29/11/08

Questões de linguagem


Diz o Sol que Jerónimo de Sousa reforçou o léxico marxista. Este teria voltado em força, depois da liderança de Carvalhas. É provável que assim seja. Mas o problema não terá a ver com a diferença de personalidades, mas residirá noutro lado. No tempo de Carvalhas, ainda não era claro o que significava o triunfo global da ideologia liberal. A possibilidade de democracias fundadas em economias de mercado, mas com amplas classes médias, não se tinha esfumado. Hoje, como já há uns anos a esta parte, é notório o caminho que o Ocidente decidiu trilhar. A social-democracia converteu-se ao imaginário liberal e tem-se assistido ao retraimento das classes médias, à sua pauperização, à sua proletarização.


O exemplo mais interessante em Portugal é o dos professores. Até ao governo de Sócrates, os professores, pelo seu número, representavam um sector estruturante das classes médias portuguesas, nomeadamente na província. Mas o novo estatuto da carreira docente, que implica perdas salariais ao longo da carreira entre 25% a 50%, deu início ao processo de proletarização do professorado português. Depois, ainda ficam admirados da influência da FENPROF e do senhor Mário Nogueira. Este exemplo, é apenas um sintoma do que se vai seguir, do nascimento de novas formas de proletarido, já não idênticas ao operariado tradicional, mas talvez não menos radicais (veja-se ainda o caso dos professores).

Isto foi a janela de oportunidade para o PCP retornar aos seus bons velhos tempos. É isto também que permite a Jerónimo de Sousa dizer com convicção coisas tão extraordinárias como «Sabemos do ódio que provocamos nos nossos inimigos». Se as elites políticas, mesmo as sociais-democratas, decidem aceitar como o único argumento válido o liberal, não podem esperar que o terreno social fique tranquilo. Se não se quer uma sociedade onde um Partido Comunista tenha influência, então que se abandone o sonho maximalista presente na ideologia contemporânea e se volte ao ideário grego da justa medida e do meio-termo. Só em sociedades equilibradas se evitarão alternativas radicais. O renascimento do radicalismo marxista, mesmo que seja apenas um facto lexical, mas não o é, é apenas o contraponto do radicalismo que tomou conta das elites económicas, sociais e políticas. Não há nada de novo sob o Sol.

O caso único do PCP

Titula o Público, a propósito de mais um congresso do PCP, o seguinte: PCP é caso único de influência na Europa. Mas não será também Portugal um caso único na Europa? Não será a sociedade portuguesa, com a sua injustiça e ineficiência social estruturais, com as suas elites políticas e económicas degradantes, caso único por essa Europa fora? Se o PCP persiste como um partido com implantação efectiva, o mérito não será apenas dele. Os outros partidos e as elites económicas, sociais e políticas, têm dado a sua relevante contribuição. E, nas próximas eleições, isso será ainda mais visível.

Um belo enxerto

É evidente que o desrespeito que o ME tem mostrado pelos professores não tem nada a ver com o acontecimento. Também é verdade que a perspectiva disciplinar da senhora ministra da Educação não contribuiu um pouco que seja para o evento. O que aconteceu fui mais um caso isolado, no qual uma professora de Gondomar teve azar de querer dar a aula e de repreender o aluno errado, levando-o ao Conselho Executivo. Mas errado porquê? Porque era muito mais forte do que ela e, do alto dos seus 16 anos, deu-lhe uma belo enxerto de pancada. Deve ser isto que dignifica a escola em Portugal (aqui).

28/11/08

Direitos do homem

Wo Weihan e a filha

Foi executado hoje o cientista bioquímico chinês Wo Weihan. Era acusado do crime de espionagem a favor de Taiwan. Todos nós sabemos o que vale esta acusação num regime totalitário, e a China é de facto um regime totalitário. E em que dia foi ele executado? Precisamente no dia que a China e a União Europeia se reuniram para debater o problema dos direitos humanos. Não há melhor mensagem do que a execução de um "traidor". Mas isto não mostra apenas o desprezo que o regime comunista chinês tem pelos direitos do homem. Mostra o profundo desprezo que tem pela União Europeia. De facto, na ordem política internacional só há duas coisas que contam: o potencial militar e o económico. Os europeus há muito que se esqueceram do primeiro e, devido à sua fragilidade, começaram já a declinar no segundo.

Jornal Torrejano, 28 de Novembro de 2008

Online está já a nova edição do Jornal Torrejano. Para primeira página foi chamado o problema do contínuo esvaziamento do Hospital Rainha Santa Isabel, de Torres Novas: as cirurgias estão ameaçadas. Destaque também para as memórias de Joaquim Santana e do Rancho de Riachos, num livro editado pela Câmara Municipal. Referência ainda para a presença em Torres Novas de Carlos Carvalhas, para explicar a crise financeira internacional.
Na opinião, comecemos com o cartoon de Hélder Dias. Depois, Carlos Henriques escreve Leixões continua à frente; Inês Vidal, Golpe cirúrgico; José Ricardo Costa, M&M'S; Miguel Sentieiro, Interpretações Galináceas; Santana-Maia Leonardo, Os palhaços.
Para a semana, assim o queiram os imortais, haverá por aqui mais notícia do Jornal Torrejano. Até lá, sempre podem dar uma saltada ao site do JT, para ver aí o que acontece por cá. Bom fim-de-semana.

João Queiroz na Quadrado Azul

Óleo s/tela, sem título - 2008 (do site da Galeria Quadrado Azul)

João Queiroz é, hoje em dia, um dos mais importantes nomes da pintura contemporânea portuguesa. Até 20 de Dezembro, estarão expostas nove pinturas a óleo, na galeria Quadrado Azul, em Lisboa. Marcada pela formação orginal do pintor, fez Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa, a exploração do conceito de paisagem remete para uma dimensão metafísica, ou antes para a presentificação da ideia de paisagem no mundo sensível, que é a tela e os materiais pictóricos que lhe dão vida e movimento.

27/11/08

Enrico Pieranunzi Quintet a Umbria Jazz 2008

Fé na ciência

A ciência é, à partida, uma construção racional. O curioso, porém, é que ela não consegue desligar-se do proselitismo religioso e da necessidade de cultuar os seus santos mártires, e, entre estes, o mais elevado, Galileu Galilei. Aqui, em pleno acto litúrgico, 35 investigadores lêem "Poema para Galileo".

Fé política e copos de água

Na Roménia, ainda parece haver fé nas diferenças políticas. Ver aqui. E se a fé move montanhas, mais facilmente move copos de águas.

Bombaim



O Islão poderá ser alguma vez uma parte, apenas uma parte, entre outras da cultura e da civilização humanas? Todas as religiões, ou quase todas, possuem um impulso imperialista e colonizador. Mas aos poucos esses impulsos foram-se domesticando e os sectários foram tornando-se menos sectários e aprenderam a conviver com a diferença. Por certo, haverá milhões de muçulmanos não fanáticos e desejosos de serem muçulmanos entre cristãos, judeus, hindus, budistas, ateus, agnósticos, etc. Mas também é verdade que são raros os lugares onde existem muçulmanos onde os conflitos, o terrorismo, o proselitismo ameaçador não sejam uma realidade. Agora, foi Bombaim a barbaramente atacada, como já foram tantos outros lugares. Basta ver certos comentários, para perceber que muitos muçulmanos se acham vítimas universais e que, por isso, o terror, todo o terror, está justificado. O Islão está a tornar-se, aos olhos dos não islâmicos, uma ameaça global.

26/11/08

Cristina Branco - Redondo Vocábulo (José Afonso)

Cristina Branco, por sugestão da Graça Martins (Índigo).

Do lado do mais forte

Segundo o Público, «Exames médicos no privado são mais rápidos sem credencial, denuncia a DECO». É muito interessante observar como estes «pequenos» mecanismos de agilização dos serviços anulam o papel do Estado no combate às desigualdades sociais. Talvez seja o mercado a funcionar. A verdade, porém, é que a sociedade não se compõe apenas de relações mercantis e estes truques têm apenas por finalidade fazer com que os mais frágeis se fragilizem mais e os mais fortes se fortaleçam. Onde a consciência moral não funciona, deverá entrar o direito e a sua aplicação. Mas o que fazer num país onde a consciência moral, o direito e a política estão sempre do lado do mais forte?

25/11/08

Haraquiri

A geração dos 30 anos irá perder cerca de 60% da reforma, segundo os novos métodos de cálculo das pensões. O problema não será apenas de retorno ao incentivo da poupança, para fazer frente a um futuro incerto e sem protecção. O problema está centrado no modelo de sociedade pelo qual enveredámos. E a culpa não pode ser atribuída à geração que agora tem 30 anos. O défice demográfico, a desregulação do mercado de trabalho, o hedonismo triunfante são factores que condicionam claramente a erosão do nível de vida das várias gerações. Que não se discuta a forma como o país vive, que não se discuta a qualidade de vida dos portugueses, que não se discuta o importante papel das famílias na estruturação da sociedade, que não se faça nada disso é mais um sintoma do haraquiri que nós portugueses, submetidos ao nosso capitalismozinho de sarjeta, estamos a cometer.

Pressões

Ontem foi uma professora de Vialonga a alvitrar pressões. Hoje foi a Directora Regional da Educação do Norte que falou na pressão sobre professores para não entregar os objectivos da avaliação. Daí, segundo a Meretíssima Directora, a DEGRE sentiu-se pressionada a disponibilizar um modelo para preenchimento on-line dos objectivos. Eu, como professor, declaro solenemente e para que conste que ainda não fui pressionado por nenhum outro professor para não entregar os objectivos da minha avaliação. Parece que a pressão quando nasce não é para todos. Também esta discriminação me começa a cansar.

A lei da gravidade

Consta que o Banco Privado Português vai cair. Ninguém lhe pega, ninguém parece dar-lhe ajuda. Mas a questão que ocorre perguntar é se esse banco que está prestes a sentir os efeitos da lei da gravidade alguma vez esteve efectivamente de pé?

Um bocejo

Ando cada vez com menos paciência. Até para estes escândalos, como é o caso do BPN. Depois, há em tudo isto um pequenez insuportável. Desde a guerra entre Cadilhe e Constâncio ao comunicado do Presidente, às acções de Dias Loureiro, tudo isto parece uma telenovela sul-americana da pior extracção. Se nós quisermos perceber a miséria atávica de Portugal, não é preciso ir à procura dos pobres, dos desempregados e dos sem-abrigo. Basta olhar para o esplendor da elite política do cavaquismo. Mas não se pense que o problema é só dessa gente. Chegará em breve a vez do espectáculo dos actuais socratistas. A coisa já nem provoca dor de alma; quanto muito, um bocejo.

23/11/08

O filme A Turma e a diferenciação pedagógica

Ontem fui ver ver o filme de Laurent Cantet, A Turma. Falarei dele aqui algumas vezes, não do ponto de vista artístico, mas sobre aquilo que ele mostra do ensino em França. Não esqueçamos que o filme ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes, e é baseado num romance autobiográfico de um professor, François Begaudeau. Comecemos então.

É de França que vem a principal artilharia teórica sobre a «diferenciação pedagógica», essa ideia sublime que obriga um professor, numa aula, estar a dar uma série de aulas diferenciadas em conformidade com o desenvolvimento de cada aluno. Ora a turma que o filme mostra, uma turma do ensino básico, é composta por gente da mais diversa origem étnica e com graus de desempenho escolar bem diferentes. Nunca, no filme, se ouviu falar em diferenciação pedagógica, nem se viu o professor a dar aulas para diversos grupos. Pelo contrário, a aula era dada a todos os alunos ao mesmo tempo, com a mesma matéria e a mesma «estratégia» (uma palavra muito ao gosto dos nossos governantes e de certos professores convertidos ao eduquês e ao burocratês).

A diferenciação pedagógica dos franceses é boa para as escolas portuguesas e para martirizar os bons professores portugueses através da sua obrigatoriedade, segundo o extraordinário Estatuto da Carreira Docente, elaborado pela a actual governação. Dito de outra maneira: a diferenciação pedagógica é boa para os cafres.

O cheiro do BPN

Parece que o BPN cheira mesmo bastante mal. É tal a intensidade do fedor que o próprio Presidente da República decidiu vir esclarecer que não foi ele que se descuidou. Algo vai podre no Reino da Dinamarca.

22/11/08

Wagner -- Götterdämmerung -- Hagen's Watch (Salminen)

Uma ópera em honra da banca portuguesa.

21/11/08

A Igreja e os professores

Sabem por que motivo a Igreja Católica está do lado dos professores no confronto destes com a ministra (ver aqui)? Pelo simples motivo de andar nestas coisas há 2 mil anos. Isso permite-lhe perceber o fundamental e distinguir o essencial do acessório. E se há uma coisa de que não se pode acusar a Igreja de falta de experiência, essa coisa é o ensino e a educação. Eu, como professor e não pertencendo à Igreja Católica, quero aqui deixar a minha gratidão à conferência episcopal portuguesa que desde a primeira hora percebeu, melhor do que ninguém, as razões dos professores.

Jornal Torrejano, 21 de Novembro de 2008

Nova edição on-line do Jornal Torrejano. Para "primeira" página foi escolhida a visita próxima do Presidente da República, para inaugurar o novo edifício da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes. Destaque para a justa homenagem a José Trincão Farinha, meu antigo colega de escola, desaparecido há meses. Referência ainda para o padrão henriquino de Torres Novas, o único existente em todo o país.

Na opinião, como é hábito, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Na opinião escrita, Carlos Henriques escreve Leixões gelou Alvalade, Carlos Nuno, Habituados a tudo, Inês Vidal, Dar, mas pouco, José Ricardo Costa, Matar o Outro, Santana-Maia Leonardo, O PSD e Ourém.

Aqui fica então a notícia das notícias do Jornal Torrejano. Queiram os fados, e para a semana haverá mais Jornal Torrejano por este blogue. Bom fim-de-semana.

20/11/08

Tem pena

O Presidente da República fez-me lembrar o seleccionador Queiroz. Este, depois de levar seis do Brasil, veio dizer que estava ele e estavam os jogadores todos muito frustrados. Com esta palavra, Queiroz disse que aquilo não era um problema futebolístico, mas meramente psicológico, uma frustração. Também o estimável Presidente da República tem pena que o seu apelo à serenidade nas escolas não tenha resultado. Formado na mesma escola do seleccionador Queiroz, o Presidente remete o acontecimento político para a esfera do sentimento: foi uma pena. Com isto, também, Cavaco Silva sacode a água do capote. Mas ele deu cobertura a todas as malevolências que o governo se lembrou de fazer aos professores, desde o totalitário Estatuto da Carreira Docente até ao supinamente iníquo concurso para professor titular. Assistiu, impávido, sereno e cooperante, aos delírios burocráticos da senhora ministra e dos seus ajudantes. Agora que as escolas estão num caos vem, quase como Pilatos, lavar as mãos, mas cheio de pena. Não são os professores os responsáveis pelo que se está a passar. Há responsáveis e eles têm nome. Também aí figura o de Cavaco Silva, não só por cooperação com uma das partes, mas também por omissão.

Brasil 6 - Portugal 2

Pronto, lá tinha de ser. Abro o computador, ligo-me à Internet e o resultado da selecção cai em cima de mim que nem um bombardeamento colateral americano. Fomos goleados e humilhados pelos brasileiros. Como sempre pensei, Scolari não fez um trabalho bom em Portugal. Fez um trabalho excepcional. Foi quase um deus: criou do nada uma selecção de topo mundial. Mas aquilo estava mesmo ligado ao seu poder. Agora estamos a voltar à nossa real dimensão. Depois, Carlos Queiroz bem podia continuar a ajudar o senhor Fergunson, ou lá como se chama o treinador do Manchester United. Ele aí era mesmo bom. Sobre o nosso apuramento, não havendo Scolari ainda há a Nossa Senhora de Fátima, para além do Prof. Queiroz.

19/11/08

THE TURTLES - Happy Together (1967)

Eis o espírito dos anos 60. No fundo, aquilo não passava de uma garotice pegada. Mas, como diria o velho Kant, a inocência é uma coisa muito bonita, mas corrompe-se com facilidade.

Os que ensinam e os que mandam

É que uma certa superstição pueril fazia-me perder todo o espírito crítico; quando ganhei mais coragem, afastei de de mim aquele denso nevoeiro e convenci-me de que se deve acreditar mais nos que ensinam do que naqueles que mandam. [Santo Agostinho]

Moderação e ponderação

Tínhamos dito, no princípio da nossa discussão de hoje, que se provássemos que a infelicidade não era outra coisa que indigência, admitiríamos que quem não é indigente é que seria feliz. Ora bem, acabamos de o provar: ser feliz consiste em não ser indigente, ou seja, em ser sábio.

Mas se quiserdes saber, no entanto, o que é a sabedoria (coisa em que a razão, na medida do possível, tem meditado) dir-vos-ei que ela consiste na moderação da alma, isto é, na sua própria ponderação a fim de que nada se derrame, nem de mais, nem de menos, do que o exige a plenitude. [Santo Agostinho, Diálogo sobre a Felicidade]

18/11/08

Abandonada à preguiça da tarde

Edgar Degas - Bather Stretched out on Floor (1886/88)

Abandonada à preguiça da tarde
escuta o silêncio que cobre a casa
e faz de cada pulsação um lírio tomado
pela ânsia do que não chega.

Fora noite ou um dia de Julho
e tudo brilharia naquela pele:
os seios, o ondulado ventre,
a esquiva face ou o baldio
que se abre no limiar do corpo.

Em tanta nudez se esconde o desejo:
uma mão que passa leve,
o suave ardor de uns lábios,
a carne mutável incendiada de azul
a cantar no fundo cobreado de um olhar.

Monteverdi - Orfeo - Rosa del Ciel

Fabricador de imagens

Por conseguinte, a afinidade inegável da mentira com a acção, com a mudança no mundo – em resumo, com a política – está limitada pela própria natureza das coisas que estão abertas à faculdade humana da acção. O convencido fabricador de imagens cai em erro ao acreditar que pode antecipar as mudanças mentindo sobre questões factuais que toda a gente deseja eliminar de qualquer maneira. A edificação das aldeias de Potemkine, tão cara aos políticos e propagandistas dos países subdesenvolvidos, não conduz nunca ao estabelecimento de algo em concreto, mas apenas a uma proliferação e perfeição da ilusão. [Hannah Arendt, Verdade e Política]

O pior ministro

Eu não quero ser desagradável com o ministro Teixeira dos Santos. Nem quero levantar suspeitas sobre o mérito da ideia de avaliação de professores. Por falar em avaliações, o Financial Times (aqui)decidiu avaliar os ministros das Finanças da União Europeia. Resultado da questão: o nosso bravo Teixeira dos Santos lá surge como o pior dos ministros. Mas quem foi avaliado como o melhor? Foi o ministro finlandês. Sabe o leitor que na Finlândia nem sequer existe avaliação formal de professores? Mas o que é que uma coisa tem a ver com outra? Aparentemente nada, mas na verdade tudo. É porque os dirigentes portugueses são o que são que o país está onde está. Nestes casos quem dirige não se vai voltar contra si, escolhe um bode expiatório. Em Portugal, foram escolhidos os professores do ensino público. É evidente que o ministro é mau, o primeiro-ministro é uma nódoa e a classe empresarial, tirando honrosas excepções, está ao nível do ministro e do chefe deste. Culpados? Os professores que não querem ser avaliados. Não compreendo como é que a Finlândia, sem o nosso extraordinário e inovador sistema de avaliação de professores, consegue estar em primeiro lugar na economia e na educação. Mas será que José Sócrates teria alguma hipótese de carreira política na Finlândia?

Tu quoque, Brute, fili mi?

É como quem diz: «Até tu, Brutus, meu filho?» Foi o que deve ter pensado a ministra da Educação quando soube da posição do Conselho de Escolas, organismo saído da fértil imaginação da 5 de Outubro, na sua estratégia de combate aos professores portugueses e de destruição da escola pública. Agora o próprio monstro voltou-se contra o criador. É a vida, como diria o outro

Suspendamos então a democracia..

Eu confesso que simpatizo bastante com a senhora. Acho que ela é uma pessoa boa e uma pessoa de bem. Acho também que ela é uma pessoa séria. Também confesso que nunca votarei nela, embora não saiba em quem votar. A senhora é infinitamente mais credível de que o seu antecessor, aquele senhor da Câmara de Gaia. Mas ela também não tem grande jeito para o negócio. Então não decidiu, segundo o Público, dizer coisas como estas: "Eu não acredito em reformas, quando se está em democracia...". "Quando não se está em democracia é outra conversa, eu digo como é que é e faz-se", observou em seguida a presidente do PSD, acrescentando: "E até não sei se a certa altura não seria bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia".

Estes ditos da líder do maior partido da oposição, numa democracia, revelam duas tristes coisas: primeira, a cultura democrática da nossa direita, e a esquerda escusa de se estar a rir, deixa muito a desejar. No fundo, Ferreira Leite disse aquilo que uma parte do país pensa, mas pensa mesmo, e não só à direita, diga-se de passagem; em segundo lugar, as organizações políticas portuguesas estão incapazes de gerar líderes politicamente preparados.

Talvez a senhora tenha razão: que tal suspender a democracia e o país por seis meses, para ver se descobrimos líderes sensatos e preparados para a direita e para a esquerda, já agora. As coisas não vão bem para o lado da laranja...

17/11/08

Chavela Vargas - La llorona

Susana Harp - La Llorona

Lila Downs - La Llorona

O cabecilha da multidão

A multidão é a mentira. É por isso que, no fundo, ninguém despreza mais a condição do homem do que aqueles que fazem profissão de estar à frente da multidão. Que um destes cabecilhas veja um homem vir ao seu encontro: certamente, não lhe liga; é demasiado pouco; manda-o embora orgulhosamente; não recebe menos que centenas. E se houver mil, inclina-se então diante da multidão e distribui muitos salamaleques; que mentira! Não, quando se trata de um homem isolado, há que exprimir a verdade, respeitando a condição humana; e se talvez, segundo a linguagem cruel, se tratar de um pobre diabo, há o dever de o convidar para casa para a melhor sala, e se se tem várias linguagens, empregar a mais caritativa e a mais amiga; esta conduta é a verdade. [Sören Kierkegaard, Ponto de vista explicativa da minha obra como escritor]

De duros golpes está...

Um duro golpe! É o que terá acontecido à ETA, segundo José Luís Zapatero, presidente do governo espanhol (aqui). O pior é que já ando por cá há uns bons anos e duros golpes destes não têm conta. Mas a ETA sempre se foi levantando e os atentados lá foram continuando com o seu rosário de sangue e de terror. Que estranho destino o dos homens políticos: nunca são capazes de se eximir às banalidades que em breve serão cabal e atrozmente desmentidas. Zapatero não teria mais nada para dizer? Não seria melhor estar calado? De duros golpes destes está o inferno cheio.

Afinal, sempre é tolerável

Dissemos aqui que é intolerável que os alunos andem a despejar ovos sobre os governantes. Mais uma vez não consegui estar de acordo com o governo de José Sócrates. Afinal a senhora ministra e os seus ajudantes de campo gostaram imenso da chuva de ovos. Num ápice, alteraram o estatuto do aluno, segundo os critérios dos lançadores de ovos. E deram, estes governantes, mais um notável exemplo ao país: se não gostarem de uma política, lancem mão da estratégia da gemada. Do ponto de vista político, a acção visa centrar todo o combate na derrota e humilhação dos professores. É esta a coroa de glória do governo. Destruir os docentes, nem que para isso se apresente de forma cobarde perante as travessuras de adolescentes com hormonas em ebulição. Parece que não têm vergonha. Vergonha só têm se abandonarem as irracionalidade que fizeram relativamente aos professores. Isso sim, é vergonhoso. Eis um exemplo luminoso do que significa o socratismo: a pura nulidade.

16/11/08

Professores: a manifestação de ontem

Há uma coisa que deveria preocupar o governo, do ponto de vista político, relativamente ao conflito com os professores: a manifestação de ontem (ver aqui). O elevado número de participantes, certamente muitos mais do que o cálculo da polícia, mostra que existe pelas escolas portugueses uma enorme quantidade de professores que não só está disposta a enfrentar a política governamental, como não é domesticável pelos sindicatos. Este sinal talvez seja pior do que os 120 mil na manifestação do sábado anterior. Isto para não falar do total corte existente entre docentes e as gentes que os pastoreiam desde a 5 de Outubro. Os interesses dos alunos e do país, para além do bom-senso, mandariam mudar de pastores. Mas parece que a única coisa importante é a face do governo ou a sua vergonha; ou a falta dela, digo eu.

Camané em Torres Novas

Ontem, assisti, julgo que pela primeira vez na vida, a um espectáculo de fado. Durante muito tempo, o fado era uma expressão musical completamente estranha para mim. Há uns anos a esta parte, porém, fui, como noutras coisas, alterando a minha posição proveniente da radicalidade da juventude. O reconhecimento da grandeza de Amália Rodrigues foi a primeiro passo. O segundo foi o fado de Mísia e da nova geração de fadistas. Há uns tempos, reconheci que Carlos do Carmo merece ser ouvido com atenção e descobri um artista excepcional. Camané.

Camané apresentou-se ontem no Cine Teatro Virgínia, em Torres Novas, num belíssimo espectáculo. Acompanhado por uma guitarra portuguesa, uma viola e um contrabaixo (este densifica a tecitura musical). A apresentação evita qualquer exuberância, estando tudo ordenado por aquilo a que eu chamaria uma estética da contenção. A emoção que o fado pretende cantar e fazer surgir no ouvinte é trabalhada de forma a fugir a toda a facilidade. A emoção não explode na exterioridade pública, mas subjectiviza-se, cresce no interior do ouvinte e o fadista, pois Camané é um fadista na total acepção do termo, nunca cede àquilo que o público anseia no seu imediatismo. É muito curioso que no espectáculo de ontem a maior ovação dada foi a um tema, que explora através de um ritmo forte as emoções do espectador, apenas tocado pelos acompanhantes, não estando Camané no palco.

Mas não nos iludamos. Há uma mestria exemplar no domínio da relação com o público. Isso permite que muitos dos textos cantados sejam bastante interessantes, ao mesmo tempo que o artista conduz, lenta mas decedidamente, o espectáculo ao paroxismo, sem nunca ceder ao espalhafato, sem nunca abandonar a contenção. Quando o espectáculo termina, o público está completamente rendido e obriga Camané a dois "encore".

Há uma coisa que ressalta deste espectáculo, como certamente de muitos outros dados pelo artista: o fado contém um potencial musical que ainda pode surpreender e levar-nos muito para além das rotinas em que tinha caído nas décadas de sessenta e setenta.

14/11/08

A Índia na Lua

A Índia chegou à Lua. Mas o facto essencial pouco tem a ver com a exploração interplanetária. O grande acontecimento é político e mostra para onde o poder mundial se começa a deslocar. Lentamente, é um facto. Mas inexoravelmente.

Portas e o CDS

Paulo Portas é o único candidato à liderança do CDS. Há duas perguntas que se colocam. Para que serve Portas ao CDS? E, a segunda, para que serve o CDS à sociedade portuguesa? Apesar de as perguntas serem duas, a resposta é única: são irrelevantes.

A serenidade de Cavaco

O Presidente da República apelou hoje à serenidade dos protagonistas e ao desanuviamento do clima que se vive nas escolas. Fez bem. Mas teria sido interessante que o Presidente da República tivesse evitado este clima. Ele promulgou toda a legislação que visava humilhar, desacreditar e destruir os professores da escola pública portuguesa. É preciso não esquecer o papel de Cavaco no processo e o apoio directo ou indirecto dado à ministra da Educação. Agora que a política educativa começa a mostrar os seus frutos, Cavaco apela à serenidade. É pena que se tivesse esquecido dessa mesma serenidade quando o Ministério da Educação espezinhava os professores portugueses, como se estes fossem cidadãos de segunda ordem. Quem semeou os ventos, agora colhe as tempestades. E Cavaco Silva está muito longe de ter as mãos limpas, no mais tenebroso processo de perseguição a um grupo profissional de que há memória.

Jornal Torrejano, 14 de Novembro de 2008


Na opinião, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Continue-se, depois, com a opinião escrita. Carlos Henriques escreve A lotaria dos penalties, João Carlos Lopes, Herói improvável, José Ricardo Costa, A síndrome de Arquelau e Santana-Maia Leonardo, Inimigos da escola.

Por fim, sempre pode ir vendo as notícias do dia-a-dia aqui da zona. É o que se chama informação local com dimensão global. Então, até sexta-feira, assim o queiram os deuses. Bom fim-de-semana.

13/11/08

Também outros sonharam assim o paraíso

George Pierre Seurat - Final Study for "A Sunday Afternoon on the Island of La Grande Jatte"

Também outros sonharam assim o paraíso
e viram na água uma prova de Deus
e nos barcos a esperança ondulada
de uma eterna felicidade.

Naqueles tardes de domingo,
onde uma angústia azeda
se inscreve na lentidão dos corpos,
vinham homens e mulheres e crianças
olhar de tão perto aquele lugar
e todos se julgavam já imortais,
mesmo se havia sombrinhas
nas mãos e cães por ali a farejar.

São assim, de água e sol, os nossos paraísos.
Ali vemos homens, e se os pintamos
como deuses, logo chegam os cães
a latir pela tarde dentro ou a rosnar
como se aquele jardim fosse o seu
e o nosso paraíso, não mais do que
um belo lugar onde pudessem urinar.

Intolerável

Isto está a tornar-se intolerável. Os alunos não podem andar a despejar ovos sobre os governantes da educação. Quem está por detrás deles deveria ter vergonha do que anda a fazer. Mas isto não significa, porém, que esta equipa ministerial esteja inocente. Deitaram a palha e atearam o fogo. Esqueceram-se que não eram bombeiros. As escolas precisam de paz para trabalhar. Chegou a altura daqueles que conduziram a educação a este estado se irem embora. Mais valia que fossem pelo seu próprio pé. Mas, repito, os alunos devem comportar-se civilizadamente. As liberdades não estão suspensas. Seria bom que os professores, dentro das suas possibilidades e elas são poucas, pois durante 3 anos foram desgastadas, pelo ME, até mais não poder, dissuadissem a criançada com as hormonas em ebulição de fazer estas tristes figuras.

Da origem do cansaço

Para dizer a verdade, este blogue anda um pouco preguiçoso. Pior do que a preguiça é o cansaço, para não dizer o desinteresse, das coisas do mundo. Não faltam motivos para escrever. O Obama ganhou as eleições, a dr.ª Ferreira Leite fez um acto de contrição, o pandemónio educativo, o estranho caso do BPN e a mais nova e original via - portuguesa, claro - para o socialismo, a recessão técnica na Alemanha (nem imaginam como eu gosto da expressão "recessão técnica"), o caso da Assembleia Regional da Madeira e o deputado do partido do senhor Monteiro, a queda do preço do petróleo, e, para animar a festa, aquele caso de um funcionário da EPUL, que reenviou para colegas de trabalho um email com um trocadilho com um cartaz eleitoral de Obama a apelar para não votar em branco, e que agora está ser alvo de um processo disciplinar visando o despedimento com justa causa. Como se vê motivos não faltam.

Mas serão mesmo motivantes estes motivos? A mim têm-me motivado pouco. É apenas o preenchimento do calendário da miséria e da indigência humana. No fundo, não há qualquer novidade. Só uma repetição infinita de tudo o que já sabemos sobre a humanidade. E esta repetição, por vezes, cansa.

Josh Rouse - Quiet Town

O clima escolar

Tenho, nos últimos tempos, evitado falar muito da situação das escolas. Mas este governo conseguiu uma coisa notável: as escolas estão completamente destabelizadas e os processos de aprendizagem podem, de um momento para outro, começar a sofrer gravíssimos rombos. O clima das escolas está completamente deteriorado, infestado por uma burocracia inacreditável, por um desânimo dos profissionais nunca visto, profissionais esses que se sentem presos e perseguidos. Desde o primeiro momento que o Ministério de Lurdes Rodrigues decidiu trucidar os professores. Fez deles bodes expiatórios e foi sempre de uma arrogância e de uma insensatez desmedidas. Quando a senhora ministra e os seus ajudantes de campo saírem, os estragos serão enormes e a recuperação da escola pública poderá ser impossível. Seria isto o que se pretenderia?

11/11/08

Os ramos crescem na leveza do dia

Paul Cezanne – House and Trees (1890-94)

Os ramos crescem na leveza do dia
e deitam seus dedos vegetais
lá para o sítio onde os pássaros
desenham círculos em voos irreais.

Mas se os telhados apontam as nuvens
e se os homens sob eles se juntam
é para cantar a luz que do sol cai
ou escutar o rumor dos anjos que passam.

Casas e árvores na terra raízes têm,
mas só o vento as afaga pelo dia:
ali cresce uma telha no silêncio
ou um ramo cai dorido na melancolia.

CAMANÉ - "Sei de um Rio"

Escola e desobediência civil

No Público, um excelente artigo de Aires Almeida, professor de Filosofia em Portimão, sobre o que se passa nas escolas e sobre a ideologia totalitária subjacente à política em curso. Clara, também, é a sua justificação da necessidade da desobediência civil. É, de facto, um problema de justiça e de defesa da liberdade de ensinar.

09/11/08

Tito Gobbi - Otello - Credo in Dio crudel

A essência do conflito

Diz Marco Aurélio (Pensamentos, XI.29): «Na arte da escrita como na leitura não chegarás a mestre sem primeiro seres discípulo. Mais verdadeiro é isso na vida».

E aqui está resumido todo o conflito que opõe professores e ME. Parece estranho e, no entanto, é esta a essência do conflito. Não é que as crianças e adolescentes, na sua generalidade, queiram arvorar em mestres. Não. Eles dispensam a mestria, mas também o discipulato. Na verdade, para muitos dos alunos nada disso lhes interessa. Querem divertir-se e isso é o suficiente.

A este pequeno problema, soma-se o problema essencial: o ME acha que os alunos devem ser mestres de si-próprios, sendo os professores uma espécie de gestores das aprendizagens ou, como diz o Zé Ricardo Costa, auxiliares de acção educativa. A essência desta aberração manifesta-se em coisas como a escola centrada no aluno, as ditas pedagogias activas e mais um conjunto de banalidades e de contra-sensos que fazem parte de uma certa ideologia que se disseminou no sistema de ensino. A avaliação de professores não visa avaliar gente que ensina, mas uma espécie de gestores de aprendizagens, aprendizagens essas que os alunos realizariam por si desenvolvendo a sua autonomia, talvez auxiliados pelos vários magalhães agora democratizados.

Esta utopia choca com o ensinamento que desde os primórdios da civilização ocidental se constituiu e choca com a própria realidade, como parece que toda a gente vê, menos o ME, o primeiro-ministro e umas quantas personalidades e figuras dependentes do governo.

Marco Aurélio, um pobre idiota que defende que antes de se ser mestre há que ser discípulo, certamente seria expulso da escola do engenheiro Sócrates e da socióloga Lurdes Rodrigues. Talvez pedisse a reforma, se tivesse idade para isso. Mas daqui a 30 anos quem se lembrará de Sócrates ou de Lurdes Rodrigues. E, no entanto, a palavra de Marco Aurélio continuará nova, sensata e friamente objectiva. Para a escola e para a vida.

Alfredo Barroso - Bafio antidemocrátio


O PROBLEMA desta ministra da Educação, para além do óbvio autismo que a imobiliza e a suspende no tempo, é o seu profundo desprezo pelos professores, pelos sindicatos, pelos partidos políticos e pelo debate democrático. Em suma: por todos os que a contestam.

Quem a viu, ontem, nas televisões, a chispar ódio, a vomitar ressentimento e a destilar rancor por todos os poros, percebeu sem dificuldade que há nela algo de salazarento, como que um cheiro a bafio antidemocrático que nos faz recuar várias décadas, até ao tempo da outra senhora, em que prevalecia a ditadura do «quero, posso e mando».

O engº Sócrates que se ponha a pau. A manifesta incompetência política da drª Manuela Ferreira Leite é uma coisa, que pode favorecê-lo eleitoralmente. Outra, bem diferente, é a intolerável prepotência política da drª Maria de Lurdes Rodrigues, que pode estragar-lhe os cálculos eleitorais e, sobretudo, tramar o PS, lançando-o pelas ruas da amargura.
[Alfredo Barroso - Traço Grosso]

08/11/08

Os anos perdidos

Sobre os anos perdido na educação, ver no Portugal dos Pequeninos o post de João Gonçalves. Relativamente à avaliação diz, depois de considerar a "ideia" boa: "O método é execrável e politicamente abstruso".

Sobre a esperança

Talvez a primeira grande tematização filosófica da esperança surja no Fédon, de Platão. Nesta obra, Sócrates, no dia em que vai ser executado, dedica-se a uma argumentação cerrada para justificar a crença na imortalidade da alma e, dessa forma, a vida do filósofo, uma vida de ascese e de desprendimento contínuo das coisas do corpo. Toda esta argumentação é guiada pela “bela esperança” de que, após a morte, os bons recebam uma justa recompensa, no convívio com os deuses e os outros homens bons, e os maus sofram o castigo que a sua vida na terra acabou por exigir e justificar.

Se se ler a obra de forma pouco atenta, confirmamos o texto de Platão como o fundamento originário de uma filosofia da esperança. Mas será verdade? Há dois pormenores que me fazem vacilar e desconfiar de Platão: não seria ele um génio brincalhão? Durante todo o diálogo, onde a personagem Sócrates se esforça para fundamentar racionalmente a crença na imortalidade da alma, esse mesmo Sócrates, em diversos momentos, vai relativizando a sua própria argumentação, colocando-a no condicional, impondo-lhe um império de «ses». Mas não é apenas o condicional que merece ser sublinhado. Há um pormenor irónico no texto. Logo no início, Platão escreve que o trabalho do filósofo é argumentar, enquanto o do poeta é fazer ficções. Conhece-se o destino dos poetas na República, de Platão: a expulsão da cidade, visto não se preocuparem com a verdade. Ora, quando no final do Fédon, Platão quer dar corpo à «bela esperança» escreve como um poeta e não como um filósofo que argumenta. Isto é, faz uma ficção, o chamado mito do Fédon.

Há várias explicações sobre o papel dos mitos no pensamento de Platão. Prefiro, contudo, ver aqui uma suprema ironia. No momento em que lança o fundamento de todas as filosofias optimistas e do princípio de esperança, o filósofo ateniense semeia também, através da ironia, um aviso sobre essa mesma esperança: no fundo, não passaria de uma ficção, e de uma ficção fundada numa falsificação da realidade. A esperança, quase nos diz ele – esse Platão poeta trágico que a influência de Sócrates matou –, aquece e alegra o coração dos homens bons, mas, em última análise, aquele que a propaga deve pura e simplesmente ser expulso da cidade. Talvez o optimismo racional do platonismo não seja mais do que o disfarce do pessimismo trágico que o habitaria.

Apartheids

Como se sabe, ele há apartheids e apartheids. Nem todas as segregações merecem a nossa atenção e o favor da nossa opinião. No Combustões, há um excelente post, mais um, sobre um dos apartheids mais silencioso de que há memória. Onde ? No paraíso, isto é, nos EUA.

XIV Poemas de Cabaret, 1933 - Infalivel Prostituta

Manifestações e milagres

Hoje os professores portugueses manifestam-se, mais uma vez, em Lisboa. Desta vez não participarei. Não é que esteja em desacordo com o motivo, ou os motivos, da manifestação. Pelo contrário. O que se passa é de tal maneira grave que esta e outras manifestações fazem todo o sentido. É preciso parar estas pessoas que tomaram conta da educação em Portugal. Aquilo que elas pensam sobre a educação e o seu papel na sociedade é tão tenebroso e niilista que pôr fim às suas veleidades se tornou um imperativo categórico. Eu, porém, já esgotei o meu stock de participações em manifestações com a de 8 de Março. Para mim, para a forma como vejo o mundo, esse desfilar representou já um enorme sacrifício. Mas há ainda uma outra coisa.

Mesmo que o desvario da actual política educativa termine, reconheço que nenhuma esperança acalento sobre o futuro da escola pública portuguesa. As forças negativas são imensas, têm muita força e estão instaladas em importantes lugares da decisão educativa e da produção da ideologia que permeia o sistema. Por detrás destes conflito entre ME e professores movem-se sombras bem poderosas, gente que necessita de um modelo idêntico ao do governo, como base para as suas carreiras, na universidade, nas ese's, nos órgãos ministeriais, na edição de livros, nos projectos de «investigação», aqui e ali onde o dinheiro da educação é o maná que alimenta a vidinha de muitos que colonizam, fora das escolas, o palco e o discurso educativos. Dos sindicatos, nem vale a pena falar. Uma escola decente, com um currículo decente e orientado para as necessidades da comunidade e dos alunos, uma escola onde os professores possam ensinar e os alunos aprender, uma escola dessas tornou-se, um pouco por todo o Ocidente e com algumas raras e honrosas excepções, uma utopia. Eu sei que os professores que pensam como eu perderam. Mais, sei isso há anos. A diferença é que até aqui ainda podíamos resistir, ainda podíamos dizer que a escola era um lugar sério e de trabalho. Com a actual governação essa resistência tornou-se quase impossível. É preciso parar o actual desvario, mas não se tenha grandes ilusões sobre o que virá a seguir. Só um milagre poderia alterar radicalmente o rumo da educação em Portugal e, de certa maneira, no Ocidente. Mas, como se sabe, os milagres não fazem parte do Zeitgeist.

07/11/08

Até que enfim!

Uma declaração clara e distinta de um líder da oposição sobre o actual modelo de avaliação de professores. Manuela Ferreira Leite disse o essencial do que há a dizer. Estou de acordo com ela. Os professores devem ser avaliados, mas externamente. Devem concentrar-se no seu trabalho, isto é, ensinar. A divisão da carreira em duas é iníqua. Absolutamente iníqua. As quotas também. Também é verdade o que a líder do PSD disse sobre o clima de desvario burocrático do processo. Independentemente da reacção do actual governo, uma coisa é certa: o actual modelo de avaliação, mesmo que prossiga até às eleições, está morto. Ninguém acredita nele. A sua credibilidade é nula. O que é mais misterioso nisto tudo é a crença dos governantes de poderem brincar com a vida de mais 130 mil pessoas de forma absolutamente impune. Como é que puderam imaginar que aquele concurso para professor-titular, que mais parecia o sorteio da lotaria, seria aceite de braços cruzados pelos felizes contemplados e pelos que tiveram o azar de não lhes sair a lotaria?

06/11/08

A senhora Palin

Que a senhora Palin não saiba que África seja um continente, nem faça a mais pequena ideia do que é a África do Sul (aqui), isso pouco admira, considerando a experiência do ainda Presidente George W. Bush. Que tenha havido gente, mesmo por cá, a dar crédito político a tal personagem é que deveria causar espanto. Ou talvez não.

A superstição do esforço

Como poderemos nós, homens educados no espírito moderno, compreender os versos do velho poeta grego Teógnis?

Nenhum homem é próspero ou pobre,
ou vil ou nobre, sem a sanção divina.

Ou estes:


Aquele a quem os deuses honram, até o desdenhoso enaltece;
mas de nada vale o esforço de um homem.

Fomos educados segundo uma ética do esforço e na crença na autonomia do indivíduo. Talvez seja apenas naqueles momentos mais negros que o homem moderno vislumbra, certamente por curtos instantes, esse outro saber que nos diz que essa autonomia é pura vaidade. Sim, seria o que diria Teógnis se aqui chegasse e olhasse para nós, homens contemporâneos, crentes na religião da autonomia e ardentes defensores da superstição do esforço. E também eu finjo pertencer à seita.

O estado de excepção

A Madeira sempre foi, no regime democrático, um sítio onde as leis da república e as regras de comportamento dos políticos derivavam de uma assaz curiosa interpretação da realidade. Agora, um deputado regional, pertencente a um partido de que ninguém consegue descodificar as siglas, decidiu, talvez em desespero de causa ou por falta de imaginação, mimosear a maioria de Jardim com o epíteto de fascista e brandir, como quem brande um cacete, uma bandeira nazi. Enfim, uma garotice, ao que a maioria respondeu com outra, proibindo o heróico PND de entrar no parlamento. No fundo, estão todos bem uns para os outros. Se a vida política do continente mais parece uma quarta-feira de cinzas, na Madeira o Carnaval não tem fim. É o verdadeiro estado de excepção.

Brigitte Bardot & Jeanne Moreau

O fundamental é que não se perca a boa disposição, mesmo numa manhã fria como a de hoje. Será possível que o mundo já tenha sido assim tão ingénuo?

Jeanne Moreau - Le tourbillon de la vie (in Jules et Jim)

No mundo, talvez só haja uma coisa que nunca me deixe de surpreender: a beleza de uma mulher.

05/11/08

Onde não há lugar algum, a névoa

Francis Picabia – Amanhecer na bruma – Monteguy – 1905

Onde não há lugar algum, a névoa
traz um restolhar de mãos
e em cada mão desenha-se uma árvore,
ou um ramo de água
ou uma folha a cair
sob a pálida luz que a bruma oculta.

Se fora uma paisagem de silêncio,
pintá-la-ia de cores nocturnas;
mas a madrugada só a escrevo
na tinta húmida de sangue
que adormece pelos dedos.

Um equívoco desagradável


A vitória de Barack Obama pode estar a criar um equívoco desagradável. Há duas coisas que convém separar nitidamente. Por um lado a questão civilizacional; por outro a questão política. Como diria Kant, a vitória de Barack Obama pode ser um sintoma, mas não uma prova, de um certo progresso moral da humanidade. Que um negro seja presidente da maior potência mundial, melhor, que um negro não tenha perdido as eleições devido à cor da sua pele é um sintoma de civilização com a qual todos os seres racionais se devem alegrar e que as pessoas de bem, por certo, guardarão nas suas memórias e nos seus corações. Mas a questão moral não é a questão política.


Ora há demasiadas expectativas sobre o novo inquilino da Casa Branca. Desenha-se mesmo uma espécie de utopia que anula toda a realidade. As pessoas politicamente informadas, e não apenas o homem comum, acham que vai mudar tudo. Ora isso é mentira. Um homem não pode anular a realidade e os EUA e o mundo são muito mais que a vontade do homem que se instala na presidência americana. Obama é inteligente, excepcionalmente inteligente, e sabe isso. Também saberá que este espírito utópico que se desenha à sua volta é o seu principal inimigo. É um inimigo que está nas próprias fileiras. Por outro lado, convirá que nós, não americanos, tenhamos presente que Obama, enquanto presidente americano, vai defender os interesses da América e esses são aquilo que são. Não tenhamos ilusões. Obama não vai trazer o paraíso, nem mudar tudo. Se ele conseguir melhorar algumas coisas já terá feito muito. A confusão entre a moral e a política gera, por norma, equívocos desagradáveis, se não mesmo fortes catástrofes.

João Villaret - Cântico Negro (José Régio)

A novidade na vitória de Obama

Na vitória de Barack Obama há uma coisa que surpeende. Não que tenha sido um afro-americano, como agora se diz, a vencer a eleição. Tão pouco surpreende que alguém com um nome tão muçulmano tenha ganho em terras americanas. O que surpreende mesmo é os americanos terem escolhido alguém com um perfil tão aristocrático em detrimento do perfil burguês-popular de John McCain. Sim, isso é a verdadeira novidade. Mas também aí reside o perigo para Obama. Aquela terra não foi feita por nem para aristocratas. Aguardemos.

04/11/08

A magna questão da avaliação de professores e o problema da face

Os espíritos andam agitados. Parece que há nova manifestação de professores contra actual forma de os avaliar. Nas escolas, os professores andam de reunião reunião, de papel em papel para dar conta do projecto da sua própria avaliação. Há, nesta comédia, uma coisa que toda a gente já percebeu: esta avaliação não tem pés nem cabeça. Uma coisa que desvia os docentes das suas funções reais é apenas um erro organizacional, que numa organização normal seria banido em três tempos. Quase que aposto que nem no ME se acredita no monstro. O único problema é o da face. Como poderá o governo aceitar as posições dos professores sem perder a face? Não pode. Meteu-se de tal maneira nisto, foi tão irracional que não tem qualquer espaço para recuar e encontrar uma solução razoável. Vítimas finais: alunos do ensino público. Mas não será mesmo isso que se quer?

Patres familias

Os jogos florais em torno do BPN mostram a essência do regime. As posições de Constâncio, Cadilhe e todos quanto orbitam a questão são o espelho de um país onde a política, os negócios, a universidade e as carreiras "independentes" dentro do aparelho de Estado se confundem. O problema não está na precipitação da nacionalização, nem na regulação serôdia ou temporã da vida do BPN. O problema é que o país é muito pequeno e os mesmo aparecem vezes demasiadas nos mais diversos lugares, como se estes fossem poucos, ou aqueles fossem os únicos. No fundo, é tudo uma família, onde os Presidentes da República não passam de meros patres familias, umas vezes mais severos, outras mais bonacheirões, mas sempre patres familias. O regime não é um regime político, mas uma família grande que se protege entre si, ao mesmo tempo que cada um tenta passar a perna ao primo mais próximo.

Eleições americanas - AVISO À NAVEGAÇÃO

Este blogger não apoia qualquer candidatura nas eleições americanas. Acha apenas Obama uma personagem mais interessante do que Mc Cain, mas até nisso reconhece que pode estar enganado. Uma personagem mais interessante, note-se, não faz um bom presidente, seja do que for. No melhor dos casos, tornará a narrativa mais interessante. Mas nem isso é completamente verdade. Uma personagem tão insípida e tão desinteressante como George W. Bush nunca deixou de tornar interessante a narrativa. Veja-se o molho de brócolos em que os heróis estão metidos. Seja como for, é muito provável que o próximo presidente dos EUA seja fundamentalmente um gestor de falências. Veremos.

03/11/08

Cioran [Qual o lugar?]

Apenas amo a irrupção e a derrocada das coisas, o fogo que as suscita e aquele que as devora. A duração do mundo exaspera-me; o seu nascimento e o seu desaparecimento encantam-me. Viver sob o fascínio do sol virginal e do sol caduco; saltar as pulsações do tempo para delas apreender o original e o último..., sonhar com a improvisação dos astros e com a sua afinação; desdenhar a rotina do ser e precipitar-se para os dois abismos que a ameaçam; esgotar-se no início e no termo dos instantes... [Cioran]