Educação e soberania
Hoje é dia mundial do professor. Acho lamentável a existência deste dia, não porque os professores não mereçam respeito - eu sou professor -, mas porque a sua existência significa que qualquer coisa está mal na relação entre professores e comunidades. O Público apresenta um trabalho interessante sobre a dimensão humana de uma professor exemplar. Exemplar até por aquilo que rejeita ao dizer: "Não, não quero saber que notas tiveram." Isto vai ao arrepio das teorias em vigor, mas mostra a grandeza de um professor. Ele ensina quem se apresenta à sua frente para aprender, independente da origem e do passado. Numa perspectiva menos pessoal e mais política, deixo, como participação neste dia mundial da minha profissão, os dois últimos parágrafos de um artigo, em fase de publicação, sobre o mito do Protágoras, de Platão. Defendo ali o papel da educação na soberania política. Por extensão, posso afirmar que os professores são produtores do desejo de soberania. Sem ela - logo, sem eles -, nas sociedades modernas não haveria políticos, nem magistrados, nem polícias, nem forças armadas.
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Esta necessidade de fabricar ficcionalmente, através da educação, o desejo de viver numa comunidade política independente prende-se, por outro lado, com o desiderato da imortalidade que subjaz a cada comunidade política. O problema nasce, como sublinha Hannah Arendt, da questão da natalidade. A mutabilidade contínua da composição da comunidade política, devido à incidência dos processos demográficos, conduz à necessidade de preparar os neo-natos para a vida nessa comunidade, transmitindo-lhes um determinado currículo. Para que a comunidade seja imortal, para que ela não pereça às mãos da dissensão interna ou da incúria perante o inimigo externo, é preciso preparar as novas gerações nos valores da geração presente, a qual retém a tradição vinda do passado. Esses valores são expressos pelos termos aidôs (respeito) e dike (justiça), mas, como já se viu, Protágoras, no mito, deixa-os em aberto não lhe dando uma definição.
O mais importante será, então, olhar para a abertura semântica desses conceitos como um espaço a ser preenchido continuamente pela operatividade dos homens na vida comum. Isso não significa que esses termos sejam, para falar à maneira de Sausurre, uma espécie de significados sem significantes. A sua significância efectiva-se a cada momento da vida na cidade e ao efectivar-se tem a função reguladora dessa mesma vida, assegurando a sua indefinida renovação, a qual absorve a novidade que a renovação biológica da espécie representa. Dessa forma, e com o papel central da educação, assegura-se a continuidade da comunidade soberana. Contra os desígnios do tempo, as comunidades tecem, mediadas pela educação da razão, a teia da sua imortalidade. Esta é a resposta à derrelicção originária, ao esquecimento de Epimeteu, esse supremo e benevolente benfeitor da humanidade.
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