Paul Krugman ironiza com as respostas dos banqueiros à comissão de inquérito à crise financeira. Parecem ser as pessoas mais ignorantes, relativamente às consequências dos seus actos de gestão financeira, que há sobre a terra. Mas o que o artigo deixa compreender é outra coisa: a violenta luta que se trava entre aqueles que querem que continue a situação que levou à crise e as forças que defendem a racionalidade da regulação do Estado sobre o sector financeiro. Ainda estamos longe de saber quem ganhou.

1. O homem teórico e a pastoral serrana


Em A Cidade e as Serras, publicado postumamente em 1901, Eça de Queiroz mostra-se bastante a par do espírito do tempo. Em 1872, sob a influência do romantismo, Nietzsche, em A Origem da Tragédia, lança um violentíssimo ataque contra a cultura ocidental fundada na racionalidade e no homem teórico, isto é, no homem cuja finalidade e justificação de vida é a produção de conhecimento. Em Jacinto, com a sua biblioteca de 30 000 volumes, Eça traça a caricatura da avidez do saber presente no homem teórico ocidental. O seu desejo de saber não é já a de um Fausto, que pactua com o diabo para alcançar o conhecimento, mas só a necessidade de acumular livros, alimentar uma gigantesca e sempre actualizada biblioteca, onde se pode encontrar tudo o que as ciências e a filosofia produzem. Uma biblioteca que Jacinto não lê, que o enfastia.

O produto de todo o labor científico, segundo a obra, resume-se, assim, a papel que se acumula em estantes e aos aparelhos técnicos, os quais acabam por atrapalhar a vida quotidiana, mais do que libertá-la. A troca de Paris pela serra do norte de Portugal, por Tormes, representa o voltar as costas à civilização científica do ocidente, bem como à técnica (o 202 dos Campos Elísios, residência parisiense de Jacinto, era uma espécie de museu real dos últimos produtos da técnica) que dela decorre. A virulência do ataque de Eça de Queiroz à civilização do homem teórico não é menor que a de Nietzsche, embora este veja a salvação na restauração do espírito trágico dos gregos através da música de Wagner, e Eça proponha um Jacinto filho-pródigo que volta à sua casa ancestral, a uma espécie de Arcádia serrana, onde encontra, apesar das tempestades invernais e da miséria que ali descobre, um verdadeiro locus amoenos.

Com Zé Fernandes, narrador e personagem, e Jacinto, Eça de Queiroz acaba por fornecer protótipos do homem português. Pastores viris, não efeminados como o renascimento os pensou, em contacto com a natureza e a vida rude dos campos. O homem do conhecimento não passa de uma impostura das grandes cidades. Mesmo quando, num passeio à Sorbonne, Zé Fernandes reage ao desacato dos estudantes, não o faz pelo amor ao saber, mas ao da ordem, essa velha e boa ordem que reina nas serras pátrias. Como em Nietzsche havia o prenúncio de uma grande tragédia no destino dos alemães, também neste texto de Eça se configura muito do nosso destino no século XX.

Investigação


Decididamente, estou velho. Não digo isto apenas por há muito ter abandonado qualquer simpatia pelas utopias políticas. Isso é apenas sinal de sensatez. Mas velhice deve ser mesmo o que explica o não me conseguir iludir ou extasiar perante as micro-utopias que invadem o quotidiano das pessoas. Por exemplo, o desejo de ensinar competências de investigação a quem mal sabe ler, escrever e contar. Devo estar errado, além de velho. Sou um caso definitivamente perdido.

Jornal Torrejano, 22 de Janeiro de 2010


On-line encontra-se a edição semanal do Jornal Torrejano. Está num clic.

21/01/10

Pomplamoose Music - My Favorite Things - Sound of Music

Acho que vão gostar.

Uma imensa prisão


Sem darmos por isso, o mundo ocidental tornou-se uma imensa prisão. Estamos presos nas nossas próprias fronteiras. Depois dos atentados contra as Twin Towers, o medo e as medidas de segurança para protecção das pessoas estão a transformar-nos todos em prisioneiros domiciliários. As novas medidas de segurança que se preparam para os aeroportos, depois do incidentes dos últimos tempos, vão intensificar dramaticamente essa sensação. O uso de scanners irá tornar-se um símbolo dos nossos dias. Se a diminuição da liberdade individual era um dos objectivos do fundamentalismo islâmico, há que reconhecer que a sua estratégia está a ir muito bem.

Voltar as costas à Europa

Por iniciativa de Calisto III chegou mesmo a constituir-se uma armada que contou com barcos portugueses e que entrou em combate contra os turcos no Mediterrâneo Oriental. Mas, apercebendo-se de que a grande cruzada tardava em ser lançada, Afonso V começou em 1457 a inflectir a sua atenção para Marrocos, onde poderia combater os infiéis defendendo Ceuta, na posse dos portugueses desde 1415, e tornando-lhes novas praças. A morte de Calisto III, em 1458, fez com que também o papado arrefecesse os ímpetos cruzadísticos. A grande esquadra que deveria atacar Constantinopla jamais chegaria a ser formada e Afonso V reorientou o seu esforço de conquista para o Norte de África, no que terá contado com o apoio entusiástico dos sectores que sempre tinham preferido esta via para combater o Islão e nela procuravam obter bom proveito, como era o caso do infante D. Henrique, um dos apoiantes da viragem para Marrocos. [Bernardo Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 163]

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Voltemos à História de Portugal coordenada por Rui Ramos. A inflexão na política externa, digamos assim, de 1457, aqui assinalada, não marca apenas a abertura para aquilo a que se chama os Descobrimentos, marca uma característica essencial do desenvolvimento político de Portugal. Em 1453, os Turcos tomam Constantinopla, pondo fim ao chamado Império Romano do Oriente. O cisma do Oriente (1054), que dividiu a cristandade (Igreja Católica e Igreja Ortodoxa), criou as condições para uma fragilização progressiva das forças cristãs (também desgastadas pela aventura das Cruzadas, uma delas contra Constantinopla) e permitiu o domínio turco nos Balcãs. De certa maneira, a política europeia jogava-se no conflito com os turcos (estes, ainda em 1683, estiveram às portas de Viena). Ora, a opção de Afonso V foi a de virar as costas à Europa e voltar-se para África.

Um reino periférico e sem recursos materiais, sem possibilidades de expansão territorial no continente europeu, desinteressado do destino dessa Europa herdada do longínquo Império Romano, Portugal encontrou na expansão marítima a sua possibilidade de continuar a existir e o principal leitmotiv da sua política externa. Essa política durou de Afonso V até aos professores Salazar e Caetano, isto é, até 1974.

Com o fim do império colonial, na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal retorna, de certa maneira, a 1457 e aos problemas que a aventura marítima tinha ajudado a resolver e, ao mesmo tempo, a mascarar, nomeadamente ao problema da viabilidade do país reduzido à sua dimensão peninsular. A entrada para a CEE na década de oitenta, uma espécie de retorno tardio à Europa, veio adiar o problema. Mas a crise persistente do actual regime, nos campos económico e político, reacende a questão, e fá-lo de uma maneira aguda. Já não há colónias nem a União Europeia parece disposta a contemporizar connosco. Acabou-se o tempo das conquistas e das descobertas marítimas. O que vamos fazer connosco e com o país que recebemos? Olhando cruamente, hoje as nossas possibilidades de persistência parecem ser bem menores que em 1457.

O problema da incapacidade dos portugueses de inscreverem a sua vontade no real, problema levantado pelo filósofo José Gil, deve ser pensado neste contexto histórico. Qual o real que nos cabe?

20/01/10

O livro do entardecer 23 - palavras

acabaram-se as palavras
roídas pela astúcia dos dias –
chegavam e partiam
e acendiam a noite e as trevas
e o verde do mar
onde tudo então nascia

agora são apenas balbucios
trazidos pela inconstância do vento
ecoam exaustas e negras
mas não as oiço –
por dentro são ocas e frias
a sua verdade não vale o lamento

Joe Locke / Geoffrey Keezer Group: Van Gogh By Numbers

Chegou a vez dos médicos


É preciso entender bem o mundo em que vivemos, coisa de que não parece capaz o bastonário da ordem dos médicos. O crescimento do número de vagas na universidade para os cursos de medicina acaba com uma situação de excepção que reinava nessa área. Em todos os outros cursos, desde o direito às engenharias, a formação de quadros, com uma ou outra excepção devido à falat de candidatos, há muito que tem por finalidade criar um proletariado altamente qualificado. Os médicos serão o próximo sector a proletarizar. Melhor, o sector está já em fase de proletarização, apesar de haver gente que ainda não o notou. Contrariamente ao que a maioria dos comentadores da notícia do Público, com o ressentimento habitual, pensa, a proletarização dos médicos, como está a acontecer com outros grupos sociais, só tem um objectivo efectivo: a liquidação das classes médias. A medicina é uma indústria, e os médicos são os seus operários. Por muito que protestem, é isso que os espera no futuro próximo. Não a todos, claro, mas a muitos, à maioria.

Christopher Lasch - A desvalorização do passado


Numa sociedade narcísica - uma sociedade que dá uma crescente proeminência e encorajamento aos traços narcísicos - a desvalorização cultural do passado reflecte não apenas a pobreza das ideologias prevalecentes, que perderam a sua ligação com a realidade e abandonaram a tentativa de a dominar, mas a pobreza da vida interior narcisista. Uma sociedade, que fez da "nostalgia" uma mercadoria comercializável no mercado cultural, rapidamente repudia a sugestão de que a vida no passado era, de uma forma notável, melhor que a vida de hoje. [Christopher Lasch (1991). The Culture of Narcissism - American Life in An Age of Dimishing Expectations. New York: Norton, pp. xvii]

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A desvalorização cultural do passado, desvalorização que é um traço das sociedades contemporâneas, significa o silenciamento das vozes que nos falam a partir de uma experiência consumada. Problemático, não é apenas o facto de que, numa ou noutra ocasião, a vida pudesse ter sido melhor que a actual e nós não percebermos essa eventual bondade. Nem é apenas a negação daquilo que o passado tem de modelar e prototípico relativamente ao presente. Problemático é a incapacidade de escutar. O passado nunca pôde escutar o presente, mas o presente e os vivos nesse presente sempre encontraram forma de escutar os mortos. Ao evacuarmos, através de um narcisismo consumado, a capacidade de escutar os nossos mortos, abrimos o caminho para que aqueles que vêm depois de nós, e não me refiro apenas àqueles que hão-de vir amanhã, mas também aos que já cá estão há muito, sejam incapazes de nos escutar, ou de se escutar entre si. A morte dos mortos, isto é, o esquecimento cultural do passado, não mata apenas e de novo os mortos, mata também os vivos, por um acintoso transfert. Para a cultura narcísica em que vivemos, cada geração fecha-se sobre si e olha para as anteriores como mortos que ainda não sabem que o são.

A condecoração de Santana Lopes


Uma questão de justiça, disse o Presidente Cavaco. Mas também disse que é cumprir um dever e uma tradição. Quem leu Kant sabe muito bem o que significa esse dever, como ele deve contrariar a inclinação natural. Mas não é apenas esse conflito entre o dever e a inclinação natural que é significativo na atitude Cavaco Silva. O Presidente cumpre a regra de condecorar aqueles que tenham "terminado as funções de que foram titulares e quando já não exercem quaisquer funções políticas de destaque como deputado ou dirigente partidário”. Nas palavras de Cavaco há um alívio (ele já terminou as funções políticas) e um desejo (já não exerce, subliminarmente espera que não venha a exercer, funções político-partidárias). Duvido que Santana Lopes tenha apreciado a condecoração.

19/01/10

O livro do entardecer 22

e tudo crescia para além da esperança
o caminho costumado que te levava
um raio de sol na poeira
o cavalo na saliência do dia

se a primavera começava
esmagavas nas mãos as flores
e sentada de coração escalavrado
esperavas o fim do estio a chegar

Dave Brubeck - All The Things You Are - 1972

DA JANELA


Este é quase o cabeçalho de um blogue que estou para trazer aqui há muito, e que, sem qualquer razão, não o tenho feito. Quase o cabeçalho, pois falta-lhe o lettring (não o consegui copiar, só veio a imagem) que diz o nome do blogue, "DA JANELA". Os proprietários são marteodora e PR. Por acaso sei quem eles são, mas não os delato à comunidade. Bem, o que tem o blogue de especial? O que lá está. Excelente fotografia. Para confirmar a verdade do que digo, baste ir e ver. Vai ficar visitante.

Cavaco e a fé na educação


Uma questão de fé ou de pura ideologia. O Presidente da República, no que deverá ser acompanhado por um séquito sem fim e de todas as cores, acha que a "educação é um dos maiores investimentos que nós podemos fazer na nossa juventude", e acrescenta: "É um investimento no progresso do nosso país e um dos investimentos mais rentáveis que uma nação pode fazer”.

Já em 1979, o historiador e crítico social Christopher Lasch escrevia, em The Culture of Narcissism: "A extensão da escolarização formal a grupos anteriormente dela excluídos é um dos desenvolvimentos mais surpreendentes na história moderna. A experiência da Europa Ocidental e dos Estados Unidos nos últimos 200 anos sugere que a educação de massas fornece um dos principais fundamentos do desenvolvimento económico, e por toda a parte, no resto da mundo, os modernizadores tentaram copiar a proeza ocidental, levando a educação às massas. A fé nos prodígios da educação provou ser uma das mais duráveis componentes da ideologia liberal, facilmente assimilada por ideologias no resto hostis ao liberalismo. No entanto, a democratização da educação pouco fez para justificar esta fé. Nem melhorou a compreensão popular da sociedade moderna, elevando a qualidade da cultura popular, nem reduziu a separação entre riqueza e pobreza, que permanece tão grande como sempre. Por outro lado, contribuiu para o declínio do pensamento crítico e para a erosão dos padrões intelectuais, forçando-nos a considerar a possibilidade de que a educação de massas, como os conservadores sempre argumentaram, é intrinsecamente incompatível com a manutenção da qualidade educacional." [Christopher Lasch (1991). The Culture of Narcissism - American Life in An Age of Dimishing Expectations. New York: Norton, pp. 125]

Embora, Lasch tenha uma aproximação ao problema menos ingénua do que os conservadores, não deixa de apontar um problema que ninguém, literalmente, quer ver e muito menos discutir. Será que há uma correlação entre o crescimento da escola de massas e o desenvolvimento civilizacional, nomeadamente o crescimento económico? Cavaco, como Sócrates e todos os outros que fremem e salivam quando se fala de educação, diz aquilo que o senso comum instalado diz e quer ouvir. Com isso, porém, evita-se enfrentar o problema real, aquele que está ligado à falência dos sistemas educativos, ao crescimento do abismo entre ricos e pobres, à morte do pensamento crítico e da alta cultura, isto é, à morte do espírito.

18/01/10

B.B King / Eric Clapton - Come Rain or Come Shine

Uma dupla de peso.

Eça de Queiroz - Não querem ideias...


Passei as pontes, que separam em Paris o Temporal do Espiritual, mergulhei no meu doce Bairro Latino, evoquei, deante de certos cafés, a memoria da minha Nini; e, como outr'ora, preguiçosamente, subi as escadas da Sorbonne. N'um amphitheatro, onde sentira um grosso susurro, um homem magro, com uma testa muito branca e larga, como talhada para alojar pensamentos altos e puros, ensinava, falando das instituições da Cidade Antiga. Mas, mal eu entrára, o seu dizer elegante e límpido foi suffocado por gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça bestial, que sahia da mocidade apinhada nos bancos, a mocidade das Escolas, Primavera sagrada, em que eu fôra flôr murcha. O Professor parou, espalhando em redor um olhar frio, e remexendo as suas notas. Quando o grosso do grunhido se moderou em susurro desconfiado, elle recomeçou com alta serenidade. Todas as suas ideias eram frias e substanciaes, expressas n'uma lingoa pura e forte; mas, immediatamente, rompe uma furiosa rajada de apitos, uivos, relinchos, cacarejos de gallo, por entre magras mãos, que se estendiam levantadas para estrangular as ideias. Ao meu lado um velho, encolhido na alta gola d'um macfrelane de xadrezes, contemplava o tumulto com melancolia, pingando endefluxado. Perguntei ao velho:

- Que querem elles? É embirração com o professor... é política?

O velho abanou a cabeça, espirrando:

- Não... É sempre assim, agora, em todos os cursos... Não querem ideias... Creio que queriam cançonetas. É o amor da porcaria e da troça. [Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras]

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A Cidade e as Serras é um livro póstumo de Eça de Queiroz, publicado em 1901. Esta aventura de Zé Fernandes na Sorbonne, ainda, por aqueles dias, um dos templos mais sagrados do saber, deve corresponder ao Zeitgeist do fim do século. Quando hoje nos queixamos dos nossos alunos, talvez nos falte esta perspectiva que a história, nem que venha através do romance, dá. Talvez Eça assinale um momento em que na Europa se opera uma cisão entre as novas gerações pertencentes às elites intelectuais e o saber. «É sempre assim, agora, em todos os cursos... Não querem ideias...» Com a democratização do ensino, democratizou-se a pateada e o não querer ideias. Ou talvez o problema seja eterno, um inultrapassável conflito entre o saber e as hormonas, nomeadamente as masculinas.

17/01/10

O livro do entardecer 21 - o silêncio

o silêncio é um verão antigo
onde se guarda a memória
daquilo que então amámos
o olhar que se cruza contigo
um rosto que não teve história
a voz com que cantámos

Dr. Luiz Goes - Fado da Despedia

Talvez um dia destes explique o motivo desta queda (veja-se mais abaixo o que se diz acerca da queda) no fado de Coimbra.

Herdade de Cadouços


Não tema o ocasional leitor que este blogger se vá arvorar em especialista de vinhos. Não é, não vai. Mas, confesso, sou um diletante, mero amador sem formação técnico-científica, coisa hoje sempre necessária para falar de vinhos, para além da formação em retórica. Gosto de vinhos, de bons vinhos, como milhões de pessoas. Nos últimos tempos tenho-me tornado um adepto, cada vez mais fervoroso, dos vinhos do Ribatejo. Sei que as condições edafoclimáticas desta província não se podem comparar com as do Douro, mas os projectos vinícolas ribatejanos são cada vez mais interessantes.

Este vinho, por exemplo, devido ao nome que ostenta, tinha todas as condições para não ser por mim comprado. Há coisas que me recuso a experimentar por causa do nome que ostentam ou do rótulo. Preconceitos meu. Mas numa visita gastronómica à Herdade de Cadouços (Bemposta, Abrantes) bebi um dos vinhos da Herdade, o Memorium (na altura, devido ao tal preconceito, recusei este Yes We Can). Foi uma belíssima experiência. Ora, à saída da Herdade, há uma loja de vinhos e comprei vários exemplares dos produtos da casa, o Cadouços 2007 (7 €), o Harmony (14 €), o Memorium (17 €)e o famigerado Yes We Can (17 €) [preços na herdade, embora se comprar não sei quantas garrafas deste e daquele sai a um pouco menos. No restaurante da herdade, o vinho está ao mesmo preço]. Hoje abri uma garrafa do Yes We Can. Esqueça-se o nome, a identidade com o slogan de Obama, esqueçam-se os preconceitos, e beba-se lentamente, bem lentamente. Tanto o Memorium como o Yes We Can passam o exame deste pobre examinador com uma bela nota. Veremos os outros.

A queda


A nossa é uma época de imagens, e nos últimos vinte anos duas imagens deram forma à nossa compreensão dos tempos em que vivemos. A primeira foi a da queda do muro de Berlim e a segunda a do colapso das torres do World Trade Center. Estas estruturas não eram meros artefactos; era também símbolos profundamente gravados no espírito (psyche) público. O primeiro era o símbolo do totalitarismo e da Guerra Fria, a confrontação entre o mundo livre e o mundo escravizado; as segundas, o símbolo de um mundo liberal unificado pelas forças da globalização. A queda do muro de Berlim originou a crença num futuro liberal de paz e prosperidade, que fazia reviver a fé no progresso humano, que os catastróficos eventos da primeira parte do século XX quase tinha extinguido. O colapso das Twin Towers, por contraste, acendeu o medo de um novo fanatismo furioso que ameaça as nossas vidas e civilização de uma forma especialmente insidiosa. [Michael Allen Gillepsie (2008). The Theological Origins of Modernity. Chicago and London: The University of Chicago Press - Kindle Edition, Loc. 19-24]

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Não é o conteúdo substantivo da tese de Gillepsie que me interessa aqui, mas a sua referência às imagens. Estou de acordo que as duas imagens marcantes e que, de certa forma, fecham o século XX, e abrem o século XXI, são as referidas pelo autor. Aquilo que dá que pensar, no entanto, não são as crenças e as formas de existência a que essas imagens se ligam, mas as próprias imagens. Quando falamos num mundo de imagens e no facto do nosso mundo ser um mundo de imagens fazemo-lo, ainda que inconscientemente, para fugir à própria imagem. Assim, ela é signo ou símbolo de qualquer outra coisa dada na nossa existência social e histórica (o fim do comunismo ou do optimismo liberal). Isso tranquiliza-nos. Mas sob essa capa escondem-se outras camadas de sentido.

Estas imagens, que em aparência são ligadas a realidades diferentes, referem-se a uma mesma coisa: a queda. O século XXI começou, assim, sob o símbolo da queda. A queda é um velho símbolo presente na tradição judaico-cristã, um símbolo inaugural. A queda de Adão e Eva, a expulsão do paraíso, a ruína física e a degradação ontológica. Cabe perguntar, então, o que significa uma época que tem, ou que escolhe, como seu símbolo a queda? Por analogia, sabemos que é uma época de expulsão dos nossos paraísos, de ruína material e de degradação da nossa própria condição ontológica.

Na queda do muro de Berlim vimos, ansiosamente, o símbolo da liberdade. Não menos ansiosamente, pensámos na queda das Twin Towers um acto de maldade e perversidade extremas. Mas tudo isso são conversões morais que evitam olhar de frente o acontecer, a pura queda e a sua conexão com a espessa experiência da humanidade consubstanciada na simbologia religiosa da queda. Em Berlim e em Nova Iorque é um mundo que rui, por sinal o mesmo, apesar das aparências em contrário, o mundo da modernidade e do Iluminismo. Tudo isso, porém, está longe de significar uma libertação e uma emancipação. Se nos deixarmos instruir pelo velho símbolo da queda, talvez comecemos a entrever o significado desses acontecimentos.

16/01/10

Dan Dennett e os 'memes' perigosos


Uma excelente conferência do filósofo Dan Dennett, mesmo que a terapia que se desenha para a propagação de ideias perigosas possa ser ela mesmo fonte de perigo. Pode consultar a página de Daniel Dennett aqui.

Eça de Queiroz - Deixar a Europa


Acenamos um longo adeus áquelle alegre Marizac [Zé Fernandes e Jacinto, no dia em que viajariam para Portugal]. E recolhemos sem que Jacintho emergisse do silencio enrugado em que se abysmára, com braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e fortes. Depois, em frente do Arco de Triumpho, moveu a cabeça, murmurou:

- É muito grave, deixar a Europa! [Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras]

Eça de Queiroz - Os tubarões do mar humano


Ah, os Ephrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só abandonarão ou affrouxarão a exploração das Plebes, se uma influencia celeste, por milagre novo, mais alto que os milagres velhos, lhes converter as almas! O burguez triumpha, muito forte, todo endurecido no peccado - e contra elle são impotentes os prantos dos Humanitarios, os raciocinios dos Logicos, as bombas dos Anarchistas. Para amollecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis pois esperança da terra novamente posta n'um Messias!... [Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras]
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Para contemplar a ortografia do tempo e a prédica anti-burguesa do Zé Fernandes.

15/01/10

O livro do entardecer 20

agora o vento empurra a chuva
fá-la crescer contra a minha vidraça
e eu sou todo nessa chuva que cresce
quase um homem quase uma farsa

três vezes a chuva sobre mim cantou
e outras tantas me adormeci nela
água não é o que oiço contra a janela
mas o deus que um dia me sonhou

Pedro Caldeira Cabral - Balada da Oliveira

Para acompanhar a nostalgia que a chuva traz à noite.

As coisas técnicas



Esta belíssima imagem de propaganda a um transístor portátil da Grundig (1958) foi vampirizada de o Dias Que Voam, um blogue que merece bem estas vampirizações, para além de inúmeras visitas e leituras. Aliás, há lá outro anúncio notável da Grundig (1957), uma verdadeira lição de sociologia da época. Este transístor seria então, segundo a publicidade, uma jóia. Pequena, mas autêntica. Se pela autenticidade a Grundig nos assevera o seu carácter verdadeiro, oposto a uma falsificação, pela associação com uma jóia faz evocar em nós o que é belo e aquilo que resiste ao tempo, aquilo que é eterno.

Eis aqui, porém, a mentira da técnica. As coisas técnicas, na sua verdade, podem ser belas, e num momento apenas, mas não eternas. A beleza delas decairá rapidamente, para não falar no facto de serem produzidas para se tornarem obsoletas. Por exemplo, eu olho quase como a rapariga do anúncio para o meu e-book Kindle, mas sei já que ele representa o passado. A beleza que ainda entrevejo nele e o prazer que me dá na suavidade da leitura que me proporciona serão em breve ultrapassados por um novo objecto que se oferecerá imperativo, pelo saber da técnica e do design, à minha voluptosa faculdade de desejar.

Afinal, a social-democracia...


Aprender com a Europa é um artigo, de Paul Krugman, que tonifica aqueles que acham que o pacto social-democrata europeu é o que de melhor se poder almejar ao nível da vida política. A ler com atenção. Krugman, economista (Nobel em 2008) e professor da Universidade de Princeton, dirige-se aos conservadores americanos mostrando que, contrariamente ao que propagam, a Europa social-democratizante não está pior do que os EUA. Leitura também muito útil para os nossos clubes liberais. Krugman pode e merece ser lido todas as semanas no ionline.

Preparemo-nos para o pior que há-de vir


Tenho de reconhecer talento político no acordo alcançado por Isabel Alçada. Conseguir que a FENPROF o assinasse é obra. Talvez tenha razão em dizer que a sociedade acolheu bem o "virar de página" no sector da educação. No entanto, e apesar da simpatia e da gentileza da senhora Ministra, estão criadas as condições para que o pior se propague ainda com mais força.

Explico-me. O problema principal da educação não foi resolvido com o acordo. Mais, o acordo pouco ou nada contribui para a sua resolução. Serve para pacificar o sector e repõe alguma justiça na relação da sociedade portuguesa com os professores. Mas o problema número um da educação, contrariamente ao que pensava o anterior governo, reside nos alunos (não em todos, pois há excelentes alunos), na sua cultura e na cultura da sociedade portuguesa perante o trabalho, o esforço e o rigor. Por melhor que seja um professor, se o aluno não quiser estudar e trabalhar, os resultados não aparecerão, a não ser por prestidigitação, como tornar os exames tão fáceis que...

Agora que tudo está pacificado, vai voltar o tempo das ilusões, nas quais os professores, embalados pelas concessões feitas, serão cúmplices e vítimas. Que ilusões são essas? Que basta nós (refiro-me aos professores) querermos muito para que as nossas crianças, jovens e respectivas famílias deixem de ser o que são e de possuir a cultura que possuem. Que basta a acção do professores para os alunos sentirem-se motivados e passarem a estudantes exemplares. Ouvem-se os ventos rosnar. A tormenta da burocracia e do eduquês espreita, de novo, atrás da porta. Gostaria muito de estar enganado.

Jornal Torrejano, 15 de Janeiro de 2010


On-line está a edição semanal do Jornal Torrejano.

14/01/10

O livro do entardecer 19 - paixões

as paixões não são incêndios na planície
nem de labaredas se tecem os corpos
apenas um frio de fogo chega
sob o rumor da folhagem tocada pela hera

trazem uma nostalgia de movimento
para fugir à eterna imobilidade que as espera
e assim se entregam ao desmoronamento
como se a vida não fora mais que queda

Rabih Abou-Khalil - Ma Muse M'amuse