Tradição e alheamento
“Mas se o pensamento pessoal não é o fundamento da identidade de um indivíduo (se não tem mais importância do que um chapéu), onde está então esse fundamento?
A esta busca sem fim trouxe Thomas Mann a sua contribuição importantíssima: pensamos agir, pensamos pensar, mas é um outro ou são outros que pensam em nós e agem em nós: hábitos imemoriais, arquétipos que, tornados mitos, passando de geração em geração, possuem uma força de sedução imensa e nos teleguiam a partir (como Mann diz) do «poço do passado».”
Milan Kundera (1994). Os Testamentos Traídos. Edições Asa, pp. 16
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O «poço do passado» de que fala Mann é um outro nome para o conceito de tradição. Aquilo que somos somo-lo porque pertencemos a uma tradição. É nela que, de uma forma inconsciente, mergulham as nossas raízes. Mas esta ligação não é em primeiro lugar uma conexão cultural.
Aquilo que somos, devemo-lo, já no estrato biológico, à herança genética. O ADN que recebemos dos nossos pais é uma ponte que, de geração em geração, nos liga ao fundo obscuro da humanidade, depois à animalidade e, por fim, enraíza-nos no próprio ser. O que cada um de nós é, ainda e só do ponto de vista biofísico, representa já uma incomensurável dívida para com os ancestrais e através deles para com o próprio ser, do qual tudo provém.
De certa forma, podemos então dizer que existe um substrato biofísico da tradição. Esta não é um nada ou um mero conjunto de conteúdos que estejam ali disponíveis para serem manipulados, sem mais. Do ponto de vista cultural, o conceito de tradição reenvia-nos para essa ancestralidade, que, segundo Mann, pensa e age em nós. Não somos sujeitos que possam começar o quer que seja sem essa carga do passado. A língua que falamos, por exemplo, não a inventámos, não a criámos, herdámo-la da comunidade onde nascemos. Aquilo que é válido para a língua, vale para a cultura no seu todo, desde as regras de cortesia até às normas morais.
As sociedades tradicionais viviam no culto dessa tradição. Isso não significa que elas não se transformassem. A transformação, porém, era uma resposta não contra a tradição mas uma espécie de readaptação da vida comunitária aos princípios, muitas vezes obscuros, dessa tradição. Esta era uma espécie de modelo arquetípico que tinha a finalidade de fornecer um horizonte à existência dos homens e um fundamento significativo à sua identidade.
O que marca as sociedades modernas é a revolta contra a tradição. O moderno nasce como oposição deliberada à tradição. Na modernidade, o imperativo é reconstruir todo o mundo cultural a cada nova geração, cortar os laços com o passado. A tradição, todavia, tem resistido e é ela que, apesar dos ataques do moderno, permite a esse mesmo moderno reconhecer-se enquanto tal.
O que é absolutamente novo, nos dias de hoje, na cultura pós-moderna, é o alheamento completo não só da tradição como da revolta moderna contra ela. O mundo pós-moderno é o mundo do alheamento. O desenvolvimento tecnológico e a forma como se pratica a ciência nos dias de hoje fizeram crescer uma mentalidade onde reina a ilusão de se poder construir uma existência sem qualquer conexão ao passado. A ligação vertical com os ancestrais está a ser substituída pela ligação horizontal em rede.
Ciência e tecnologia são dois motores essenciais de uma cultura baseada no momento, de uma cultura niilista. O curioso é que a grande maioria dos cientistas não percebe o efeito do seu próprio trabalho. Veja-se, por exemplo, o combate dos cientistas do blogue De Rerum Natura pela defesa racionalidade.
Como a ciência para a sua aprendizagem não necessita de um estudo dos seus processos de evolução históricos, como ela é apresentada desligada daquilo que, do ponto de vista filosófico, está no seu fundamento, a praxis científica e o desenvolvimento tecnológico nela assente são dois factores de dissolução da racionalidade e da conexão com a tradição nas sociedades de hoje.
O papel social da ciência e da tecnologia não é a produção de conhecimento e de bens úteis para a humanidade. Esse é o invólucro onde se esconde a sua acção dissolvente das tradições e a ilusão de se poder a cada momento produzir o novo. Por muito que isso doa à racionalidade de muitos cientistas, na sua actividade esconde-se a mais violenta irracionalidade: a de roubar o fundamento do sentido que estrutura e articula as identidades humanas e a de ser dinamizadora do alheamento pós-moderno. [Para uma outra altura fica a reflexão sobre o papel em tudo isto da didactização da ciência.]
A esta busca sem fim trouxe Thomas Mann a sua contribuição importantíssima: pensamos agir, pensamos pensar, mas é um outro ou são outros que pensam em nós e agem em nós: hábitos imemoriais, arquétipos que, tornados mitos, passando de geração em geração, possuem uma força de sedução imensa e nos teleguiam a partir (como Mann diz) do «poço do passado».”
Milan Kundera (1994). Os Testamentos Traídos. Edições Asa, pp. 16
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O «poço do passado» de que fala Mann é um outro nome para o conceito de tradição. Aquilo que somos somo-lo porque pertencemos a uma tradição. É nela que, de uma forma inconsciente, mergulham as nossas raízes. Mas esta ligação não é em primeiro lugar uma conexão cultural.
Aquilo que somos, devemo-lo, já no estrato biológico, à herança genética. O ADN que recebemos dos nossos pais é uma ponte que, de geração em geração, nos liga ao fundo obscuro da humanidade, depois à animalidade e, por fim, enraíza-nos no próprio ser. O que cada um de nós é, ainda e só do ponto de vista biofísico, representa já uma incomensurável dívida para com os ancestrais e através deles para com o próprio ser, do qual tudo provém.
De certa forma, podemos então dizer que existe um substrato biofísico da tradição. Esta não é um nada ou um mero conjunto de conteúdos que estejam ali disponíveis para serem manipulados, sem mais. Do ponto de vista cultural, o conceito de tradição reenvia-nos para essa ancestralidade, que, segundo Mann, pensa e age em nós. Não somos sujeitos que possam começar o quer que seja sem essa carga do passado. A língua que falamos, por exemplo, não a inventámos, não a criámos, herdámo-la da comunidade onde nascemos. Aquilo que é válido para a língua, vale para a cultura no seu todo, desde as regras de cortesia até às normas morais.
As sociedades tradicionais viviam no culto dessa tradição. Isso não significa que elas não se transformassem. A transformação, porém, era uma resposta não contra a tradição mas uma espécie de readaptação da vida comunitária aos princípios, muitas vezes obscuros, dessa tradição. Esta era uma espécie de modelo arquetípico que tinha a finalidade de fornecer um horizonte à existência dos homens e um fundamento significativo à sua identidade.
O que marca as sociedades modernas é a revolta contra a tradição. O moderno nasce como oposição deliberada à tradição. Na modernidade, o imperativo é reconstruir todo o mundo cultural a cada nova geração, cortar os laços com o passado. A tradição, todavia, tem resistido e é ela que, apesar dos ataques do moderno, permite a esse mesmo moderno reconhecer-se enquanto tal.
O que é absolutamente novo, nos dias de hoje, na cultura pós-moderna, é o alheamento completo não só da tradição como da revolta moderna contra ela. O mundo pós-moderno é o mundo do alheamento. O desenvolvimento tecnológico e a forma como se pratica a ciência nos dias de hoje fizeram crescer uma mentalidade onde reina a ilusão de se poder construir uma existência sem qualquer conexão ao passado. A ligação vertical com os ancestrais está a ser substituída pela ligação horizontal em rede.
Ciência e tecnologia são dois motores essenciais de uma cultura baseada no momento, de uma cultura niilista. O curioso é que a grande maioria dos cientistas não percebe o efeito do seu próprio trabalho. Veja-se, por exemplo, o combate dos cientistas do blogue De Rerum Natura pela defesa racionalidade.
Como a ciência para a sua aprendizagem não necessita de um estudo dos seus processos de evolução históricos, como ela é apresentada desligada daquilo que, do ponto de vista filosófico, está no seu fundamento, a praxis científica e o desenvolvimento tecnológico nela assente são dois factores de dissolução da racionalidade e da conexão com a tradição nas sociedades de hoje.
O papel social da ciência e da tecnologia não é a produção de conhecimento e de bens úteis para a humanidade. Esse é o invólucro onde se esconde a sua acção dissolvente das tradições e a ilusão de se poder a cada momento produzir o novo. Por muito que isso doa à racionalidade de muitos cientistas, na sua actividade esconde-se a mais violenta irracionalidade: a de roubar o fundamento do sentido que estrutura e articula as identidades humanas e a de ser dinamizadora do alheamento pós-moderno. [Para uma outra altura fica a reflexão sobre o papel em tudo isto da didactização da ciência.]
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