Se os dias aqueciam, fechavam-se as portadas
depois de correr as cortinas, e o vidro reflectia o sol,
inundando de raios o pequeno quintal onde
as varejeiras zuniam sem descanso. Por vezes,
sombras havia na cal que infestava
de branco as tensas paredes, agitavam-se
como pássaros ao luar e recolhiam-se
casa adentro. Outras, ficavam por ali
a anoitecer, girando lentamente, enquanto
o vento soprava da serra e tingia o calor
com nódoas de frescura, vindas sabe-se lá de onde.
Na estrada passavam gigantes empoleirados
em cavalos, agora bicicletas de grossos aros,
imitavam heróis de corridas, e assim se levantavam
do selim, pés presos aos pedais,
músculos retesados sob calças apanhadas
por mola de madeira, e atacavam o leve declive,
antes de desaparecerem, a curva os escondia,
como se uma multidão os esperasse
e uma meta lhes desse o fim da cavalgada.
O cavaleiro, em suor desfeito, podia então,
em fonte de pedra, lavar a cara,
matar a sede e olhar o vazio, a tudo rodeava.
Não haveria banquete, nem coroa de louros,
tão pouco um Píndaro o cantaria, como
aquele o fez a Hierão ou a Crómios, ambos
de Siracusa, quando ganharam, em imortais
sprints, as corridas, nos jogos os
deuses aos homens as impunham.
Quando as janelas se abriam, se as abriam,
via-se, ao olhar para fora, a erva rala
em terreno aberto, restos de trigo, vento
e sol o batiam, maçãs e laranjas ao abandono
no chão, o cansaço as tomara por dentro
e a férrea vontade, às árvores as ligavam,
decaiu, um sentimento de ausência as acometeu
e afrouxou do pedúnculo a firmeza
e com surdo bater, um baque dir-se-ia,
o chão as recebeu, entre ervas,
pedaços de lama, gravetos caídos
e já secos pela inclemência da luz.
Neste abandono, havia mãos
que cuidavam de apanhar os frutos
ainda não tocados e uma voz dizia
e do sobejo comam os animais do campo,
e uma pequena procissão por ali vinha
com andores, anjos saltitando, um gato
amarelo, daqueles que havia nas padarias,
fugia de um inimigo imaginado
e entrava, por um buraco, para uma casa
de tijolo vacilante, branqueado pela cal,
onde se guardavam utensílios de lavoura,
restos de coisas que a vida trazia, chapéus
de chuva, as varetas partidas, sacos de plástico,
um monte de jornais velhos, a carcaça de
algum brinquedo, as mãos criminosas
de uma criança o desmontara.
Se os dias aqueciam, fechavam-se as portadas
depois de correr as cortinas e o vidro reflectia o sol.
As sombras partiram e o meio-dia
é sempre tão escuro que os cavaleiros
deixaram as bicicletas em casa, passam
velozes em carros de combate. Aos caídos
frutos ninguém apanha, nem procissões de animais
vêm, no fulgor da tarde, roer os sobejos
que a terra ainda dá. O gato amarelo, daqueles
que havia nas padarias, morreu,
a última vendedeira de pão fechou a porta,
onde já ninguém passava a pé ou a cavalo duma bicicleta.
Ao longe, apenas as varejeiras zunem.
Jorge Carreira Maia (2007). Exodus.