08/11/08

Sobre a esperança

Talvez a primeira grande tematização filosófica da esperança surja no Fédon, de Platão. Nesta obra, Sócrates, no dia em que vai ser executado, dedica-se a uma argumentação cerrada para justificar a crença na imortalidade da alma e, dessa forma, a vida do filósofo, uma vida de ascese e de desprendimento contínuo das coisas do corpo. Toda esta argumentação é guiada pela “bela esperança” de que, após a morte, os bons recebam uma justa recompensa, no convívio com os deuses e os outros homens bons, e os maus sofram o castigo que a sua vida na terra acabou por exigir e justificar.

Se se ler a obra de forma pouco atenta, confirmamos o texto de Platão como o fundamento originário de uma filosofia da esperança. Mas será verdade? Há dois pormenores que me fazem vacilar e desconfiar de Platão: não seria ele um génio brincalhão? Durante todo o diálogo, onde a personagem Sócrates se esforça para fundamentar racionalmente a crença na imortalidade da alma, esse mesmo Sócrates, em diversos momentos, vai relativizando a sua própria argumentação, colocando-a no condicional, impondo-lhe um império de «ses». Mas não é apenas o condicional que merece ser sublinhado. Há um pormenor irónico no texto. Logo no início, Platão escreve que o trabalho do filósofo é argumentar, enquanto o do poeta é fazer ficções. Conhece-se o destino dos poetas na República, de Platão: a expulsão da cidade, visto não se preocuparem com a verdade. Ora, quando no final do Fédon, Platão quer dar corpo à «bela esperança» escreve como um poeta e não como um filósofo que argumenta. Isto é, faz uma ficção, o chamado mito do Fédon.

Há várias explicações sobre o papel dos mitos no pensamento de Platão. Prefiro, contudo, ver aqui uma suprema ironia. No momento em que lança o fundamento de todas as filosofias optimistas e do princípio de esperança, o filósofo ateniense semeia também, através da ironia, um aviso sobre essa mesma esperança: no fundo, não passaria de uma ficção, e de uma ficção fundada numa falsificação da realidade. A esperança, quase nos diz ele – esse Platão poeta trágico que a influência de Sócrates matou –, aquece e alegra o coração dos homens bons, mas, em última análise, aquele que a propaga deve pura e simplesmente ser expulso da cidade. Talvez o optimismo racional do platonismo não seja mais do que o disfarce do pessimismo trágico que o habitaria.

1 comentário:

maria correia disse...

Talvez Platão já tivesse, numa outra imortalidade, escutado o sublime cântico do Poeta Baudelaire, falando de «l'espoir, vaincu, pleure...»...

Spleen


Quand le ciel bas et lourd pèse comme un couvercle
Sur l'esprit gémissant en proie aux longs ennuis,
Et que de l'horizon embrassant tout le cercle
II nous verse un jour noir plus triste que les nuits;


Quand la terre est changée en un cachot humide,
Où l'Espérance, comme une chauve-souris,
S'en va battant les murs de son aile timide
Et se cognant la tête à des plafonds pourris;


Quand la pluie étalant ses immenses traînées
D'une vaste prison imite les barreaux,
Et qu'un peuple muet d'infâmes araignées
Vient tendre ses filets au fond de nos cerveaux,


Des cloches tout à coup sautent avec furie
Et lancent vers le ciel un affreux hurlement,
Ainsi que des esprits errants et sans patrie
Qui se mettent à geindre opiniâtrement.


— Et de longs corbillards, sans tambours ni musique,
Défilent lentement dans mon âme; l'Espoir,
Vaincu, pleure, et l'Angoisse atroce, despotique,
Sur mon crâne incliné plante son drapeau noir.

(Recordo que Leo Ferré canta isto com todas as forças da alma...de Poeta)