19/07/07

A Natureza do Poeta

Milan Kundera, numa entrevista concedida, há muito, a Christian Salmon, para The Paris Review, ao falar do seu romance La Vie est Ailleurs, afirma que partiu da hipótese de trabalho seguinte: «o poeta é um jovem que a mãe leva a exibir-se perante o mundo no qual ele não é capaz de entrar». O que Kundera pretende mostrar é que esta definição não é sociológica, nem estética, nem psicológica. Ela tem, segundo ele, uma especificidade própria, a de ser romanesca. A sua pretensão, no referido romance, foi a de explorar o casamento do lirismo, da revolução e da juventude, sendo aquela definição de poeta o ponto de partida, para a exploração de um modo de existência perverso.

O que Kundera não notou foi a impossibilidade de dar uma definição de «poeta» que não fosse puramente poética e metafórica. O que talvez, sublinho o talvez, nos permita dizer que o núcleo central de toda a actividade romanesca está fora do romance, com as suas categorias da narrativa e da acção, e centra-se na poesia. Se olharmos para a definição dada como um exercício metafórico, o que se descobre?

Descobrimos que a definição de poeta não é dada por conceitos, mas por 4 metáforas. Quais? O jovem, a mãe, o exibir-se e o mundo. É no cruzamento destas 4 metáforas que emerge o sentido do poeta.

A metáfora mais pregnante é a da mãe. A mãe é a metáfora que ilumina a própria poesia. Assim como não há filhos sem mãe, também não há poetas sem poesia. Todas as funções maternais podem ser transferidas para explicar o que é a poesia. A mãe como a geradora, doadora de vida, aquela que alimenta, a que cuida, a que vela, a que vê o filho crescer. A poesia é a fonte originária de todos os poetas, é a matriz onde cada poeta se inscreve, é o que alimenta os poetas.

A metáfora do «jovem» vem de imediato, embora seja a primeira a surgir no texto. «O poeta é um jovem…» Então não há poetas que não são jovens? Claro que há, há poetas que não têm mãe, a não ser a poesia. O «jovem» não deve ser entendido como alguém que é biológica ou psicologicamente novo, mas o estado essencial do poeta relativamente à linguagem, a sua matéria de trabalho. O trabalho do poeta é a renovação constante da linguagem. De certo forma, o trabalho poético é um roubo. O poeta rouba à linguagem o seu valor quotidiano, baseado no hábito, na palavra que se degradou pelo uso comum. O trabalho do poeta é devolver sempre uma linguagem nova e pura. Ao ser nova essa linguagem aumenta as capacidades de ser explorada e trabalhada por todos aqueles que falam ou que escrevem. Um poeta enquanto poeta, mesmo em avançado estado de senectude, é sempre jovem, pois é essa a natureza da sua linguagem.

A metáfora do mundo é a mais perigosa, pois surge de forma equívoca. Nesse «mundo» o poeta não é capaz de entrar. Há aqui uma sugestão subliminar de timidez. O poeta seria apenas um tímido incapaz de entrar e, por certo, de conquistar o mundo, visto como o conjunto das relações sociais. Perante essa timidez e impotência ele torna-se poeta. Mas se lermos o «mundo» como a metáfora para a linguagem e as relações mundanas como metáfora para o uso relacional da língua, o que descobrimos? Descobrimos o uso depauperado da língua, a desvalorização, isto é, a perda de valor da comunicação, o triunfo da rotina e do hábito. É neste mundo que o poeta não consegue entrar. Mas esta incapacidade não é impotência, pelo contrário. Perante a usura da língua o poeta toma a cargo a sua renovação, a salvação, o encontrar das fontes de onde a própria linguagem mana. Estas fontes não são religiosas, nem metafísicas. Elas são físicas. A poesia é um trabalho físico, onde o poeta trabalha para que as palavras, descativadas da rotina, possam exprimir de forma sempre nova aquilo que é (a realidade) sempre em metamorfose.

Sim, é verdade, a poesia leva o poeta a exibir-se no campo da linguagem. Exibir-se é a metáfora para a oposição entre a linguagem poética e a linguagem quotidiana. Mas esta oposição é o ponto de partida para que a linguagem quotidiana seja fecundada pela poética. A exibição é a revelação ou manifestação [há aqui todo um campo de metáforas que fizeram a fortuna da religião, da filosofia e da ciência] da linguagem renovada, no palco da poesia, perante a plateia dos usos quotidianos da linguagem. Como se pode compreender, nada assegura que a plateia tenha espectadores ou que estes prestem atenção ao espectáculo, ao que se exibe.

O poeta é apenas aquele que trabalha sobre a linguagem, na tentativa de mantê-la viva e de não deixar esmorecer a fonte que assegura a expressão daquilo que é e da comunicação inter-humana. Kundera, preso à sua tradição romanesca, aliás excelente, não consegue perceber a essência do poético, apesar de, sem o querer, a revelar na sua natureza metafórica, a única onde o poético se pode dizer. Não será que por trás do romanesco se encontra o poético, nesse conflito eterno entre o épico e o lírico?

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